O frevo que se canta hoje no Recife

O frevo que se canta hoje no Recife

frevo

No 247
Por Urariano Mota

No Marco Zero, tocava uma orquestra afinada, passistas faziam um passo de acrobatas, cercados de gente de muitas idades e lugares. Mas eis que de repente, no azul do céu do cais, foi anunciado o frevo de bloco Evocação nº 1, de Nelson Ferreira.

Para mim, coisa melhor não há, e me deixei ficar em desarmada prelibação do que viria. Um calor de felicidade correu no peito em atenção à lembrança que guardamos da letra, da canção, do coral de Batutas de São José, do tempo imorredouro da melodia. Então a voz da cantora soltou:

“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon
Cadê teus blocos famosos?…”

Mas esses primeiros versos não dizem bem o que ouvi. Outra canção se fez presente já no começo, porque a cantora cometeu um “Fê-linto”. De imediato, esclareço que tal variação na prosódia local não é coisa boba, sem importância. Nós estamos falando de um hino da cidade. Trata-se de uma das maiores obras de Nelson Ferreira. Mas o melhor veio depois. Terminada a música, fui ao animador do encontro e lhe fiz ver que aquela “pronúncia” não era conforme a original. Então ele me respondeu com o ar mais puro da tarde:

– Todos cantam assim.

Eu lhe respondi:

– A gravação original da Evocação nº 1 não é assim.

O rapaz ficou atônito. Que coisa mais chata é esse cara vir dizer que estão cantando mal Nelson Ferreira. Mas ele foi salvo por uma senhora, que a tudo ouvia e, mesmo sem ser chamada, achou por bem intervir. Ela me mostrou o celular onde estava a letra da Evocação no trecho “Felinto, Pedro Salgado….”. E me disse:

– Está vendo? É assim que se escreve: Fê-lin-tô.

Toma, além de me ver como um homem sem memória, ela me transformou num analfabeto. Eu lhe respondi:

– É assim que a senhora lê? Fê-lin-tô?

– Sim – E me fitou de cima a baixo, indignada, como a me responder “se o senhor não sabe ler, o problema é seu”. Mas veio mais suave, apesar de autoritária: – Eu sou professora de português.

– Então a senhora sabe que as palavras não se leem como se escrevem.

– É? Saiba que português não é inglês. É diferente: aqui a gente lê como se escreve.

Vocês veem que era um diálogo impossível. Uma verdadeira peleja do bem, que é a nova pronúncia, contra o mal, que pesquisa a história de uma cidade. E o mal sempre perde no fim. Mas para o leitor retomo a palavra que não pôde ser ouvida. Primeiro, escute a gravação original da Evocação nº 1. https://www.youtube.com/watch?v=7FNhDiqLErY

Ouvimos Filinto, não é? Depois, ouça os Fê-lintos, até no Bloco da Saudade.

Lembro que a mudança no som das vogais não é exclusiva da Evocação nº 1. Cantam agora o Bloco da Vitória, de Nelson Ferreira, assim: “quando o povo dê-cide”.

Ora, o verso de Nelson vinha do refrão eleitoral “quando o povo diz Cid”. O original do Bloco da Vitória fazia um trocadilho entre “o povo diz Cid”, da campanha de Cid Sampaio em 1958, e o verbo decidir. Daí que “diz Cid” virou “decide” na letra e dicide no som.

Mas por que a mudança hoje? Seria uma evolução natural da língua, que virou a nova prosódia pernambucana? Na verdade, os cantores dos frevos de bloco reproduzem um modelo de fala que julgam culta, educada. É constrangedor ouvir, ver blocos de carnaval do Recife submissos à prosódia dos apresentadores de televisão. Cantam Nelson Ferreira traduzido para um modelo de locução que vem de fora. Nada mais antipernambucano, violentador da história da cidade.

A nossa elite não sabe, despreza: a fala popular é a própria língua da história. A população fala a língua que guarda um fio de continuidade entre a identidade de um lugar e a civilização. Os professores deviam gravar a fala do povo nas feiras, nos mercados públicos. Aí aprenderiam que Felinto sempre foi Filinto, jamais Fê-lin-tô. Pelo menos no Recife.

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