Para seu próprio bem

Para seu próprio bem

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No Brasil de Fato, por João Paulo Cunha

Não existe argumento mais mentiroso do que aquele que diz que tudo que é feito contra nós, no fundo, é para nosso bem. Ou, no mínimo, para o bem de nossos netos. A base das reformas trabalhista e da previdência se escora nessa falácia: retirar direitos é um ato retificador, que atualiza as possibilidades econômicas com as necessidades humanas. A modernidade dos fins é apenas uma derivação da crueldade dos meios. No terreno da economia, a moral é um princípio descartável, como os bons modos e o bom gosto.

O mais curioso nessa forma de reescrever a história – uma vez que a criação de direitos foi vista durante os últimos séculos como a mais importante contribuição para a humanidade – é a forma como até mesmo os valores liberais se tornaram condenáveis. No campo das relações de trabalho e de defesa da seguridade, o liberalismo sempre esteve do lado do trabalhador. Pelo menos entre os liberais mais inteligentes, entre eles John Stuart Mill, contemporâneo de Karl Marx.

Como lembra o filósofo americano Marshall Bermann, autor do já clássico Tudo que é sólido desmancha no ar, Mill era um defensor da modernização, só que para ele a palavra tinha outro sentido. Modernizar não era subtrair direitos, atuar de forma cruel contra o trabalho e impedir as possibilidades humanas do indivíduo. Para o mais liberal dos liberais, a modernização é exatamente tudo aquilo que permite o desenvolvimento humano pleno.

Desencantado, no fim da vida, Stuart Mill conviveu com o avanço da modernização capitalista, traduzida como concorrência brutal, dominação de classe e estímulo ao conformismo social. Havia uma crença dupla na roda da história: de um lado, o avanço da técnica permitiria uma distribuição de seus ganhos; de outro, amparado na ampliação de direitos, a sociedade seria mais justa e os homens mais realizados. Na velhice, Mill se tornou socialista exatamente porque não queria deixar de ser liberal.

Essa fábula pode ser reescrita hoje de várias maneiras. Uma delas é a perda de consistência dos partidos que se dizem herdeiros do liberalismo. O caso mais visível é o do PSDB. Os tucanos já abandonaram há muito o ninho da social democracia, deixando de ter visão social e jogando contra a democracia no patrocínio do golpe. Hoje, quando barganham sua permanência no condomínio do poder, jogam no lixo o que um dia emitiu traços de coerência ideológica, independentemente de julgamentos. O que um dia foram princípios, hoje são conveniências.

Mas os bicudos voaram ainda mais longe de suas origens. Perderam a concepção de modernização das relações sociais, sustentando um papel de biombo para interesses de classe, que passam longe dos trabalhadores. Corromperam sua herança política, se tornando o mais explícito caso de desfaçatez da atual crise brasileira. É só mirar o mesmo sorriso de Aécio Neves, em dois tempos, separados por poucas semanas: no primeiro, a ironia e o sarcasmo; no segundo, o escárnio e a hipocrisia. Desagradável, sempre. Hoje todos sabem onde estava a verdade.

Outra maneira de entender a transformação do liberalismo emancipatório de ontem no conservadorismo tacanho de hoje se dá no dia a dia das relações humanas. Há, no mundo atual, uma desvalorização do trabalho pessoal como fonte criativa em nome do poder de determinar a ação do outro. Trabalhador é hoje um substantivo sem nobreza, submetido ao voraz apetite do empreendedor. Empreender não é apenas uma forma de exercer a criatividade e autonomia, mas um sucedâneo da exploração capitalista levada para o campo mais volátil das pequenas atividades.

O empreendedor é um capitalista mirim, com senso moral mirim, que torce para o fracasso do outro como forma de alavancar seu negócio. Sua visão de paraíso é o desemprego estrutural. A uberização do mundo é um retrato do nosso tempo. Não se vende mais a força de trabalho, aluga-se a preço ainda mais baixo e com menos garantias. O orgulhoso empreendedor, sem a sintonia de classe dos verdadeiros capitalistas, nem sua distinção social, ficou apenas com seus defeitos de alma.

Mas há ainda uma terceira leitura de nossa história. Aquela que obriga a esquerda a retomar suas origens. Partidos e sindicatos estão cada vez mais convocados a assumirem seu papel. Têm tarefas importantes pela frente, a começar pelo combate às reformas, à refundação de suas identidades, aprofundamento de seus projetos e construção de sua comunicação independente e popular. Sem falar na cada vez mais urgente tarefa de preparar as greves, ocupações e atos de desobediência civil, quando necessário.

No entanto, é na ligação popular que os verdadeiros sentimentos de transformação podem novamente ganhar a proa das discussões políticas. Os militantes, lideranças e intelectuais já perceberam que as teses de outrora precisam ser aquecidas com a energia das ruas. Assim como a direita se endireitou, a esquerda precisa se esquerdizar. Para seu próprio bem. Para o bem dos trabalhadores.

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