Análise lúcida de um delegado sobre a sociedade e o sistema prisional

Análise lúcida de um delegado sobre a sociedade e o sistema prisional

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O senso comum de que “bandido bom é bandido morto” e o efeito boomerang de nossa hipocrisia social na “surpresa” com as barbáries dos centros penitenciários brasileiros

Por Fábio Henrique Fernandez de Campos

A ideia de que a pessoa presa (ainda que provisoriamente) merece o inferno das masmorras superlotadas e criminógenas replica-se na justificativa de que, afinal de contas, “cometeu crime e merece não ser tratado como humano”, não é incomum de ser ouvida no cotidiano e, mais que isso, faz parte do senso comum reproduzido pelo apego ao “processo penal do espetáculo” e a chamada “datenização” do direito penal.

O mero fato de um suspeito ser apresentado à mídia gera efeitos curiosos, afinal, em grande maioria sequer foi julgado definitivamente pelo poder judiciário, mas a condenação pública já foi decretada, ali, no programa de televisão com apresentadores que parecem moldar, nacionalmente, um “tipo ideal” (no sentido weberiano do termo), diariamente defendendo a pena de morte (não importa se a Constituição sequer aceita reforma neste sentido), massificando ideia de que “bandido bom é bandido morto”, de que “monstros não merecem direitos”, aplaudidos em comentários em redes sociais no efeito da democracia efervescente dos “revoltados pela internet”.

Mal se reflete que, por trás de tudo isso temos nosso sistema carcerário extremamente falido, altamente custoso aos nossos recursos limitados e mais ainda danoso tendo por constatação o chamado efeito boomerang que sofremos aqui fora, com o crime organizado lá dentro, das masmorras tidas por nós como “justas”.

Aqui não se discute o direito ao sentimento de revolta das vítimas e seus familiares ao sofrer um crime. Muito menos o direito de haver revolta social ante inúmeros crimes bárbaros que presenciamos cotidianamente. Não. Emoções, paixões são sentimentos comuns e justificáveis vindo da grande massa não envolvida com a persecução penal.

O problema se torna grave quando a classe política e também integrantes de órgãos responsáveis pela aplicação e estruturação dos poderes que tratam diretamente da persecução penal, em vez de agir de modo científico (o que demanda tomada de decisões contramajoritárias, logo, contrárias ao senso comum e que, claro, gera um “custo político”), tratam com espetacularização o Direito Penal e abarcam como doutrina única o senso comum reproduzido acima. E nesse “bolo” todos se incluem, a começar pela classe política responsável por destinar os recursos públicos, mas também nos órgãos como Judiciário, Ministério Público, Polícia Judiciária e até mesmo Defensores.

A Folha de São Paulo divulgou (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1847345-custo-de-preso-em-cadeia-privada-no-am-e-quase-o-dobro-da-media-nacional.shtml) no último dia 05 deste mês, que o preso no sistema privatizado de Manaus, custou em média R$4.112,00 ao mês, num total de R$301 milhões gastos com a empresa vencedora da licitação a prestar serviços em seis presídios naquele Estado. Gastou o dobro da média nacional, que é de R$2.400,00 mensais, por preso.

Em que pese o absurdo indiscutível dos valores gastos naquele Estado da Federação, sobretudo pelo submundo detectado no sistema carcerário por lá, que levou ao extremo da barbárie vista nacionalmente, somada à barbárie mais recente no Estado de Roraima, temos aqui um parâmetro econômico a ser adotado. Antes, vale ressaltar que somos a quarta maior população carcerária do mundo, segundo estudo divulgado em 2015, pelo Ministério da Justiça, com cerca de 607.700 presos, atrás apenas da Russia, China e Estados Unidos. Multipliquem isso por R$2.400,00 mensais e vejam o oceano de recursos públicos gastos.

Sob a ótica da análise econômica do direito, num cenário de recursos econômicos obviamente que limitados, não se torna complicado constatar o quanto é extremamente dispendiosa a manutenção de todo esse sistema e o quão é lucrativo, para alguns (ou “alguns vários”).

E para quê? Para de forma apática constatarmos o desenvolvimento, nos presídios, de várias e hoje praticamente incontroláveis organizações criminosas que, pelo modo de agir e aplicar suas próprias regras, ignoram e desafiam o Estado Democrático de Direito, na medida em que colocam todo aparato processual penal em estado de alerta, (Poder Judiciário, Defensores, Ministério Público e Sistema de Segurança Pública- polícias ostensivas e polícia judiciária), para o qual os autores desses crimes pouco estão se lixando, até porque sequer cobrem seus rostos ao posar em “selfies” despedaçando dezenas de corpos de facções inimigas .

O que ocorreu em Manaus e Roraima e na iminência de ocorrer em outros Estados da Federação, de fato, é bárbaro. Cabeças rolando por cima de corpos ensangüentados e os algozes filmando e por vezes rindo diante de toda a cena dantesca. Tudo isso replicado e difundido nas redes sociais, quase que instantaneamente.

Contudo, a par de ser bárbaro, não pode ser visto como “surpresa”, pela sociedade, muito menos pelos atores políticos envolvidos com a persecução penal. Isso é hipocrisia. Quando vemos Ministro da Justiça viajando, em emergência, para Manaus e bolando planos mirabolantes de segurança pública “a toque de caixa”, em que pese se pensar que “toda ajuda é bem-vinda”, sabemos que logo mais as notícias mudam, muda-se o foco e a grande massa social novamente apagará da memória todo esse problema e em seguida, estaremos de volta ao velho processo penal do espetáculo e do senso comum que difunde a teoria de que “bandido bom é bandido morto”, “os presos merecem a morte, tranque a porta da cadeia e toca fogo”, dentre outros sensos comuns difundidos.

A organização criminosa Primeiro Comando da Capital-PCC, foi criada em 1993, no presido paulista. Ou seja, há vinte e três anos. Tem faturamento estimado em mais de R$120 milhões de reais anuais. O Comando Vermelho (ou Comando Vermelho Rogério Lemgruber- CVRL), tem como origem a “falange vermelha”, criada ainda na década de 70. Logo, ou seja, nada de novo.

Como Delegado de Polícia há mais de uma década, este subscritor já participou de investigações no Estado de Rondônia, logo, não falamos aqui da região dos grandes centros, onde no interior do Estado, num presídio da cidade de Vilhena, com pouco mais de noventa mil habitantes, ainda em 2012, foi constatado que presos do PCC fizeram nada menos que 18 mil ligações de dentro da cadeia pública da cidade, organizando tráfico de drogas, ordens para roubos, etc.

A investigação foi apelidada na época de “Pilatos”, vez que, detectando que o centro da criminalidade vinha de pessoas já presas, as ordens de crimes estavam partindo de dentro do presídio, o que mais poderia ser feito? Prender os criminosos? Fato este que na época, a este articulista e a toda uma equipe de investigadores, se mostrou desanimador.

Em novembro de 2015, este mesmo articulista coordenou investigação de tráfico de drogas em que líderes, desta vez, do Comando Vermelho se mostraram em crescente desenvolvimento no Estado de Rondônia, com ligações constantes e em “conferência” com estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro, transportando durante as investigações, dezenas de quilos de drogas e buscando solidificar a organização criminosa no Estado montando um “paiol de armas”. As ordens de crimes fora do presídio não deixaram dúvidas de que o alvo do prejuízo deste sistema era justamente a sociedade. E os responsáveis, líderes deste sistema criminoso? Pessoas já presas, obviamente.

Mas não parou por aí, alguns meses antes, em julho de 2015, a Secretaria de Segurança do Estado de Rondônia, em ação coordenada pela Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas- DRACO, prendeu 98 pessoas dentro e fora dos presídios do Estado e mapeou uma imensa rede de integrantes do PCC nos presídios estaduais. Ordens de roubos, tráfico e assassinatos, todos partindo de dentro dos presídios. Mais uma vez não restaram dúvidas de que o “efeito boomerang” mais uma vez atingia em cheio a própria sociedade.

Na origem histórica, constatamos que pequenas “organizações locais” do crime, dentro do presídio, almejando subir na escalada do crime, se juntavam a essas facções maiores e cada dia mais tornaram o aparato estatal de repressão apenas um detalhe para a proliferação da violência, por vezes extremamente lucrativas entre seus integrantes, líderes.

Parece óbvio que, numa sociedade de mercado, onde até mesmo os valores e a felicidade são “mercantilizados” e dependem de algo criado para ser objeto de troca, o dinheiro, o lucro pode vir de todos os lugares e, a criminalidade, integrante de nosso sistema, não pensa diferente.

Assim, presos integrantes de um sistema carcerário bárbaro, trocam promessas de “proteção” dentro do presídio e se tornam quase que obrigados de se “filiarem” a algum “partido do crime” em troca de “obrigações criminosas” determinadas por esses “partidos”, agindo sempre paralelamente ao Estado “probo” e “justo” do mercado gerido pelos “homens bons”, aqui “do lado de fora”.

Então, a exemplo das investigações citadas acima, ocorridas no interior do Brasil, armas foram traficadas, drogas foram comercializadas entre Estados da Federação trazendo por vezes consigo nos tabletes de drogas apreendidos a inscrição, ou melhor, o “emblema” da organização criminosa, como se fosse outro produto qualquer, e a violência como algo talvez explicado da melhor forma pela criminologia cultural, como sendo subproduto do “prazer” e ou da “necessidade” entre aqueles que integram tais organizações, tornadas, cada dia mais, “lugares comuns” centralizados os comandos em nossos presídios.

Esse habitus do sistema criminoso se replica nacionalmente, fazendo o cotidiano da criminalidade se alimentar cada vez mais de pessoas praticando crime num cenário de capital econômico e social (no sentido dado pelo sociólogo Pierre Bourdier) orbitado dentro da própria criminalidade, integrando, hoje, a grande causa altos dados criminógenos em nossa sociedade.

Mas todo esse sistema é de amplo conhecimento de todos aqueles que lidam com sistema criminal. E claro, como em mercado, há concorrência pela obtenção e divisão dos lucros. E óbvio, há choque de interesses. O que ocorreu no Amazonas é parte de um sistema nacional de um mercado ilícito que vem se desenvolvendo há décadas e que agora, a solução não se mostra simples que pode ser resolvida com um plano rápido de segurança pública realizada por “teóricos” do sistema burocrático.

Hoje, nos deparamos com aquilo que o Professor e Juiz de Direito Alexandre Moraes da Rosa em seu “guia compacto do processo penal conforme a teoria do jogos” chamou Tragédia dos Comuns, onde uma armadilha social de fundo econômico, que envolve paradoxo entre os interesses individuais ilimitados e o uso de recursos comuns nos faz constatar sermos vítimas de um sistema onde gastamos muito, bilhões, com um sistema falido e que, pior ainda, é a origem de nossa grande massa criminógena que nos faz vítimas diante do já comentado “efeito boomerang”.

A solução de tal problema passa por análise dos efeitos do lucrativo caminho do tráfico de drogas e armas nas mãos de pessoas que já estão inseridas no sistema carcerário. Isso mesmo. Algo teratológico como “prender o preso”, vez que o espaço de dominação, seja hierárquica ou mesmo de relação carismática entre o detento e os líderes dos “partidos do crime”, mostra-se ocupado não pelo Estado, mas paralelamente a ele, num sistema instituído e contaminado entre as cadeias públicas e penitenciárias de todo o país, não só nos grandes centros, mas de cidades interioranas dos mais variados rincões deste país, como demonstrado neste artigo.

E como externalidade a todos esses efeitos, temos os mecanismos tecnológicos de comunicação usados por criminosos, como telefones e smartphones, que permitem acesso e contato direto em aplicativos como whatsapp ou mesmo elaboração de reunião em “conferência” entre integrantes da organização situados em diferentes regiões do país, não conseguindo sequer o Estado bloquear tais comunicações que se mostram como a grande “arma” da organização, além de ser fomentadora da corrupção dentro do sistema carcerário, afinal, tais aparelhos são introduzidos também por meio de corrupção, nesses ambientes.

Enfim, paradoxalmente, mais uma vez nos recorrendo a uma análise econômica da aplicação do Direito, o preço bilionário que pagamos pela execução penal no Brasil é paradoxal grande mola propulsora da criminalidade que nos afeta enquanto sociedade, vez que o sistema criminal, de quase 60 mil homicídio anuais (em toda Europa Ocidental não passe de 5 mil por ano), fomentada e somada ao tráfico de drogas, armas e crimes patrimoniais integradas e ordenadas pelas facções originadas do interior de nossos presídios, torna o aparato de segurança pública (polícias ostensivas e judiciária), bem como poder judiciário, expectadores de uma realidade crescente e pré-anunciada há mais de uma década.

E mesmo assim temos que conviver com notícias cíclicas de um “plano (emergencial) de segurança” a cada governo que se inicia em Brasília e a cada fato bárbaro retratado pela mídia, quando então se aloca cada vez mais recursos, cada vez mais policiamento ostensivo para que a população possa ver os comboios de viaturas com sirenes ligadas nos centros das grandes cidades (em locais situados bem longe do centro do problema), enquanto que ao mesmo tempo permanecemos mantendo o alto custo lucrativo (financeiramente para alguns) dos presídios e cotidianamente reproduzindo uma persecução penal maximizada em espetáculo, replicada por um senso comum de que as masmorras são lugares justos e devidos, enquanto muitos “bichos” são criados para devorar a vida de seus semelhantes, no caso, nós mesmos.

Fábio Henrique Fernandez de Campos é Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Ciências Criminais pela UNAMA. Mestrando em Direito Econômico pela PUC-PR. Delegado de Polícia Civil.

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