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DORIA IMITA COLLOR E CORTA O LEITE DAS CRIANÇAS

É preciso retornar a um dos períodos mais dramáticos da história brasileira recente para se avaliar a decisão do prefeito João Dória Jr de promover um corte gigantesco e nefasto no programa de leite da prefeitura de São Paulo.

Pela decisão, o programa será reduzido em 53%. Perto de 700 000 crianças que estudam na rede pública, com de 7 anos de idade ou mais — pelo programa em vigor, o benefício era assegurado até os 14 anos — serão excluídas. Permanecem apenas crianças de 0 a 6 anos. Até agora, a cota fornecida pela prefeitura era de 2 quilos de leite em pó por mês para todas as crianças. Agora, as crianças que vão à escola — aquelas que tem menos de sete anos, estamos entendidos — passam a receber meia ração, de 1 quilo. Crianças que não tem vaga nas escolas, serão incluídas, com a ração de 2 quilos — numa estratégia típica dos programas compensatórios estruturados a partir dos primeiros ataques ao Estado de bem-estar social dos países europeus.

O padrão de irresponsabilidade social envolvido nesta decisão é coerente com o esforço federal do governo Michel Temer para desmontar os embriões de estado de bem-estar social construídos ao longo de nossa história. Mas Temer não foi tão longe. No final de 2016, recém-empossado após o golpe, mas já exibindo aquele apetite incontrolável para agradar aos mercados e cortar gastos de qualquer maneira, numa tesoura que sempre mais afiada para lanhar o lombo dos mais pobres, o governo Temer-Meirelles ensaiou suspender as remessas de recursos que ajudavam a pagar o leite das crianças paulistanas. O prefeito Fernando Haddad reagiu e Brasília voltou atrás.

Na prática, o corte de 53% do leite só tem uma medida comparável, em tempos recentes, a uma iniciativa de Fernando CollorNa curta permanência no Planalto, Collor aproveitou um conjunto de escândalos que envolviam a Legião Brasileira de Assistência, a velha LBA criada por Getúlio Vargas, para fechar as portas da instituição e cancelar programas sociais que, apesar dos desvios e denúncias, representavam um benefício real a população pobre e superexplorada. Uma delas envolvia, justamente, o Tiquete Leite. Iniciativa de José Sarney, que sempre foi julgada pelos critérios das pessoas que não enfrentam carências materiais para sobreviver, o projeto estimulou um aumento do consumo de leite em 15% em escala nacional, ou 5 milhões de litros por dia, gerando um efeito positivo sobre a dieta da população, como mostra o estudo “Fome: história de uma cicatriz social,” de Claudio Cerri e Ana Claudia Santos. E aqui há outro dado preocupante, quando se compara a crise de 1990 e a de 2017.

Naquele país que enfrentava uma recessão produzida pelo choque econômico iniciado pelo confisco bancário, essa medida ajudou a aprofundar a miséria e o sofrimento da maioria dos brasileiros. A linha da pobreza se ampliou e as grandes cidades brasileiras foram inundadas por uma massa de cidadãos e suas famílias sem ter o que comer nem onde morar, ocupando espaços disponíveis para implorar por ajuda e comida, disputando lugar inclusive no Viaduto do Chá, onde o prefeito despacha.

Neste ambiente de humilhação e falta de perspectiva, ocorreu uma primeira reação a partir da mobilização que criou Comitês contra a Fome e a Miséria, já no governo Itamar Franco. Numa resposta a destruição nos programas do Estado, a própria sociedade arregaçou as mangas para enfrentar a situação. Uma primeira versão do programa de leite foi instituída em São Paulo, em 1995, na gestão de Paulo Maluf — numa demonstração de que mesmo um prefeito de impecáveis credenciais conservadoras era capaz de reconhecer a necessidade de dar uma resposta a carência dos mais pobres se pretendia ter algum futuro político.

Numa conjuntura em que o país enfrenta a pior crise econômica do século, cuja recuperação não se enxerga para breve, a decisão de Dória é um ato de crueldade social. Pode-se imaginar que outros virão, num percurso coerente com um projeto político de Estado que só é Mínimo para atender aos mais pobres e superexplorados. Para os de cima, a perspectiva é transformar a cidade num parque de diversões a ser explorado. Vale até privatizar cemitérios.

Num esforço para encontrar uma justificativa para a medida, Dória chegou a dizer: “não faz sentido sentido um gasto público enorme para dar leite a adolescentes.” Trata-se de uma improvisação complicada do ponto de vista da pediatria. O conceito de infância varia de uma instituição para outra e mesmo de uma pessoa para outra. Há mesmo quem diga que a adolescência só tem início aos 15 anos. Em qualquer caso, não há quem diga que ela comece antes dos dez, faixa etária onde se encontram 3/5 dos prejudicados pela decisão do prefeito de São Paulo.

Na verdade, pesquisas de gestões anteriores da própria prefeitura mostram que o “gasto público enorme para dar leite” é um meio eficaz para proteger toda família que se encontra no lado desfavorável da distribuição de renda — o programa atende residências com uma renda familiar máxima de R$ 2800 por mês. Naquelas residências em que, por uma razão ou outra, o pré-adolescente ou mesmo adolescente não consome leite, costuma-se fazer uma permuta por carne ou frutas junto a comerciantes locais, solução que assegura o objetivo real: assegurar todos estejam alimentado quando comparecem à escola.

Por razões que todos podem imaginar, a medida jamais foi anunciada nos programas eleitorais mas constitui um retrato realista de sua gestão. Não deixa de ser simbólico, porém. Na hora de tomar uma medida para mostrar a que veio, Dória cortou o leite das crianças. Feio, não?

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