Corria o ano de 1963, a noite caía bela feito um viaduto e a plateia aguardava ansiosa pela estreia da peça ‘O Cidadão do Inferno’ no Colégio Maria Auxiliadora.
O roteiro era sobre a Revolução Francesa e papai integrava a trupe com um personagem que deveria morrer no último ato. O ápice do realismo só não foi alcançado, porque a apresentação foi suspensa.
Na coxia, papai se maquiava e ajeitava o figurino que incluía uma jaqueta vermelha e cá pra nós, o encosto de Robespierre. Se a peça era sobre revolução o uso de armas na encenação era obrigatório e algumas réplicas foram providenciadas. À época, alunos novos e mais velhos formavam o elenco e um dos atores, o João Izídio, era policial e guardou embaixo de uma camisa na mesa em que papai estava, seu instrumento de trabalho.
Quem viveu naquele tempo ouvia muito: “não brinca com arma que o cão atenta!”
Um adolescente de 14 anos apelidado de Tarzan achou a pistola calibre 22 e brincou, acertou papai no peito e pôs fim a seu sonho de se tornar o Skakespeare das barrancas de terras caídas de Porto Velho.
Com a jaqueta vermelha ensopada de sangue papai pedia socorro ao padre Miguel: “Acho que levei um tiro padre!”
Foi um corre-corre danado e a noite que caía bela feito um viaduto acabou tumultuada no Hospital São José.
Mal tinha raio-x pra ver onde a bala havia se alojado, mas os médicos Jacob Atalah e Leônidas Rachid salvaram a vida de papai, sem remover o projétil. O babado correu e outros médicos que integravam o elenco apareceram pra visitar o colega, inclusive Victor Sadeck, vascaíno doente, se preocupou em salvar o flamenguista que acabara de levar um tiro de raspão no coração.
A peça que havia sido um sucesso no Colégio Dom Bosco foi suspensa, o pobre do garoto que disparou acidentalmente em papai sofreu na boca das fofoqueiras e foi preciso que minha finada tia Nazaré acalmasse os ânimos.
Ah, não acaba aqui a história. Minha mãe viveu o drama na plateia e naquela noite, após a peça, estava tudo combinado com os parentes para selar o tão esperado noivado que seria uma surpresa. Ao saber disso no hospital, na dúvida se papai sobreviveria a ela fez o que? Noivou na enfermaria e meu finado avô português colocou as alianças sem criar objeções.
Papai levou um tiro no peito e naquela noite acertou mamãe em cheio no coração, há 52 anos.
Ah, o amor… Sem ensaio, meus pais interpretaram Shakespeare, para quem o “curso do amor verdadeiro nunca fluiu suavemente”.
De lá pra cá, papai carrega no peito, a bala e o amor por mamãe.