A revolta de Garibaldi e o pesadelo dos Barros
Era uma vez, uma bela jovem, cujo sonho era se casar de princesa em um lindo palácio. Seu sonho se concretizaria quando sua mãe fosse alçada ao cargo de duquesa das Araucárias, tornando-se parte do ducato dos Richas, e seu pai conquistasse o título de Dom Ministro da Saúde, patrono das empresas privadas, na Era Temer, um monarca voltado para agradar a aristocracia Cisnes Amarelos.
Como se fosse o seriado “Once Upon a Time”, o passado e o presente se confundem belamente. A noiva aluga sua pequena catedral no centro da República de Curitiba, terra das Araucárias imperiais, e em seguida recebe os convidados no Palácio Garibaldi, no nostálgico Largo da Ordem.
Na adaptação, a carruagem movida a puros sangues cede lugar a um elegante modelo branco clássico da marca Rolls Royce Silver Wraith 1955. Uma limusine que passou a ser produzida após a II Guerra Mundial para transportar chefes de estado. As taças e talheres são do mais fino cristal e fina prata com toques dourados. Os fraques são substituídos por belos ternos cortados e camisas e gravatas de seda. Já as damas trocam os vestidos de grandes frisas por peças justas e decotadas que possam evidenciar corpos esculpidos em salas de tonificação dos músculos contemporaneamente conhecidas como academias.
No centro disso tudo, a noiva, linda, jovial, com a face mais branca do que a carne de uma maçã gala. Seu longo vestido branco é bem comportado, como se recomenda a uma dama da sociedade. As transparências dão lugar a delicado bordado em volta do dorso que disputa atenção apenas com os lábios discretamente delineados. A sobriedade se completa com o véu que remete a uma coroa cristã pintada pelos mais zelosos florentinos. É a imagem da santa vitoriosa, como o nome da noiva indica, sobre todos os percalços que a vida impõe nessa matilha que é a Ilha de Vera Cruz.
Contudo, os fantasmas dos Garibaldis não gostaram de tanto ostentação da nobre corte paranaense em um momento de sacrifícios e dores para o povo. A celebração ocorreu na semana em que direitos trabalhistas foram retirados em massa, devolvendo os labutadores quase cem anos no tempo. Na semana em que o grande monarca Michel Temer, que usurpou o poder da presidente Dilma Rousseff, uma espécie de princesa Merida tupiniquim, era salvo de denúncia de corrupção por vassalos parlamentares em troca de moedas e emendas de ouro. Na semana em que o proletário Lula, o presidente libertador da fome do povo, era condenado sem provas por um inquisidor Moro. Tudo isso reunido fez com que os Garibaldis lançassem uma maldição: “Seu casamento será lembrado na história como a ‘noite das ovadas’ e a desforra aos Barros”. Eis a data: 14 de julho de 2017.
Ela é filha da duquesa que chancela o governo dos Richas quando esse toma a aposentadoria dos servidores, aumenta impostos e distribui os lucros entre os ricos do condado paranaense. Já seu pai traiu o governo que participava apenas para ganhar um novo título e mais poder. Dom Barros – o doente – é capaz de cortar recursos do sistema de saúde que atende a população e ainda falar que os médicos têm preguiça de trabalhar. Para ele, se cogita, uma peste negra seria um importante aliado na redução da demanda por atendimento público.
A própria princesa noiva também tem seus devaneios. Ela, cujo primeiro labor já foi na corte dos deputados, votou por tirar benefícios dos mais pobres no programa conhecido como Bolsa Família. Contrariando seu santo nome e toda a proximidade que carrega com os mais humildes, Maria Victória disse que ao povo não se pode dar nada, mas ele deve lutar para conquistar, como se a pobreza fosse uma punição divina.Contra auxílios moradias de togados, evidentemente, sua cândida voz não se levanta. Foram insanas palavras ditas por uma dama que é transportada por carruagens brancas, mas também por veículos grandes e pretos, conhecidos como caveirões, para votar pela retirada de direitos daqueles que jurou servir.
A reação da plebe a corte é quase natural. É a resposta à dama que pesquisava vestido de noiva em abril de 2015 enquanto ao povo a polícia distribuía bombas e gás de pimenta para impedir que eles impedissem a votação que lhes tomara R$ 2 bilhões de seus cofres. Dessa vez, no entanto, as bombas deram lugar ao véu de ovos e a opulência da data está marcada pela vulgaridade de quem escolhe governar zombando de seu povo. Pobre é a elite que acredita poder se fechar em castelos e distante da ralé.
É quase certo, por outro lado, que muitos repudiam a manifestação em momento tão sagrado. Principalmente os escribas e suas penas digitais. Mas também é quase certo que se dependesse desses, Dom Pedro I não teria dado seu grito às margens do Ipiranga, a República não teria sido instalada em 1889 e tampouco teria sido abolida a escravidão que agora retorna – once upon a time – transvestida de modernização das leis trabalhistas e pejotização. Enfim, tudo ao seu tempo e com sua história de uma estória que não tem nada de conto de fadas.
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Manolo Ramires
Pinga Fogo e Crônicas Curitibanas
Fotos: Théa Tavares