70 anos: Alceu Valença: a força da cabeleira

70 anos: Alceu Valença: a força da cabeleira

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Aos 70 anos, ele reafirma a pujança da música que canta a própria terra

No Agreste prateado pela Lua, cama a ranger enquanto o galo anuncia o sol cristalino e abrasador, de cantoria sem precisão de motivo e de aboio dolente a conduzir a manada, Alceu Valença cresceu com os pés fincados nas raízes pernambucanas e a alma inundada de poesia. Quando perdeu para um garoto que interpretou Granada um concurso no qual defendeu uma música nordestina, a vontade de cantar a terra se adensou. Aprendeu os cantos, conheceu os emboladores e os cegos de feira, viu tocar o berimbau de bacia, sorveu com sofreguidão cada verso encantado dos cordelistas.

Dos avôs veio parte da formação a combinar dois mundos. Na fazenda de produção leiteira em São Bento do Una, as histórias da saga dos cangaceiros, o piar das codornizes, o tropel dos cavalos. Nos saraus na casa do tio, o vocal afinado dos primos, os versos de improviso e a vitrola a revelar Noel Rosa, Ary Barroso e Orlando Silva.

A Rádio Nacional trazia para perto Cauby Peixoto e Vicente Celestino. “Um tio tocava sanfona, outro violino, piano, bandolim. O avô Orestes, violão, bombardino, viola e fazia cordel. Tudo de brincadeira, ninguém era profissional. Tio Geraldo era poeta da geração de Carlos Penna Filho e Ariano Suassuna. Mamãe sabia francês e papai, Décio, foi promotor e deputado. Exerceu só um mandato por não gostar de fechar questões, como eu”, conta Valença, a prosa caudalosa e eloquente a revisitar com brandura e energia os escaninhos da memória.

A mítica São Bento do Una compensava a diminuta população com diversidade cultural. As 5 mil almas da região contavam com dois grupos teatrais, dois cinemas e uma banda musical. Na comunidade de portas abertas, pobres quase não havia, idílio tragado pelo galope cruel da modernidade.

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Alceu
A reunião de poemas ganhou prefácio de José Eduardo Agualusa. O mítico sertão se tornou filme e trilha, que chega com o mais recente CD

Quando Valença tem 10 anos, a família se muda para o Recife. O temor de ver o filho adolescente sem curso universitário se perder na boemia leva o patriarca a mantê-lo longe de toda referência musical. Sem radiola na casa, o jeito era se contentar com o rádio. A vizinhança intelectualizada foi providencial. “O poeta Carlos Penna Filho morava na frente de casa e fazia muitas festas. Do outro lado tinha Maria Parísio, cantora de clássicos e irmã da vedete Salomé Parísio. Do lado direito vivia o maestro Nelson Ferreira, compositor e dono de gravadora.” A rua era passagem obrigatória dos blocos rumo ao centro. Maracatu do baque virado, caboclinhos, frevo. “Isso tudo entrou na minha cabeça.”

A vontade doida de tocar e cantar do filho amoleceu o coração materno. Aos 16 anos, Valença deixa a contragosto uma partida de futebol para acompanhar a mãe às compras. Na frente da loja de instrumentos ouve a frase ansiada: “Escolhe”. Opta por um cavaquinho, mais barato. “Você merece um violão.”

Aprende sozinho a dedilhar e enfrenta a invasão musical estrangeira com galhardia. “Todos os meninos da minha rua só tocavam Diana (sucesso de Paul Anka). Por preferir coisas da minha terra eu era chamado de velho.” A primeira letra, feita para um chorinho trazido pelo tio, sai de chofre. “Revejo o terraço de minha casa”, diz ao relembrar o momento no qual compõe os versos como se psicografasse. Eram os primeiros passos da carreira iniciada oficialmente nos anos 1970, após colocar de lado o diploma de advogado.

O tio Lívio, médico letrado, apresenta-o às obras de Fernando Pessoa, “fiquei louco com Tabacaria”, e de Rubem Braga. “Eu lia tudo do Braga, sabia tudo dele. Quando fiz Na Primeira Manhã incluí uma referência à crônica O Conde e o Passarinho. Certa vez encontrei o sobrinho dele, que me contou ter ficado o tio comovido e manifestado a vontade de me receber em casa para um jantar. Precisei viajar e telefonei na volta para agradecer, sensibilizado, o convite. Ele friamente monossilábico e eu puxando assunto. ‘Conheço toda sua obra’, insisti, ele nada. ‘Conheço suas crônicas de guerra’. ‘É?’, reagiu. ‘Olhe, sou da família Valença de Pernambuco e lembro de uma coisa que o senhor falou de um soldado parente meu. O senhor se lembra dele?’ ‘Não.’ ‘Não se lembra da crônica?’ ‘Não, faz muito tempo. São muitos traumas.’”

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Se o cronista tinha fraca a memória, por deficiência ou maus bofes, o músico faz dela poderoso emissário rumo a tempos idos. Revê o coroinha que gira no ar o turíbulo, a vaia recebida ao perder um concurso de perguntas sobre a invasão holandesa, a ida aos clubes de dança populares, a festa em que alguém colocou um ácido lisérgico em sua bebida e ele se apavorou quando o chão se abriu num desfiladeiro. Ao lado, o amigo Geraldo Azevedo ria de gosto. “Sou louco, mas sempre fui careta para drogas.”

Volta aos 16 anos e relembra o adolescente tímido no terreno da conquista amorosa que conhece a redenção quando passam a achá-lo parecido com Jean-Paul Belmondo. “Ia para o cinema e após a sessão ficava no hall, encostado numa coluna, olhar oblíquo, fumando. As garotas olhavam e me achavam a cara do galã francês. Namorei muito.” A semelhança o favoreceu na adolescência e o tempo carrasco trabalhou a seu favor na maturidade. “Agora Belmondo é muito mais feio do que eu. Meu nariz nunca foi quebrado como o dele.”

No fim dos anos 70, os ventos asfixiantes da ditadura e dificuldades com a gravadora conduziram o compositor ao autoexílio. “Quem me levou para Paris foi Paulo Coelho. Ele tinha visto o show Disco Vivo, no Rio de Janeiro, e adorou. A Som Livre adiava o lançamento de Espelho Cristalino, eu queria sair e o João Araújo me enrolava.” Com proposta do mago de integrar o elenco da Polygram, decide pedir rescisão do contrato.

O dia era aziago. Assim que deixa a sala da direção, Jards Macalé arremessa um copo de café na parede. Valença engata a conversa com o diretor quando um esbravejante Tim Maia adentra a sala, mãos em punho, pronto para esmurrar o empresário acusado de ficar com a parte do leão no contrato. Após enfrentar o olhar fixo de Araújo, Maia cai no choro e sai. Finda a tempestade, a rescisão é concedida e Valença procura Coelho. “Ele chega e diz: ‘vou ao banheiro, me aguarde aqui’. Nunca mais voltou. Hoje acredito que o banheiro da Polygram tinha uma estrada que dava para o Caminho de Santiago.”

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Em Paris, mergulha nos textos de Gilberto Freyre e nas músicas de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Tinha ido danado pra Catende e tinha pressa de voltar para assumir um lugar de destaque no cenário musical nacional. Em 1982 vende em seis meses 1,5 milhão de cópias de Cavalo de Pau. “Nunca olhei para essas coisas de número, mas lembro que o sucesso era absurdo.” Entre as músicas, Pelas Ruas Que Andei, Rima com Rima, Como Dois Animais e Morena Tropicana. A famosa dona da pele macia como carne de caju há décadas engana os incautos. “A Morena Tropicana era uma loira que eu namorava.”

O talento de Valença leva-o a outras artes. Às vésperas de completar 70 anos, em 1º de julho, lança projeto cinematográfico acalentado há mais de uma década. O longa A Luneta do Tempo (estreia dia 30 no CineSesc), em torno de Lampião (Irandhir Santos) e Maria Bonita (Hermila Guedes), é um assumido mergulho no passado do diretor.

De delicado lirismo é a trilha sonora da saga escrita em verso. Amigo da Arte, o mais recente CD, chega com 13 faixas, algumas a exortar as diletas Recife e Olinda. O poeta que Valença sempre foi, antes mesmo de eletrificar o Sertão, mostra-se em livro prefaciado por José Eduardo Agualusa. Para o escritor angolano, O Poeta da Madrugada (Chiado Editora), título soprado pela musa Yanê Montenegro, é matéria luminosa e revigorante.

O versejador que só acredita em vento que assanha a cabeleira lamenta a figura do “investidor dono do artista e da banda, situação que tira a possibilidade dos independentes de fazer arte com o coração”. O seu, encharcado de emoção, zabumba, bumba esquisito batendo dentro do peito. Três décadas após compor Morena Tropicana, comove-se ao ver garotos da periferia de São Paulo cantar o sucesso durante shows nos Centros Educacionais Unificados. Coração bobo é assim mesmo.

*Reportagem publicada originalmente na edição 906 de CartaCapital, com o título “A força da cabeleira”

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