No Cafezinho Literário, a incrível história de amor de papai e mamãe, que completa meio século

No Cafezinho Literário, a incrível história de amor de papai e mamãe, que completa meio século

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O Cafezinho Literário lançou um desafio: queremos publicar autores das regiões Norte e Nordeste. O chamado foi atendido e recebemos trabalhos de contistas e poetas da Bahia, do Ceará, de Pernambuco… Mas a região Norte teve, até o momento, uma participação discreta. Sabemos, contudo, que em terra de Milton Hauton não faltam talentos. Entre estes, está a jornalista Luciana Oliveira.

Ela mora em Porto Velho, capital de Rondônia, e nos brindou com o conto “Papai tomou um tiro e acertou mamãe no coração”. O texto é despretensioso. Talvez um tanto ingênuo. Mas possui a rara – e indispensável – qualidade de nos fazer crer no que foi contado. Convido você, leitor, a se sentar em um dos assentos deste teatro para assistir ao espetáculo.

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Boas leituras e ótima semana.

Paulliny Gualberto Tort

Editora do Cafezinho Literário

Papai tomou um tiro e acertou mamãe no coração

Luciana Oliveira

Corria o ano de 1963. A noite caía bela feito um viaduto e a plateia aguardava ansiosa pela estreia da peça ‘O Cidadão do Inferno’ no Colégio Maria Auxiliadora.

O roteiro era sobre a Revolução Francesa e papai integrava a trupe com um personagem que deveria morrer no último ato. O ápice do realismo só não foi alcançado porque a apresentação foi suspensa.

Na coxia, papai se maquiava e ajeitava o figurino que incluía uma jaqueta vermelha, cá pra nós, o encosto de Robespierre. Se a peça era sobre revolução o uso de armas na encenação era obrigatório e algumas réplicas foram providenciadas. À época, alunos novos e mais velhos formavam o elenco e um dos atores, o João Izídio, era policial e guardou embaixo de uma camisa na mesa em que papai estava, seu instrumento de trabalho.

À época também se repetia e ouvi muito: “não brinca com arma que o cão atenta!”

Um adolescente de 14 anos apelidado de Tarzan achou a pistola calibre 22, brincou, acertou papai no peito e pôs fim a seu sonho de se tornar o Skakespeare das barrancas de terras caídas de Porto Velho.

Com a jaqueta vermelha ensopada de sangue papai pedia socorro ao padre Miguel: “Acho que levei um tiro padre!”.

Foi um corre-corre danado e a noite que caía bela feito um viaduto acabou tumultuada no Hospital São José.

Mal tinha raio x pra ver onde a bala havia se alojado, mas os médicos Jacob Atalah e Leônidas Rachid salvaram a vida de papai, sem remover o projétil. O babado correu e outros médicos que integravam o elenco apareceram pra visitar o colega, inclusive Victor Sadeck, vascaíno doente, se preocupou em salvar o flamenguista que acabara de levar um tiro de raspão no coração.

A peça que havia sido um sucesso no Colégio Dom Bosco foi suspensa, o pobre do garoto que disparou acidentalmente em papai sofreu na boca das fofoqueiras e foi preciso que minha finada tia Nazaré acalmasse os ânimos.

Ah, não acaba aqui a história. Minha mãe viveu o drama na plateia e naquela noite, após a peça, estava tudo combinado com os parentes para selar o tão esperado noivado que seria uma surpresa. Ao saber disso no hospital, na dúvida se papai sobreviria, ela fez o que? Noivou na enfermaria e meu finado avô português colocou as alianças sem criar objeções.

Papai levou um tiro no peito e naquela noite acertou mamãe em cheio no coração, há 52 anos.

Sem ensaio, meus pais interpretaram Shakespeare, para quem o “curso do amor verdadeiro nunca fluiu suavemente”.

De lá pra cá, papai carrega no peito a bala e o amor por mamãe.

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***

Luciana Oliveira em poucas palavras

A Luciana é…

Sou jornalista, bacharel em Direito, ciberativista em causas sociais. Militante da cultura popular e dos movimentos sociais.

O que a levou a escrever este conto?

Meu pai é escritor e completa 50 anos de casado com minha mãe em julho. Ele escreve uma poesia a cada data: namorados, dia do casamento, Natal, enfim. Maria, minha mãe, é a mulher que tem o acerto romântico mais extenso que conheço.

Quais são seus autores de referência na região Norte?

Aqui, temos autores regionais muito bons e meu pai, claro, é um. Tem vários livros escritos, como “Madeira Mamoré – O Vagão dos Esquecidos”*. Do Norte, gosto de Miltom Hatoum, J. G. De Araújo e Thiago de Melo.

Você mantém algum canal de publicação?

Tenho um blog chamado blogdalucianaoliveira.com.br/blog, por meio do qual divulgo matérias e crônicas.

*O pai da Luciana Oliveira é o escritor Antônio Cândido da Silva, membro da Acadêmia de Letras de Rondônia.

**A imagem que ilustra esta página se chama “In the theater”, de Honoré Daumier, e se acredita que foi pintada entre 1860 e 1864.

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