CARTA
Por Joana Burrigo
Está ficando cada vez mais difícil falar sobre gênero sem que o debate descambe para a polarização política. Nesta semana mesmo foi divulgada uma gravação (autorizada) de um professor do curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), na qual ele afirma que “esse negócio de gênero é PT, meu bem, é PT quem inventou isso”.
Gênero é um conceito relativamente novo no discurso popular, mas estudos sobre o tema existem desde pelo menos a década de 1950 – e, sinto informar, não surgiram no Brasil, muito menos por iniciativa do PT.
A existência de demandas por políticas públicas referentes a questões de gênero independe de quem está no poder. É assombroso que um docente de um curso de tamanha influência social profira uma barbaridade como essa. Mas ele não está só: a palavra gênero anda cerceada por obscurantismo e discursos de repressão.
A confusão toma tons tragicômicos, como no caso do candidato à prefeitura de São Bernardo do Campo, que acusou seu oponente (um tucano!) de estar ligado a “comunistas que querem a ideologia de gênero nas escolas”. O pastiche aumenta: o candidato que fez a acusação é membro de um partido de origem socialista.
É difícil falar sobre gênero quando a conversa é interrompida por uma falta de clareza acerca de outros conceitos políticos, o que tende a estimular simplificações selvagens e a aglutinação acrítica de signos distintos sob um mesmo significado.
E se são cômicos por serem mal informados, esses reducionismos acabam por ser realmente trágicos: quando significados ficam fixos, dialogar com quem deles não abre mão torna-se uma missão impossível.
Para muita gente gênero, esquerda, PT e comunismo são tudo a mesma coisa. É evidente que não são, tanto que chega a parecer redundante listar as diferenças. Mas sem fazer isso, como sequer começar a dialogar com quem não está disposto a assimilar que “querer ideologia de gênero na escola” é uma frase inteiramente falaciosa?
A parcela da população que se propõe a estimular a inserção de conhecimento sobre gênero nas escolas também não quer ideologia de gênero nas escolas.
O propósito de discutir gênero nas escolas é justamente para que não haja imposição ideológica, na escola, acerca de gênero. Discutir gênero na escola, bem como no trabalho, em Hollywood, na família, no mundo dos negócios, na História, enfim, em geral, é discutir as formas com que gênero pauta nossas vidas sociais.
Gênero é um elemento importante para o nosso entendimento acerca de nós mesmos e dos outros, por isso discutir gênero não deveria ser algo amedrontador. Visto que existimos em um sistema codificado por gênero, é de interesse geral que se compreenda esta faceta da existência humana.
Não falar sobre gênero não impede a existência de questões de gênero na sociedade. É impedir que se fale sobre gênero o que nega, apaga ou camufla a existência de questões de gênero na sociedade. Discutir gênero não oferece risco à dignidade humana, tampouco é um ataque pessoal a ninguém. Mas não discutir gênero acoberta violências que são cometidas por conta de gênero.
Não falar sobre gênero é não falar sobre cultura do estupro e sobre o fato de sermos o país que mais mata população LGBTQI. Não falar sobre gênero é não falar sobre meninas que morrem ao nascer por serem identificadas como meninas. Não falar sobre gênero é não falar sobre feminicídio, é não falar sobre todas as meninas e mulheres cujos corpos são marcados por violência, é não falar sobre a violência simbólica dos padrões de feminilidade e beleza, que chegam a resultar em autoflagelo.
Não falar sobre gênero é não falar sobre pessoas cuja existência e dignidade estão em risco por causa de gênero. Não é natural que estejamos em risco por causa de gênero. É cultural. Não é aceitável que mulheres não femininas, que mulheres trans, que homens trans e que mulheres lésbicas estejam em risco porque suas existências não se adequam um ideário de feminino.
De onde vem esse risco? Onde está a ameaça? Na existência feminina ou não feminina destas pessoas? Ou nos efeitos que a feminilidade ou sua ausência têm sobre um outro, que reage com violência? Não falar sobre gênero é não falar sobre estas questões.
Falar sobre gênero não revela um desejo secreto de impor práticas de tratamento que sejam pautadas no gênero das pessoas. Isso a sociedade já faz muito bem, afinal é ou não é senso comum que “menino não chora” e “toda mulher ama flores”? Sabemos que meninos choram, e que há mulheres que detestam flores.
Falar sobre gênero é interromper o senso comum quando ele não faz sentido, ou pior: quando ele oprime. Falar sobre gênero é estimular o debate sobre as formas como suas normas e padrões rígidos são causa e efeito de violências estruturais.
Dialogar é o oposto da imposição ideológica, e discutir gênero não significa prescrever comportamentos, mas sim libertar pessoas das prescrições de gênero para que sua existência não seja determinada por elas.
É compreensível que, se tomarmos como correta, natural e intransponível apenas uma narrativa possível a respeito de papeis de gênero na sociedade, haverá resistência para entender outras sugestões neste sentido.
Mas esta resistência é isso: uma resistência. Não é porque uma forma de existir é normal que ela deve ser a única forma de viver. Falar sobre gênero é questionar o que é normal: é perceber o normal como normativo, e não como algo natural, quem dirá superior ou correto.
Falar sobre gênero, fundamentalmente, é respeitar a existência das pessoas, e lutar por sua dignidade. Não falar sobre gênero estimula o faz-de-conta que insiste que pessoas não sofrem violências (ou ainda, que não são sumariamente executadas) por conta de gênero.
Impedir que se fale sobre gênero não impede a existência de questões de gênero. O que então está por trás do desejo e do esforço para que não se fale sobre isso?
Dizem que somente resolvemos um problema quando o identificamos. Já identificamos os mecanismos da violência de gênero. Debater gênero é uma das formas de lutar contra essa violência. Exigir que não se fale sobre gênero é, portanto, uma tentativa de silenciar quem sofre por conta de gênero. Vamos falar sobre gênero!