No Almanaqueiras
Por Maria Ribeiro
Li “Dois irmãos” em três dias. Completamente fascinada pelos gêmeos inimigos Omar e Yaqub, por Zana e seu amor lascivo por somente um dos seus meninos, pelo colo familiar da criada Domingas e pela amoralidade da caçula Rania, lembrei-me de Nelson Rodrigues. “O adulto não existe. O homem é um menino perene”. Touché.
Não há um único dia desta minha vidinha besta de meu Deus em que não negocie com a minha menina. E ela é exigente, a pirralha. Acredita em justiça, gratidão, sentimentos nobres, direitos iguais, praticamente uma mini Meryl Streep (incluindo o gosto pelos brilhos… rsrs). O problema, quer dizer, o inferno, pequena Meryl, são os outros. Manja o existencialista francês?
Então… Os outros e os “minioutros”, o que é ainda mais grave. Que muitas vezes adquirem carteira de motorista e até títulos de doutor honoris causa sem haver amadurecido de fato… (sem plural, não é isso? No sentido de existir? Nunca sei… bora aumentar a gramática e esquecer esse papo de filosofia…).
Vai saber se Donald Trump teve amor de mãe? Se não foi um filho rejeitado, à sombra de um irmão charmoso e carismático, como no romance de Milton Hatoum? Se não teve um pai violento e castrador cuja mãe era constantemente subjugada na frente do pobre milionário? Se não come até hoje sozinho e trancado no quarto o pote inteiro de pasta de amendoim vendo “Esqueceram de mim 2”? Um pouco de empatia não custa nada, povo de dois mil e dezessete…
Como saber se João Doria teve oportunidade de se fantasiar de gari no carnaval quando criança? De viver uma infância lúdica e dar vazão a toda a multiplicidade do seu ser? É, minha gente, não dá pra sair por aí julgando assim, sem saber dos traumas da meninice do pessoal, poxa…
Quem garante que o garoto Michel Temer foi estimulado a defender os coleguinhas castigados por engano? Às vezes o adulto ainda não chegou, galera. Pior, às vezes não chega nunca. E quase sempre falta um pouco de Freud no currículo. Um pouco de Freud e um amigo verdadeiro.
Desculpa falar, presidente, mas o senhor tem que ir a Manaus. É, eu sei, entendo, mas se tá calor pra vossa excelência, imagina o quanto não devia estar para os falecidos detentos! Não, doutor, lá não tem ar-condicionado, não. Ventilador? Ventilador eu já não sei… Se em Curitiba é mais fresco? No inverno eu sei que sim, mas agora em janeiro acho que a fornalha é meio que democrática. Pelo menos isso. Não, desculpe, não foi isso que eu quis dizer.
Então. Faltou esse personagem aí. Tanto pro magnata americano — que vai entrar para o “Guinness Book” pelo recorde de declarações infelizes a mulheres e imigrantes — quanto pro presidente brasileiro. Acontece que em não havendo esse personagem do amigo verdadeiro — raríssimo, aliás — e na ausência da transformação do menino em homem feito, perdemos a única arma possível em meio a tragédias como a que acabou com a vida dos 61 infelizes em Manaus: a boa liderança.
Ao pegar um avião, cruzar o Brasil e ver o rosto de cada familiar desesperado, ou simplesmente visitar as dependências do complexo penitenciário Anisio Jobim, nosso líder confortaria centenas de mulheres e crianças ao lhes passar uma mensagem tão simples quanto fundamental. Vocês são importantes, diria ele, sem precisar dizer. Somos importantes, pensariam alguns, sem precisar pensar. Pois bem. Foi o que fizeram, cada um a seu modo, Meryl Streep e Milton Hatoum.
Hatoum ao olhar pra sua Manaus da infância com a mistura exata do menino e do homem. Quando escreveu o romance, não era mais o garoto meio libanês meio amazonense criado numa Manaus onde a floresta ainda era quintal e referência. Aos 47 anos, idade em que lançou “Dois irmãos”, já tendo morado em outros países e em outras cidades brasileiras, o escritor já tinha dado a mão ao garoto. Vamos juntos, parece ter dito sem dizer.
Talvez seja meu livro preferido, e não me refiro apenas à escrita impecável. A brasilidade sem esforço presente em cada pagina, a migração, as casas flutuantes, o Rio Negro, a umidade, o calor, a proximidade com os índios, a promiscuidade familiar, e, principalmente, a particularidade da geografia me obrigaram a conhecer os cenários do romance um mês depois de tê-lo lido. Coisa boa o Brasil ver o Brasil. Ainda mais com o gênio Fagundão naquelas imagens à la Visconti do Luiz Fernando Carvalho.
E o que a americana de “Kramer vs. Kramer” tem a ver com isso? Bom, aí voltamos à dupla dinâmica liderança e maturidade. Quando uma atriz como Meryl Streep usa o microfone e a audiência imensa de um Globo de Ouro pra falar da importância da diversidade e da responsabilidade de estar no poder, bom, então estamos falando de duas vozes contra o status quo.
Espero que nosso presidente — que não foi ao Amazonas, mas está em Portugal, que está mais fresquinho — tenha chance de assistir à série. É uma beleza uma obra dessas na TV aberta. Mas, qualquer coisa, se ele preferir ou achar mais chique a língua inglesa, o discurso da garota grande de New Jersey já é alguma coisa.