No Almanaqueiras
Acordem. Amigos Policiais, Promotores, Procuradores, Juízes, Desembargadores. Acordem. Em nome de uma obsessão, vocês estão destruindo o sistema processual penal, já tão combalido, do Brasil. Acordem, antes que seja tarde demais, antes que vocês tenham a pagar um preço histórico que poderá ser irresgatável.
Amigos e Amigas que ainda tenho nessas instituições, pensem, ponderem, reflitam, ainda há tempo, eu lhes peço.
Ontem, o Brasil assistiu a um espetáculo deprimente. Uma população perplexa teve a visão do pior da Justiça Criminal: ela é feita para perseguir pessoas, ela se presta e admite impor juízos de valor negativos, ela não parece conhecer limites éticos, ela não necessita de um crime, mas de alguém para ser culpado, alguém para ter sua cabeça, feito Tiradentes, colocada em poste de ignomínia.
A Justiça Criminal, aos olhos da pessoa comum, de quem se aperta no trem, no ônibus, na rua, de quem vira a madrugada esperando uma vaga em creche, que vagueia pela noite em busca de um posto de saúde, que treme de medo quando vê a viatura da polícia dobrar a esquina, para esses, a Justiça Criminal é terrível, opressora e profundamente eletiva.
Amigos, acordem. Nunca condenamos tanto por tão baixa qualidade de prova, nunca nos percebemos que viria o dia em que a culpa seria a presunção verdadeira, restando à inocência a presunção rejeitada. Acordem, há milhares de pessoas presas sem culpa alguma do que lhes acusaram.
Uma obsessão pela prisão de um único homem os tornou cegos, o único, que, depois de Zumbi, saiu das classes populares e reinou e cometeu acertos e erros. Essa obsessão está fazendo tudo ruir, creiam.
É de sair aos gritos pela rua ver pessoas que se mataram para aprovação em concursos que exigem a vida, a juventude, que fazem sacrificar amores, casamentos, sonhos, ideais, que demandam anos de estudos e de estudos muitas vezes do inútil e do desnecessário, entregarem-se a uma fantasia, a um delírio coletivo, que os faz incorporar valores e os fazem adquirir ódios que jamais tiveram, mas que se voltam contra o comum das gentes, os pequenos criminosos, os viciados, os ladrões, as mulheres caídas, todos destinatários de ódio depurador, que ninguém consegue mais saber onde se adquiriu, acabado e sem possibilidade de enfrentamento, porque é monolítico, irremomível.
Acordem do ódio ao direito de defesa, da apatia da produção em larga escala de injustiças e violações de direito. Acordem, juristas.
Por um momento, quebrem a corrente perversa que os fez acreditar que vivemos uma guerra contra o crime. Não há guerra alguma, creiam. Essa guerra só matou miseráveis, adolescentes, os indefesos; faz criar monstros urbanos imaginários, torna inimigo quem teria que ser tratado como irmão. O que nos faz existir é a compaixão pela dor da vítima e o respeito pela dor do réu. Não há gozo no crime, mas sofrimentos de todos os lados.
Aos que me detestarem, aos que estiverem fartos de mim, esqueçam que sou eu a falar, mas apenas, ainda que solitariamente, ainda que ninguém precise perceber, ainda que em algum momento de solidão, de encontro com os espelhos da alma, reflitam, procurem, de alguma forma, recordar em que momento perdeu-se o passo e se deu troncos aos frutos da intolerância tão radical, desse positivismo raso e sectário. Deve haver, sempre há, um retorno, uma forma de sair desse túnel sinistro e escuro em que nos metemos, levados pela obsessão que não deveria ser nossa e nem deveria existir.
Acordem. Despertem dessa catarse. Tomem de volta a compaixão e o respeito à dignidade humana, abominem a superlotação carcerária, soltem esses milhares de jovens, quase homens e quase mulheres, tornados adultos por nossa incompreensão.
Abram as janelas da mente e as portas das prisões; juro que nada acontecerá e que nenhum índice de criminalidade será elevado. Vocês são os únicos que podem fazê-lo, apenas vocês, amigos, podem nos livrar da sensação do estupro que vêm com as revistas vexatórias, só vocês podem quebrar essa dependência cega da verdade absoluta, somente aceita de um dos lados desse artificial confronto policial das ruas. Parem as máquinas da Indústria do Medo, está nas mãos de vocês. Somente vocês podem nos livrar da glorificação dos canalhas delatores, esses que entram no processo pela porta dos fundos, para salvar a própria pele camaleônica e nada mais.
Acordem, antes que vocês sejam tragados, antes que as matilhas punitivistas comecem a sentir cheiro de sangue perto de vocês, antes que seja tarde demais.
Acordem. Ainda resta tempo, cada dia mais escasso.
Um forte abraço desse amigo,
Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway. Procurador de Justiça do MPSP Aposentado.