Internar usuários de drogas à força, como a gestão João Doria (PSDB) solicitou à Justiça, é uma ação “ridícula” que não resolverá o problema da cracolândia em São Paulo, avalia o neurocientista Carl Hart, professor titular da Universidade de Columbia, em Nova York (EUA).
Da BBC
Para Hart, que estuda drogas há mais de 20 anos, é preciso descobrir quem de fato é viciado entre frequentadores desses espaços e, depois, desenvolver tratamentos individuais para os dependentes químicos.
“Embora usem crack, muitas pessoas não são viciadas e têm outros problemas: psiquiátricos, relacionados à pobreza. Precisamos descobrir exatamente o problema de cada pessoa, e isso demandaria grande comprometimento e mais inteligência na abordagem”, afirmou Hart à BBC Brasil.
‘Fiquei seis anos sem ver meu pai e o reencontrei… na cracolândia’
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo não comentou as considerações do professor.
As pesquisas de Hart, autor de Um Preço Muito Alto – A Jornada de Um Neurocientista Que Desafia Nossa Visão Sobre Drogas (editora Zahar), inspiraram programas como o Braços Abertos, programa da gestão Fernando Haddad (PT) extinto pelo governo Doria.
No programa anticrack da gestão petista, dependentes químicos ganhavam moradia em hotéis da cracolândia e R$ 15 por dia se trabalhassem em atividades como varrição e jardinagem.
No último domingo, uma grande operação policial dispersou à força dependentes químicos que se reuniam na cracolândia, fechou comércios e hotéis usados no Braços Abertos. Na terça, três pessoas se feriram durante a demolição de uma pensão pela prefeitura.
A gestão Doria também pediu à Justiça autorização para realizar internações compulsórias de dependentes de crack, desde que o usuário passe por análise médica e psicológica. Hoje, esse tipo de encaminhamento cabe à Justiça. A prefeitura solicitou ainda autorização para retirar dependentes da cracolândia e enviá-los para avaliação médica contra sua vontade, o que seria uma “última alternativa” para casos graves.
“Minha primeira impressão é que o novo prefeito está colocando a politica à frente das pessoas. Se o objetivo é ajudar outras pessoas da sociedade, é preciso descobrir um modo de incluí-las nessa sociedade”, disse Hart.
Comportamento racional
Professor de Psicologia e Psiquiatria, Hart questiona a visão de que as drogas tenham alto poder viciante e sejam a causa de diferentes mazelas sociais. Ele diz reconhece que há quem abuse delas e sofra efeitos graves no cotidiano, mas diz que concluir que as substâncias sejam o problema – e declarar “guerra” a elas – é um erro.
Criado em um bairro pobre de Miami e traficante de maconha na adolescência, Hart diz que começou a estudar neurociência porque queria ajudar a resolver o problema do vício em drogas. Ele afirma que acreditava na visão predominante nos EUA na segunda metade dos anos 1980, que explicava o crime e a pobreza em certas regiões pela disseminação do crack.
Um primeiro passo em suas pesquisas foi a descoberta, segundo ele, de que drogas como crack não são tão viciantes como se pensa. “Não há droga que vicie em uma dose. Dados mostram claramente que 80%, 90% das pessoas que usam drogas não possuem um ‘problema com drogas”, afirmou Hart em conferência em 2014.
O pesquisador costuma citar o tabaco como a droga mais viciante (33% dos fumantes, ou um em cada três, ficará dependente, diz), seguida por heroína (25%), cocaína e crack (15% a 20%), álcool (15%) e maconha (10%).
“Eu mesmo achava que o problema eram as drogas, mas não é. Há pessoas em São Paulo que têm dinheiro e bens, usam drogas e estão bem. Mas elas tem oportunidades, empregos, todas as coisas. Muitas das pessoas na cracolândia tiveram educação precária, não têm emprego, vem de famílias excluídas da sociedade. Há todos esses problemas sociais, mas é fácil para um político dizer ‘vamos livrar a comunidade dessa droga’ e não lidar com os problemas dessas pessoas pobres”, disse à BBC.
Para estudar o comportamento dos dependentes, ele publicou anúncio em revista à procura de viciados nas ruas de Nova York. Oferecia US$ 950 para que fumassem crack produzido a partir de cocaína de padrão farmacêutico, desde que permanecessem vivendo em um hospital por três semanas durante o experimento.
No começo de cada dia, uma enfermeira colocava uma dose de crack em um cachimbo e oferecia ao usuário – vendado, o dependente não tinha como saber o tamanho da dose. Depois, cada participante recebia novas ofertas para fumar aquela mesma dose, mas também poderiam optar por uma recompensa, que às vezes eram US$ 5 ou um vale-compra do mesmo valor.
Quando a primeira dose era alta, os dependentes normalmente optavam por uma nova dose. Mas, se a primeira havia sido reduzida, era mais provável que abrissem mão da segunda rodada.
O neurocientista chegou aos mesmos resultados ao repetir o experimento com usuários de metanfetamina. E quando elevava a recompensa alternativa para US$ 20, todos os viciados, de crack e metanfetamina, optavam pelo dinheiro, mesmo sabendo que levariam semanas para embolsar os valores.
Para Hart, isso mostrou que dependentes químicos são capazes de tomar decisões racionais, desmontando a “caricatura” do viciado que não consegue resistir a uma dose.
Daí a ênfase do pesquisador na investigação das causas do vício de cada pessoa antes da “difusão de mitos sobre as explicações” e da “intervenção com soluções prontas”. Se alguém está abusando do álcool ou do crack para lidar com algum trauma ou ansiedade, o tratamento efetivo, afirma, deveria se focar no transtorno psicológico.
Empatia e compaixão
Hart afirma que, embora “não fosse perfeito”, o programa Braços Abertos era “um passo na direção certa” porque demonstrava, diz ele, “compaixão” com os dependentes.
“Certamente isso não é o que o atual prefeito está fazendo ao chamar a polícia e limpar a área. Isso mostra às pessoas que ele não tem compaixão e que está fazendo politica com pessoas”, disse o professor, que vê o Brasil hoje na mesma situação dos EUA nos anos 1980 em relação ao crack, pelo foco que vê como excessivo na repressão.
Ele cita os programas para dependentes de heroína na Suíça, onde o governo fornece duas doses diárias aos inscritos e uma renda básica aos cidadãos, como exemplo de política de drogas de sucesso e “não moralista”.
“Claro que a Suíça é uma sociedade homogênea (social e economicamente), praticamente toda branca. É mais fácil para essas pessoas ver esses usuários de drogas como irmãos e irmãs. O Brasil é como os EUA, muito diverso racialmente. Pessoas em lugares como a cracolândia são basicamente afro-brasileiras, negras. As pessoas em sua sociedade não as veem como irmãs, como na Suíça”, avalia Hart, que foi o primeiro neurocientista negro a se tornar professor titular em Columbia.
A empatia, diz Hart, é um recurso fundamental para enfrentar a questão da dependência. “Se não lidarmos com essa questão, não resolveremos esse problema. Se isso não é tratado de forma clara, estamos apenas fingindo tratar do problema.”