O BAR DO RAIMUNDÃO
(Av 7 de setembro – defronte ao Mercado do Km 1, Porto Velho/RO)
“O Bar pode até ser o mesmo, mas o dia a dia por lá é sempre temperadamente inovador. É chegar, pedir uma e esperar pra ver e viver!”
Por: Altair Santos (Tatá)
No mês retrasado (abril) resolvemos ir ao bar o que, a nosso respeito, não chega a causar espanto ou configurar novidade afinal, por lá, transitamos algumas vezes nessa nossa jovem existência. Disso imbuídos, nos ocorreu içar velas e empreender aventura singrando mares já dantes navegados para dar de proa com o vento e, porque não, ao ensejo da viagem, exercitar os costumeiros goles e tragos, nem sempre nos padrões sociais e moderados como a maioria esmagadora diz de si quando a pergunta é: você bebe?
Movidos pelo álibi de ver e saber como estão as coisas nessas casas de apoio rumamos orientados pela bússola da curiosidade andando caminhos que, sem esforço, faríamos até de olhos fechados. Era 22 de abril e iniciamos o tour que aqui breve e fielmente transcrevemos, sem afear e, tampouco aformosear, do modo mesmo como fizera Pero Vaz de Caminha, em 1500, na sua carta à coroa portuguesa dando conta do descobrimento.
O sol ainda brando beijava os tetos da cidade enquanto subíamos a 7 de setembro sentido bairro. Na calçada do Colégio Murilo Braga, fizemos breve pausa, lançamos um olhar comprido e, lá adiante, a uns 60 ou 70 metros, nossos olhos com o zoom caprichado alcançaram um movimento com tez de muvuca, um entra e sai desordenado. A luz vermelha do semáforo na esquina com a Rua Brasília, nos fez esperar até que, um pouco mais perto, em cores vivas, algo interessante se nos foi revelado e nos fez soltar o grito interior: Bar a vistaaaa! Uma descoberta? Claro que não, apenas o já conhecido e tradicional Bar do Raimundão, oásis para os corajosos e sedentos matinais que ali aportam.
Da calçada da Feira do Km1, olhamos com minúcia para ver quem, quantos eram e o que faziam, além de beber, os que lá estavam e folgavam. Antes mesmo de serpentear por entre os carros na movimentada via e aportar ilesos na calçada do boteco, nossos tímpanos tremularam frágeis, invadidos por um grito potente em decibéis acima do permitido que veio lá da parte sombria, no fundo do bar. Ei Tatááááááá vem cá meu amiiiigo! Era um conhecido das antigas que nos recepcionou com aquela intencional honra e cerimônia, com paramentos de cortesia e “miguelagem.”
O sujeito experimentado e aprofundado com doutorado e tudo na teoria e prática do “cerca lourencismo alugandis” nos disse: “mermão” faz tempo que não te vejo, “qualé” cara, tu anda por onde hein, “eraste” tu sumiu né, me dê um abraço! Escuta só, eu sei que tu não vai desafinar o canto agora, entendeu? Aqui o papo é reto, paga logo uma para o seu amigo velho e deixe um trocado pra tomar outras duas depois mais, poder ser? Claro que pode né? Perguntou e respondeu sem nos dar a chance mínima de respirar, refletir e declinar da doação.
Sorte lançada e o “plá” 100% convincente mesmo sendo um canto de sereia com bafo de cachaça, lá se foram 10 reais que lhe fizeram brilhar os “zolhos.” Verba assegurada e agora, senhor de si, falando de igual pra igual com os demais presentes ele, em pose de maioral, se acotovelou e deu um soco no balcão exibindo os dez mangos e pediu: desce uma aí Raimundão, pago à vista!
Um outro, também diplomado na FMCL – Faculdade de Malandragem Cerca Lourenço e que testemunhou a exitosa investida do comparsa, resolveu se achegar e aplicar o seu “vai que cola” usando o mesmo “argummentus bebum” que no latim botequista quer dizer papo de bêbado, impondo o seu manjado trololó para, ao menos, obter igual quantia. E lá se foram mais dez pratas fazendo estremecer em avaria o nosso puído bolso como a dizer estourar a cota de benevolência monetária do dia e acender o alerta, ou seja, estávamos quase lisos.
Em meio aos cumprimentos chegamos ao guichê onde o Raimundão, proprietário do comércio, contava o parcial apurado daquela manhã revezando olhares entre os caraminguás e o movimento no salão pois, lá, um bêbado chato, enfiava fichas de música de corno numa máquina e, de copo na mão, chorava ao ouvi-las, maldizendo vida entre “bafos e desabafos” gritando assim: De Lourdes sua bandida duma figa, vai embora peste desalmada e não volte nunca mais… Ante o escancarado infortúnio sentimental do moço, uns até tentaram mas ninguém soube quem era a De Lourdes e se era mesmo a bandida exortada e causadora daquela bagaceira humana diagnosticada com “cachiblema,” a traduzir-se: cachaça, chifre e problema, uma arrasadora tríade ultra perigosa e quase irreversível, de categoria infecto-periclitante, a conhecida cornagem.
Raimundão gentil e diligente nos ofereceu um tamborete mas quase não nos deu atenção pois tinha uma parte da clientela que estava muito alvoroçada e inquieta, talvez pelo redemoinho etílico que lhes bagunçava os arquivos de lucidez dentro da cachola. Pelo visto, ainda no começo, o dia prometia e muito.
E não deu outra. O furdunço continuou quando apareceu um baixinho falante vendendo relógio, chip pra celular e o tal “gel dotôzinho” que, segundo ele, cura de reumatismo a turbina de avião. Mas o carro chefe daquele marreteiro era o jogo do bicho para o qual usava a manjada cantada de perguntar a data do aniversário de um, o número do sapato de outro e, em cima disso, fazer equações e combinações mirabolantes de palpites pra vender as pules. Com o movimento fraco ele puxou logo uma discussão com uma mulher que vendia umas cartelas que nas domingueiras sorteiam motos, carros e quantias em dinheiro. Na contenda ele tentou desqualificar o produto da concorrente dizendo tratar-se de trambicagem e quase apanha da corretora não fosse, logo cedo, o Raimundão intervir enérgico e aos brados, pela ordem e respeito no lugar. O homem botou moral na coisa, que dizer, no bar.
Mas a sina do dia era mesmo a balbúrdia que aumentou quando um cidadão, aos gritos, se dizendo da igreja, e falando alto em nome do senhor entrou no bar jogando bênçãos e bem-aventuranças pelo ar, oferecendo balas e dizendo vendê-las para ajudar no trabalho social da irmandade. Ninguém comprou os doces mas todos ficaram pasmados quando o religioso jogou no balcão uma nota de 5 reais e disse: já que eu estou aqui serve aí uma lapada de jucá só pra esquentar o couro e espalhar o sangue. Nem bem Raimundão meou o copo, num só gole ele foi esvaziado pelo irmão vendedor de bombons sagrados.
Um pouco além da metade daquela movimentada manhã o Raimundão Drinks parecia entrar em calmaria quando, do nada, apareceu uma mulher descabelada e esbaforida se dizendo cigana e sabedora das linhas das mãos a querer prestar seus serviços tecendo sobre o passado e a sorte futura de uns e outros, desde que pagassem algum “quantum” pela consultoria esotérica.
A insistência da moça adivinhona incomodou um gorducho zangado que a retrucou dizendo: se eu fosse a senhora ia era estudar e aprender a ler a mão de forma mais moderna, olhe minha senhora já tem gente por aí lendo a mão com tablete e leitor de código de barras, aliás, já existe até aplicativo pra isso viu, vá se atualizar! E mais, se você é mesmo boa no que faz, eu lhe dou 50 reais se conseguir ler a mão direita do Chiquinho, aquele “amarelão empombado” que tá triste ali no canto do balcão, disse apontando.
Desafio aceito a cigana investiu pedindo a mão do anêmico rapaz e, pra sua surpresa, constatou que Chiquinho era um maneta, perdera a mão num acidente de trabalho. Ela voltou de imediato e devolveu: como queres que eu leia a mão direita dele se ele não tem mão? E o gorducho: não tem mais já teve, então dê seu jeito, se vire, leia assim mesmo.
Àquela altura com sol rachando meia tampa resolvemos desertar e deixar o Bar do Raimundão, o paraíso do “caô operandi,” que fervilhava com o vai e vem dos que ali compõem uma das mais frenéticas cenas do roteiro botequista da cidade.
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