O governante que for um perfeito homem do nosso tempo é uma figura trágica.

O governante que for um perfeito homem do nosso tempo é uma figura trágica.

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O que fazer para que os meus súditos acreditem que eu sou presidente?

Contardo Calligaris
No Almanaqueiras

Simples: Donald Trump é um perfeito homem do nosso tempo. Essa caraterística, aliás, fez dele um candidato imbatível. Os outros, republicanos ou democratas, eram que nem a gente: indivíduos do nosso tempo, mas apenas parcialmente –não perfeitamente.

O perfeito homem do nosso tempo é constituído do olhar dos outros. Você não é nobre porque nasceu num castelo, mas porque as pessoas acreditam que você seja. É a opinião de seus pacientes, e não o diploma, que faz de você um médico. E você é motorista de táxi se seus clientes avaliarem bem suas corridas.

Está ótimo assim. Eu não gostaria de voltar a um mundo em que o nascimento e os carimbos recebidos decidissem quem somos e o que podemos vir a ser. Gosto da nossa época, mas”¦ em termos. Por quê?

Porque o perfeito homem dos nossos tempos depende completamente da opinião que os outros têm dele. Ele é narcisista num sentido bem específico: passa o tempo espreitando sua imagem no espelho para descobrir o que os outros veem quando olham para ele. Gostam? Respeitam? Admiram? Invejam? Temem?

O olhar dos outros vai lhe dizer se ele é quem ele queria (ou seja, quem os outros esperam que ele seja). Ele pode até ser competente –se essa for a expectativa dos outros.

Em 1815, Benjamin Constant (o escritor francês, não o brasileiro) celebrou a queda de Napoleão afirmando que a era expansionista dos militares seria substituída pela era dos mercantes, os quais não gostam de conquistar, mas preferem se relacionar para vender e comprar.

O corretor de imóvel e o vendedor de carros querem ser gostados por seus clientes, e a guerra não é um bom jeito para ser gostado. Será que começaria uma nova época de paz entre os povos?

Benjamin Constant pecou por otimismo: as guerras continuaram. De fato, os mercantes são governantes perigosíssimos. Vamos ver por quê.

O governante do nosso tempo, narcisista no sentido definido antes, é sempre inseguro, devorado pela necessidade de que o olhar dos outros confirme sua legitimidade. O que fazer para que os meus súditos acreditem que eu sou presidente?

As autoridades tradicionais podiam ser burras e sanguinárias, mas não precisavam se afirmar constantemente aos olhos dos súditos, elas “eram” autoridades –ponto.

As autoridades narcisistas, ao contrário, sabem que seu domínio é instável, sempre suspenso ao olhar dos súditos. Um dia, Mussolini era idolatrado; no outro, seu cadáver era cuspido pelos passeantes.

O governante que for um perfeito homem do nosso tempo é uma figura trágica. Quem ele é não depende de quanto ele sabe, nem de como ele age e pensa. Ou seja, seu ser não depende de sua competência, só do olhar dos outros. Portanto:

1. Ele pode chegar a cultivar sua própria ignorância como um valor (vai que o povão acha isso legal). Criticado por tomar decisões na base do instinto, ele pode responder como fez Trump a Michael Scherer, da “Time”: “não posso ser tão ruim assim, porque, afinal, eu sou presidente, e você não é”.

2. Ele não tem como tolerar críticas (sua legitimidade é fundada apenas na suposta aprovação de todos) e só pode aceitar uma mídia apologética e totalmente cúmplice.

3. Ele se informa pela televisão e comenta nas redes sociais. Pouco importa que ele seja bem informado: o que importa é que ele possa reagir às notícias que a grande maioria está vendo “junto com ele” e que ele possa, então, encarnar os sentimentos dessa maioria.

De fato, o homem mais poderoso do mundo passa a noite na frente da televisão e no Twitter, comunicando aos internautas suas emoções, seus projetos de leis e, eventualmente, suas ordens militares.

No fundo, o perfeito homem de nosso tempo, quando governa, não governa para o bem ou segundo estratégias meditadas e informadas, ele governa para acumular seguidores na sua rede social preferida.

Daqui a alguns anos, quem sabe um novo Stanley Kubrick, com um novo Peter Sellers, filme um novo “Dr. Fantástico” sobre um presidente nas primeiras décadas do século 21.
Será também um documentário sobre a personalidade narcisista, dominante no nosso tempo, e seus efeitos. Se o mundo tiver sobrevivido sem catástrofes e se estivermos ainda a fim de rir, será engraçado.

Mais um comentário: os eleitores podiam não enxergar a personalidade de seu candidato. Mas as elites republicanas, sem dúvida, sabiam.

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