A geografia do golpe
João Alberto Wohlfart – Professor de filosofia
O golpe aplicado na Presidente Dilma Rousseff, e que decretou o sepultamento da Constituição de 1988, da Democracia e do Estado de Direito, já se apresenta com uma estrutura gigantesca, uma força insuperável e uma penetração intensa em todos os setores da sociedade. Trata-se de um movimento que atinge o campo das mais íntimas relações humanas e familiares, passa por todas as instâncias sociais até as estruturas macroeconômicas transnacionais e transcontinentais. No presente artigo vamos tentar montar o desenho do golpe, a sua abrangência e as suas consequências para a sociedade brasileira.
O movimento estrutural do golpe começa “longe”, nos países do primeiro mundo, no epicentro do sistema macroeconômico capitalista mundial, imensamente sedento de matéria-prima e de energia para a sua própria sobrevivência. Nos espaços “centrais” do planeta onde está instalado não encontra mais matéria-prima para a exploração capitalista, tendo que apropriar-se de suas reservas em outros espaços e explorá-los intensamente para assegurar o que justifica o sistema capitalista, o lucro sem medida. O golpe está diretamente ligado ao fato de que no chamado primeiro mundo não há mais recursos naturais, num gigantesco movimento de apropriação de megaempresas mundiais na busca destes recursos para a exploração. No momento atual estamos invisivelmente encurralados por um monstro capitalista pronto para explorar e expropriar os recursos subterrâneos, as águas, as terras, as florestas, os rios, os recursos energéticos e aquáticos, a força de trabalho e a inteligência e incorporar tudo na lógica absoluta e incondicional do capital.
Em termos teóricos, esta configuração econômica é a materialização da ideologia neoliberal, que tem na propriedade privada, na superconcentração de renda, nas privatizações, na financeirização da economia e no espírito individualista os seus dogmas absolutos. Na atualidade, a hegemonia desta posição é tão intensa e assumiu contornos de autoritarismo militar, pulverizando por baixo todas as outras concepções e possibilidades de organização social. Na atualidade, a absoluta hegemonia da ideologia neoliberal se manifesta na privatização global de recursos públicos, na avassaladora introdução de seus fundamentos educacionais nas escolas e universidades e no autoritarismo arbitrário dos poderes estatais.
O imenso poderio econômico e empresarial de um conjunto de forças econômicas multinacionais está acampando em solos brasileiros. O território nacional está transformado numa base informe destinada à desmesurada exploração capitalista, reduzido a uma colônia sem povo, sem Constituição e sem Direito expropriados pelo grande capital. É a mais gigantesca estrutura de dominação e de exploração jamais vista na história da humanidade, com imensa força para desequilibrar o universo dos nossos ecossistemas, transformar o povo numa massa sem inteligência, aniquilar qualquer tentativa de crítica e de reação e entregar o Brasil nas mãos de poucos grandes proprietários capitalistas. O golpe caracteriza a fome da voracidade capitalista, numa nova fase do neoliberalismo internacional de assalto sobre o Sistema Terra, de intensa massificação das populações e de desconfiguração total da organização social planetária.
O mostro capitalista aqui em consideração tem as suas representações internas. O alvo direto é viabilizar a exploração dos nossos recursos naturais e a completa alienação da população. Internamente, este sistema é representado pela ultraconservadora configuração do congresso nacional, onde habitam integrantes do neopentecostalismo, do agronegócio, das empreiteiras, das indústrias petrolíferas e do grande sistema privado. Este covil de bandidos políticos legitima legalmente a consolidação da venda do Brasil ao capital estrangeiro e expropriar os recursos que pertencem de direito ao povo brasileiro. O governo federal, que tomou de assalto o mandato da Presidente Dilma Rousseff através da farsa do golpe parlamentar, está aplicando visivelmente os dogmas da política neoliberal, com ações escandalosas que vemos todos os dias. O judiciário e o ministério público federal estão protagonizando uma caçada judicial ao PT e às suas principais lideranças, cujo objetivo explícito é eliminar esta força política.
Na geografia do golpe não podem ser esquecidos os meios de comunicação social. Numa absoluta monopolização, padronização e uniformização da informação, esboçaram um intenso ataque contra o Governo Dilma, contra o PT e contra Lula, num tom de diabolização e de condenação permanente que incutiu na opinião pública a convicção de que o PT acabou com o país e é responsável único pela corrupção. A população foi de tal maneira imbecilizada e mediocrizada que as conversas entre as pessoas se reduziram a jargões como “faliram a Petrobrás”, “os filhos de Lula são ricos”, “os militares precisam voltar ao poder”… Com a estratégia contínua de ataques contra Lula e o PT, os meios de comunicação social conseguiram ocultar aos olhos do povo a corrupção praticada pelos grupos políticos de direita e a corrupção sistêmica como aquela praticada pelas políticas neoliberais. Os meios de comunicação são decisivos para a ação seletiva do judiciário que coloca na cadeia lideranças de esquerda a partir de boatos e protege os corruptos que habitam os partidos de direita.
O golpe imbecilizou e mediocrizou a população brasileira. Estamos envolvidos numa cegueira epistemológica absoluta que impossibilita a construção de qualquer conhecimento crítico diante da ditadura na qual vivemos. O povo está cego diante do desmanche do Estado, da entrega de bandeja das riquezas nacionais ao capital estrangeiro, da política de concentração de renda e da retirada de direitos. A cegueira absoluta se completa com o desaparecimento da memória histórica, pois ninguém se lembra dos acontecimentos das décadas de 80 e 90 quando as palavras-chave eram dívida externa, FMI, Banco Mundial e miséria absoluta. Ninguém se lembra das conquistas com o governo Lula, tais como a quintuplicação do Produto Interno Bruto, a formação de significativas reservas internacionais e a superação da dívida externa, a construção de uma nova política internacional com a integração do Brasil na lógica da horizontalização das relações internacionais, a formação de uma ampla classe média, a superação da fome e da miséria e tantas outras. A ignorância absoluta se completa com a legitimação por parte do povo do projeto golpista estabelecido, pois quando fala de corrupção e contra o PT, os falantes repõem exponencialmente a corrupção e sustenta o assalto do país pelo grande capital.
O golpe desestruturou o perfil da estrutura social brasileira. Os órgãos públicos responsáveis pela guarda da Constituição e do Estado de Direito, tais como o supremo tribunal federal, o judiciário e o ministério público federal a dissolveram e decretaram a sua morte. Estes órgãos se transformaram num partido ultraconservador de direita e viabilizam a destruição da nação com a sua venda e alienação. Já é perceptível a desintegração das relações sociais através de uma intensa massificação da opinião e da incapacidade de organização social. Esperava-se uma espécie de luta de classes, a partir da qual as bases se organizam para lutar contra o projeto de desmantelamento de direitos historicamente adquiridos, mas o povo assiste passivamente e em silêncio, sem capacidade de compreensão e problematização. Seguramente, o discurso antipetista obscurece os olhos do povo e inviabiliza a organização. A organização das bases foi substituída pelo ódio da classe dominante do Povo e da Democracia e pela paradoxal postura de adoração dos dominados em relação as dominadores.
Está em jogo a ruptura do contrato social e a entrega incondicional do país à política econômica neoliberal. A política dos juros altos é o principal mecanismo desta política. O povo está sendo expropriado pelos juros que corroem a base econômica e canaliza os recursos para os bilionários da sociedade. É uma lógica econômica invisível, desconhecida, mas caracteriza o principal mecanismo de exploração das massas sociais e de concentração de renda no Brasil e no mundo. A especulação financeira mundial, altamente concentrada no Brasil, é um fator de desequilíbrios sociais, de desequilíbrios ecológicos e de desequilíbrios econômicos em escala global. A principal antinomia dos tempos atuais está polarizada entre o capital financeiro e a estrutura social. No Brasil esta polarização é muito mais profunda, porque a concentração de renda que ela proporciona corrói e dissolve as relações sociais.
A lógica do golpe atinge diretamente o campo educacional. O modelo de escola, de pedagogia, de conhecimento e de aprendizagem correspondem com o sistema econômico estabelecido, para dar-lhe legitimidade e evitar que seja objeto de qualquer crítica. O projeto escola sem partido é a expressão mais clara desta tendência, pois impõe autoritariamente uma lógica de doutrinação na qual o professor apenas repassa conteúdos. Querem, e isto se escutou falar por aí, a obrigatoriedade do ensino do criacionismo, uma visão conservadora de mundo na qual se sustenta que o mundo está dado pela vontade divina, portanto não pode ser transformado. Fala-se também da neutralidade científica, como se o conhecimento científico e as várias teorias científicas não tivessem nada a ver com a realidade histórica dos homens e com as diferentes concepções de mundo e de sociedade. Num cenário de ditadura como o nosso, a escola se transforma numa referência legitimadora da sociedade estabelecida ao reproduzir os interesses que a movem.
Depois de conquistarmos com os governos Lula e Dilma um posição privilegiada no cenário internacional, involuímos séculos e nos transformamos numa colônia informe de quinto mundo. O nosso rico sistema de ecossistemas e de biodiversidade se transforma numa materialidade bruta a ser devorada pela voracidade da exploração capitalista. O povo brasileiro, órfão de lideranças e de mediações políticas, se transforma numa massa manipulada sem memória, sem conhecimento sistematizado e sem direitos. Neste contexto de radical ruptura institucional, a tendência é que o povo será amplamente favorável diante das arbitrariedades praticadas pelo governo golpista. Internamente, sobra-nos um cinismo social resultante de uma ampla manipulação da mídia, com a radical dissolução do sistema de relações sociais. No cenário internacional, dissolveram-se as relações fundamentais do Brasil com vários blocos econômicos e políticos, e nos transformamos numa republiqueta de fundo de quintal sem relações internacionais consistentes.
Todas estas reflexões conduzem à evidência de um pandemônio que está em cima de nós, como uma ave de rapina posicionada para roubar as nossas riquezas. Este gigante de mão invisível tem como corpo o capital financeiro cuja seiva o move, e como estrutura material as megaestruturas empresariais capitalistas transnacionais quase invisivelmente distribuídas por todo o planeta. A sua ação consiste em explorar os recursos naturais ainda existentes, particularmente de olho nos ecossistemas naturais do Brasil e na alienação das massas. Este sistema possui gigantescos tentáculos que multiplicam a sua força invasora e neutraliza qualquer tentativa de resistência. Um tentáculo é o sistema do Estado como um todo, em seus poderes executivo, legislativo e judiciário em conluio para introduzir a sua versão atual arquitetada pelo golpe. Os oponentes são cassados por uma perseguição judicial, rotulados de corruptos e presos sem provas. Outro tentáculo deste sistema são os meios de comunicação social que padronizam a informação e imbecilizam a população o suficiente para se submeter cegamente ao roubo neoliberal. Outro tentáculo são as religiões, que com o seu proselitismo revestem com pele de ovelha e tornam invisível este pandemônio. Outro tentáculo é a mentalidade burguesa, com discurso moralizador, que com o cinismo generalizado reproduz dentro da sociedade este sistema diabólico.