QUEM MATOU DANDARA?

QUEM MATOU DANDARA?

DDEUS

Por Lelê Teles

ao meu lado, com fones de ouvido, uma mocinha via um vídeo no smartphone.
e reagia ao que via.
contraía o corpo, crispava os lábios, apertava as coxas.
ora emitia um “ai” dolorido, ora esticava as pernas e os braços como que querendo sair de si mesma.
do meu assento eu sentia o corpo dela tremendo.
então, a mocinha começou a chorar.
e o seu choro ficava cada vez mais intenso e dolorido, parecia que alguém a espancava.
o metrô deslizava indiferente.
como indiferentes seguiam os passageiros.
uns iam ao trabalho, outros à escola. cada um com a sua preocupação, cada qual tentando fugir de suas dores.
curioso, tentei ver o que a moça via.
olhei pro lado, de relance, e percebi que aquela mocinha sentia as dores de outra pessoa.
pelo que consegui ver tratava-se de mais um linchamento, um grupo de homens espancava uma mulher.
de pé, com uma gravata amarela e uma mochila de lona pendendo de um ombro, um homem de meia idade lia o volumoso Vade Mecum e, vez por outra, olhava para a mocinha como se o pranto dela o incomodasse.
o vagão estava cheio, mas não lotado.
um jovem, com uma sacola pendurada ao pescoço, passou a gritar que era ex-usuário de crack e que vendia balas de hortelã para pagar a clínica evangélica que o recuperava.
as pessoas compravam as balas não por quererem chupá-las, mas por vontade de ajudar o infeliz.
o ex-drogado usava uma técnica de persuasão sofisticada:
falava de suas dores, dizia que tinha duas filhas e uma esposa doente em casa, que se sentia um vitorioso por estar limpo e agradecia, previamente, a cada uma daquelas pessoas no metrô, dizendo que elas eram responsáveis pela sua recuperação e que Deus, por isso mesmo, iria abençoar a todos os que o ajudassem.
e tascava versículos para legitimar sua fala.
saquei um lenço umedecido da mochila e dei pra mocinha se livrar da coriza que lhe escorria pelo rosto junto às lágrimas.
ela tirou os fones, me olhou e disse: “quanta dor eu sinto, moço. quanta crueldade no coração destes homens, quanto ódio”.
antes que eu dissesse qualquer coisa, um PM, fardado, que estava de pé à nossa frente, disse à mocinha: “pra você ver como é o brasileiro, sempre do lado dos criminosos. você nem sabe o que esse sujeito fez, a maioria destes travestis comete crimes durante a noite”.
a mocinha, soluçando, respondeu: “mas que crime alguém poderia cometer para ser espancada até a morte, seu guarda?”
“oxe, e a senhora tá chorando por causa de um travesti, é?”, perguntou o evangélico ex-drogado que vendia balas de hortelã.
a mocinha tentou mais uma vez: “ela é um ser humano. como eu, como você”.
“ela, não, ele”. disse o drogadicto. “onde já se viu homem de vestido?”
“Jesus era homem e usava vestido,” eu disse ao ex-drogado.
“só me faltava essa”, redarguiu o sujeito do Vade Mecum, “agora o senhor vai comparar Jesus Cristo a um travesti? esses esquerdistas são uma piada”
e assim começou um grande bate boca no vagão do metrô.
a maior parte da moçada tinha visto o vídeo onde Dandara dos Santos era cruelmente espancada por cinco trogloditas no Ceará.
o fato do PM, do evangélico e do suposto advogado terem tomado partido contra a vítima encorajou outras vozes.
algumas mulheres falavam em defesa de Dandara, suas vozes eram sufocadas pelas dos homens.
somente a voz das mulheres evangélicas eram ouvidas sem interrupção, elas também ratificavam que a travesti deveria ter provocado aquela selvageria e que o que ela fazia era destruir famílias e dar mal exemplo para as crianças.
a mocinha do meu lado tinha cabelos cacheados como o meu e a pele escura como a minha.
como mulher e negra ela sentia mais profundamente a dor da travesti porque era uma dor que ela compreendia.
as mulheres também estão a ser mortas todos os dias por brutal agressão, somente por serem mulheres.
negras e negros morrem todos os dias, ou são encarcerados sem condenação, somente por serem negros e negras.
aquela travesti foi morta por ser travesti e não por ter cometido qualquer crime.
ser travesti não é crime, nem é pecado.
ser cisgênero não é regra e nem é lei.
naquele vagão, a maioria parecia discordar dessa linha de pensamento.
eram potenciais criminosos acusando suas potenciais vítimas de um crime inexistente para justificar sua vontade de criminar.
como pode uma nação que se diz miscigenada e multicolorida suportar conviver com essa patologia horrenda de sentir ódio do outro, de sentir ojeriza da alteridade, de demonstrar desprezo ao diferente?
senti que o ódio que demonstravam à travesti brutalmente espancada poderia ser transferido àquela jovem negra, sua defensora.
assim que o metrô parou na estação, e sob o protesto ensandecido da turba odiosa, peguei a mocinha pela mão e nos retiramos daquele inferno.
ali, naquele vagão, com os ânimos acirrados, o PM, o ex-drogado, o advogado branco, os machões exaltados e as evangélicas histéricas poderiam espancá-la por chorar a dor de uma travesti brutalmente torturada.
os torturadores de Dandara não agiram só, o fizeram porque estavam encorajados por uma multidão.
meu nome é legião, disse satanás!
palavra da salvação.

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