Paulo Moreira Leite
No 247
Vamos ser modestos e não esquecer que de uns tempos para cá voltamos a viver num país parecido com o velho Brasil de sempre, com métodos políticos truculentos disfarçados de conversas cordiais, o reconhecido complexo de vira lata e horizontes estreitos para as necessidades de uma população com mais de 200 milhões de pessoas, com uma das dez maiores economias do planeta.
Diante de uma realidade deprimente, é bom rebaixar parâmetros e expectativas de outra época para reconhecer que nem sempre se tem a chance de pensar no ótimo, no bom, sequer no médio — mas todos temos a é obrigação moral com filhos e netos tentar o ruim para evitar o péssimo.
No Brasil deste final de 2016, o risco real é a transformação de um presidente fraco, Michel Temer, num chefe de Estado sob tutela judicial. Um marionete sem vida própria, a ser manipulado até que se transforme num bagaço de laranja para ser descartado. Em seis meses de mandato, Michel Temer caminha para a produzir o pior governo de nossa história recente, colocando em risco a sobrevivência do regime de liberdades escrito na Constituição de 1988 após duas décadas de resistência democrática. Já vivemos uma conjuntura na qual nenhum direito está assegurado. A própria democracia costuma ser estuprada cotidianamente em episódios descritos pelo eufemismo “choque de instituições.” Pelo que se viu até aqui, teremos muitos “choques institucionais” em função das delações da Odebrecht, para não falar no julgamento chapa Dilma-Temer no TSE.
No lance mais recente, mas que não pode ser visto como o último, Renan Calheiros foi mantido pelo STF na presidência do Senado numa decisão essencialmente política — o motivo real era impedir que seu afastamento, inteiramente legal, pudesse atrapalhar o rito de aprovação da PEC 55, viga mestra do programa de austeridade que expressa o poder do setor financeiro sobre o conjunto do governo. O risco de consolidação de uma ditadura judicial é real — o pior desfecho que poderia ocorrer no destino da nação, que não enfrentamos nem durante os piores momentos do governo José Sarney, muito menos sob Itamar Franco, vices que acabaram empossados em circunstâncias imprevistas e tumultuadas.
A proposta de eleições destina-se a preservar o fiapo que ainda resta do regime democrático para recuperar o país.
Na conjuntura atual, o esforço pela realização de eleições diretas para presidente da República deixou de ser uma opção entre outras no cardápio da crise. Não tem a ver com as reações corretas contra a injustiça absurda de um impeachment sem prova de crime de responsabilidade. Não é um apelo a favor de um possível terceiro mandato de Lula. Neste momento, somente vigaristas profissionais podem fazer profecias sobre os humores do eleitorado num caso como este. Até porque ninguém pode prever se os “choques institucionais” chegarão ao calendário eleitoral, às regras e prazos, o que torna a eleição uma necessidade urgente, uma medida preventiva para proteger o regime democrático e superar de vez a instável pinguela em que o país se encontra. Uma verdade que se demonstra como uma equação democrática simples, sem sofisticações inúteis. Apenas um governo, qualquer que seja ele, sustentado pelo voto direto de 100 milhões de brasileiros terá musculatura e legitimidade para enfrentar as grandes turbulências que se aproximam. Após inúmeros desastres sucessivos — e estamos apenas no começo, na fase preliminar dos ajustes que vem por aí, capazes de gerar conflitos e contradições ainda maiores — a saída de Temer através de eleições é o caminho racional para o país retomar sua construção como projeto histórico.
Uma eleição direta permite encerrar essa conjuntura na qual os poderes públicos tiraram licença da vontade popular, passando a tomar decisões a portas fechadas, como se fossem cientistas de avental branco fazendo experiência com ratos de laboratório.
O ponto essencial para entender o tipo de ameaça representada pelo governo Temer reside justamente na falta de compromissos reais da coalizão governante com a democracia. Em palavras que confirmam seus atos, traduzidos pela PEC 55, pela Reforma da Previdência, pela esterilização das leis trabalhistas e muitas outras conquistas que marcam o embrião de um estado de bem-estar social no pais, Temer costuma repetir, com frequência espantosa, que não teme medidas “impopulares”.
Vamos combinar: um dos melhores sinais de vitalidade de uma democracia encontra-se no temor dos governantes em tomar “medidas impopulares.” Isso acontece quando os “populares” tem capacidade de se fazer ouvir, questionar as propostas em debate, definir e escolher, enfrentando os inevitáveis projetos egoístas, malignos e reacionários que vivem à espreita no gabinete de todos — sim, absolutamente todos — governos, em qualquer época da história humana.
A opção pelos “impopulares” traduz, assim, a preferência de um governo por ações acima da vontade da maioria e nós sabemos o tipo de regime que pode sair daí. É aquele que não mede esforços para assegurar a lealdade a qualquer preço das forças responsáveis pela lei e ordem. Foi o que se viu nas brechas e exceções abertas para as Forças Armadas, Policias Militares e corporações policiais em geral na reforma da Previdência.
Numa barganha desaforada, aprendizes de feiticeiro do novo autoritarismo julgam possível de cooptar o velho porrete do Brasil da República Velha para submeter várias gerações de brasileiros à injustiça, ao empobrecimento e à exclusão que estão no centro da reforma em nome de uma fatalidade demográfica manipulada ao sabor de conveniências políticas e interesses econômicos privados.
As turbulências deste momento difícil de nossa história política não caíram do céu. São fruto inevitável das opções políticas assumidas por Michel Temer e seu grupo depois da “encenação” do impeachment, como diz Joaquim Barbosa. A partir daí abriu-se uma situação que rapidamente transformou nossa democracia num conjunto de “instituições em frangalhos,” para lembrar o termo empregado pelo Estado de S. Paulo num editorial à beira do precipício que levou ao AI-5, em dezembro de 1968, jogando o país na fase mais violenta da ditadura militar, que o mesmo jornal havia ajudado a implantar.
Não custa lembrar que todo calouro de Ciência Política sabe que as instituições não são máquinas com vida própria, impessoal. Não tem o poder de auto destruição, portanto. Tampouco sua história está escrita previamente, pois são uma força que responde aos impulsos das mulheres e dos homens que estão em seu comando e administram seu funcionamento e atribuições. Têm rosto, nome, endereço e acima de tudo, responsabilidade.
Sabemos que o caráter precário do governo Temer é uma questão de origem, “um impeachment fraudulento,” “uma espécie de eleição indireta,” que produziu “um governo que será ele próprio a razão para a continuidade da crise política em nosso país,” como previu Dilma Rousseff, no discurso em que se despediu do Planalto, em maio. Este mal congênito é real e incurável. Mas poderia ter sido amenizado — como uma grave doença crônica mantida sob controle — caso houvesse vontade política por parte da coalizão governante para reconciliar um país esfrangalhado.
Instrumento para tentar levar adiante o acordo que permitiu o assalto a um poder eleito, o método Temer de gestão — para empregar a expressão mais neutra possível — é um choque permanente com o país. Seus objetivos estão muito acima das forças políticas que pode mobilizar, democraticamente, para fazer valer seus projetos e interesses.
Mesmo tendo recebido o Planalto em circunstâncias políticas muito mais favoráveis — o país estava politicamente unido pela saída do antecessor — Itamar Franco cuidou de reconstruir a presidência como um poder de Estado, expressão possível da vontade de uma nação após o trauma do primeiro impeachment da história republicana. Buscou fazer um governo de união nacional, que incluía até o Partido dos Trabalhadores, que preferiu manter-se de fora. Fortalecido, mesmo sem o PT, foi capaz de elaborar e aprovar o Plano Real, que assegurou apoio popular ao governo e permitiu a eleição de FHC.
Mas Temer também poderia ter feito outra opção, aquela que, periodicamente, os analistas chamam de “populismo” — expressão sempre útil para “desqualificar adversários que têm mais votos que você”, lembra o historiador Jorge Ferreira, biógrafo de João Goulart. Ousado desse ponto de vista, José Sarney livrou-se de uma tripla tragédia: uma economia exaurida por 20 anos de ditadura milita; um acordo político em colapso pela morte de seu principal arquiteto, Tancredo Neves, já fragilizado por ter sido escolhido num colégio eleitoral espúrio depois que o país havia se mobilizado na campanha diretas-já. Em busca de uma legitimidade que não possuía, Sarney foi em busca de uma popularidade que não possuía. Fez o congelamento de preços, anunciou a moratória da dívida externa — que permitiu preservar investimentos públicos — e tomou outras medidas de impacto imediato. Um ano e meio depois de empossado, consagrava-se nas eleições para os governos estaduais e para a Constituinte. Deixou o governo em ambiente de tragédia e só preservou o mandato presidencial barganhando concessões de rádio e TV por votos no Congresso, leviandade que consolidou o monopólio dos meios de comunicação em mãos conservadoras, mas fez a travessia: conviveu com a Assembleia Constituinte mais progressista de nossa história. Saiu enxovalhado do Planalto mas nenhuma crise colocou a democracia em risco, como o país enfrenta antes que Temer tenha completado um semestre.
No Brasil de 2016, o horizonte oferecido pelo governo é desolador. Esfarrapada por denuncias sucessivas, cada vez mais próximas do gabinete presidencial, sequer a bandeira de um governo ético pode ser desfraldada.
Nesta situação, mais do que nunca é necessário avançar na luta por eleições diretas, pois só elas podem recuperar a energia necessária para a preservação dos interesses da maioria. Dez anos de criminalização da atividade política devastaram lideranças construídas ao longo de décadas de resistência, o que mostra as dificuldades que a reconstrução democrática do país terá pela frente. A experiência demonstra que não há outra saída, por mais difícil que pareça. Todas as outras, como se sabe, só conduzem ao abismo político.