A corte volta a analisar ação de 2004 pedindo a anulação do decreto que regulamenta a demarcação de terras quilombolas.
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O direito dos quilombolas à terra é assegurado pela Constituição Federal e regulamentado pelo Decreto 4.887 de 2003. Editado no primeiro mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), o texto teve a sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo PFL (atual Democratas) já no ano seguinte. O julgamento começou somente em 2012 e, até hoje, apenas dois ministros votaram. Nesta quarta-ferira (16), o plenário da Corte voltará a analisar o tema.
O direito dos quilombolas à terra é assegurado pela Constituição Federal e regulamentado pelo Decreto 4.887 de 2003. Editado no primeiro mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), o texto teve a sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo PFL (atual Democratas) já no ano seguinte. O julgamento começou somente em 2012 e, até hoje, apenas dois ministros votaram. Nesta quarta-ferira (16), o plenário da Corte voltará a analisar o tema.
Advogados e militantes ligados à causa quilombola temem que, mesmo que declare a constitucionalidade do decreto, a decisão do Supremo determine a forma como devem ser interpretados alguns conceitos importantes do texto, que envolvem critérios de identificação das comunidades e das terras que lhes são de direito. O julgamento do STF também pode ser usado para balizar decisões jurídicas sobre outras comunidades tradicionais – incluindo as indígenas.
Além de aspectos formais, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239 de 2004, do DEM, questiona critérios estabelecidos pelo decreto como a auto-identificação, que permite a uma comunidade se declarar como quilombola. Para o partido, isso levaria à “provável hipótese de se atribuir a titularidade dessas terras a pessoas que efetivamente não têm relação com os habitantes das comunidades formadas por escravos fugidos”.
Quanto à delimitação das terras, o partido defende apenas a titulação dos núcleos habitacionais dos territórios, afirmando que “atividades econômicas como caça e pesca eram comuns entre os quilombolas, o que demonstra que o desenvolvimento da comunidade também se deu fora dos limites do próprio quilombo”. Um argumento contestado pelas comunidades, militantes e advogados.
“O STF precisa definir que se titule a terra tradicionalmente ocupada e também necessária para a sobrevivência daquela comunidade”, defende o advogado popular da Terra de Direitos, Fernando Prioste, habilitado no processo que corre no Supremo. Ele lembra que muitos grupos estão ou estiveram em conflito com proprietários vizinhos e, portanto, muitas vezes acabaram encurralados em áreas diminutas, sem possibilidade de exercer as atividades econômicas que garantem o sustento das comunidades.
Marco temporal: a tese da bancada ruralista
Até agora, apenas dois ministros votaram. Em 2012, o relator Cezar Peluso – que deixou a Corte no mesmo ano – votou pelo acolhimento da ação. Isto é, pela inconstitucionalidade do Decreto. Somente em 2015 veio o segundo voto, da ministra Rosa Weber. Apesar de se manifestar pela manutenção do decreto e de refutar as suspeitas do DEM quanto à auto-identificação, a magistrada endossou, em seu voto, a tese de marco temporal, uma interpretação que ameaça o território das comunidades tradicionais.
O conceito prega que só é garantido às comunidades quilombolas o direito às terras que ocupavam quando da promulgação da Constituição, em 1988, como mostra o voto de Weber: “A efetiva posse das terras em 05 de outubro de 1988 é requisito essencial à proteção do art. 68 do ADCT [da Constituição], porquanto consta expressamente do texto constitucional quando identifica seus destinatários. Tal emerge tanto da topologia da norma (…) quanto da flexão verbal – ‘estejam ocupando’, a assinalar o momento da promulgação da Constituição como o marco definidor de sua incidência.”
“Weber dá a entender como passíveis de titulação as porções de terras ocupadas pelas comunidades em 1988. Isso é péssimo, porque ignora situações de opressão”, protesta Fernando Prioste. O advogado Eduardo Fernandes, que fez a sustentação oral no julgamento de 2012 a favor da constitucionalidade do decreto explica: “A adoção do lapso temporal é reavivar conceitos e perspectivas coloniais de que a formação do território nacional se deu diante de um contexto histórico, político, cultural, econômico e social de plena oportunidade e acesso às instâncias do Estado por todos os grupos sociais. Infelizmente, o Estado e a sociedade sempre desrespeitaram essas comunidades – salvo raras exceções – desde o cartório, da delegacia ou da igreja no município até os órgãos mais inacessíveis da União.”
A tese do marco temporal é defendida com obstinação, há anos, pelos deputados federais ligados ao setor agropecuário, que tentam instituí-la por meio da Proposta de Emenda à Constituição 215, de 2000. Neste ano, a CPI da Funai e do Incra na Câmara, dominada pela bancada ruralista, recomendou a adoção do dispositivo nos procedimentos de demarcação de terras.
“Quando alguns grupos conseguem a garantia de direitos mínimos, os grupos tradicionais que habitam a política institucional se rebelam, procurando desconstruir a legislação com viés de reparação ou reconhecimento – seja pelo Legislativo, obstacularizando a execução das políticas públicas no Executivo ou ainda judicializando o debate em várias instâncias. Mas a ADI 3239 é um arrazoado de teses jurídicas arcaicas, tanto que não conseguiu a liminar de suspensão em 2004 e não deve prosperar no mérito”, acredita Fernandes. Ele lista, em defesa do decreto, além da Constituição, o Estatuto da Igualdade Racial, a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e outros pactos , tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável pelos processos de titulação das terras quilombolas, também se opõe à tese. “Na medida em que a autarquia defende a constitucionalidade da integralidade do texto do decreto, que estabelece que ‘são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural’, tem-se que implicitamente a autarquia não corrobora com a tese que limita a demarcação às terras efetivamente ocupadas pelas comunidades em 5 de outubro de 1988”, diz nota enviada à reportagem da Pública.
Segundo o Incra, existem hoje 1692 processos de regularização fundiária de territórios quilombolas. Destes, apenas 454 tiveram algum avanço burocrático. Ainda segundo a autarquia, já foram expedidos 219 títulos de domínio em prol de 151 comunidades quilombolas, totalizando 752 mil hectares e beneficiando cerca de 15,6 mil famílias.
A voz dos quilombolas
Givânia Silva, do Quilombo Conceição das Crioulas, em Salgueiro (PE), e integrante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), participou de atos e debates sobre o tema na capital federal, que se somaram a atividades em outras cidades do Brasil para mobilizar a opinião pública em torno do tema. Uma petição on-line em apoio à constitucionalidade do Decreto contava, a dois dias do julgamento, com mais de 62 mil assinaturas.
Doutoranda em Sociologia na Universidade de Brasília, ela também esteve em audiência pública no Senado Federal que debateu o tema, além de ter ido ao próprio Supremo. “No diálogo com o STF, percebemos um sentimento forte pela constitucionalidade, mas com divergências em relação às condicionantes. É sobre os aspectos dessa divergência que vamos trabalhar até os últimos minutos antes da votação”, explica. “Mas não temos a ilusão de que a nossa mobilização é de mão única”, continua Givânia. “Não somos ingênuos de acreditar que o Supremo não receba pressões de outros lados – do Executivo, dos parlamentares, de setores econômicos. Temos consciência disso, mas acreditamos que o nosso Judiciário não irá cometer mais um genocídio.”
Para ela, mais do que beneficiar os quilombolas, a titulação beneficia a toda a sociedade. “É preciso compreender que não defendemos apenas territórios e direitos de coletivos, mas também menos poluição, menos desmatamento, menos êxodo rural, menos violência urbana, menos inchaço nas periferias”, defende.
A reportagem entrou em contato com a Advocacia-Geral da União e com o partido Democratas, que não se manifestaram.