Da BBC Brasil em São Paulo, por Leticia Mori – Quando a mulher de M. saiu definitivamente pela porta da casa de alto padrão na qual o casal vivia, o crack entrou na vida do ex-executivo de uma empresa multinacional.
“Eu cheirava (cocaína) desde a faculdade e fazia várias merdas. Traí tanto minha mulher que perdi a conta. Mas achava que tava tudo bem. Trabalhava, ganhava dinheiro, meus amigos também usavam”, diz M., que, na época, tinha 34 anos, família rica e carreira bem sucedida.
Com a crise no casamento, ele intensificou o uso de cocaína. Mas não parou nisso. Com um salário de R$ 40 mil por mês, M. tinha acesso fácil a qualquer tipo de entorpecente.
“Usava bala (ecstasy), K (quetamina, um anestésico), flatliner (um tipo de anfetamina sintética), tudo o que aparecesse. Até chegar no crack”, diz ele.
A primeira pedra lhe chegou por meio de um amigo da faculdade que trabalhava no mercado financeiro. M. usou crack eventualmente durante quase dois anos até, em suas palavras, “perder o controle”.
Por causa da droga, M. perdeu o emprego, os três carros de luxo que tinha, os amigos. Se endividou, vendeu eletrodomésticos, relógios e até seus ternos. Teve surtos psicóticos, contraiu sífilis e hepatite C e teve problemas com a justiça por ter batido na ex-mulher. “Levava desconhecidos e prostitutas para casa e me trancava para fumar durantes dias”, conta.
Mas nunca ficou sem lugar para morar nem chegou a passar temporadas nas ruas, junto com outros usuários.
“Comigo não foi aquela coisa que falam, que você fuma duas vezes e vai parar na cracolândia. Tem muita gente (nas classes mais altas) que usa durante um tempão e você não sabe, porque ninguém fala”, diz ele.
Antes que algo pior acontecesse, o pai e o irmão de M. o internaram em uma comunidade terapêutica na cidade de Vera Cruz, no interior de São Paulo.
Sóbrio há mais de dez anos, depois de diversas internações, M. não bebe nem álcool (“senão eu volto com tudo”) e tem um pequeno negócio que administra com auxílio do irmão.
Vício Alastrado
Embora exista a ideia de que crack é uma droga de baixo custo, restrita às classes mais baixas, trajetórias como a de M. são comuns entre os pacientes da Clínica Greenwood. No espaço, localizado nos Jardins, bairro nobre da capital paulista, o tratamento chega a custar mais de R$ 12 mil por mês. Na unidade de Itapecirica da Serra, onde há internação, o tratamento chega a custar R$ 30 mil – o local ficou conhecido por ter abrigado celebridades como o ator Fábio Assunção e o ex-jogador e comentarista de futebol Walter Casagrande Júnior.
“A pessoa não procura droga pelo preço, mas pelo efeito”, diz Pablo Roig, diretor da unidade da Greenwood nos Jardins. “O crack provoca uma descarga brutal de dopamina (hormônio ligado à sensação de prazer) na área de recompensa do cérebro. Em uma situação normal de prazer, como durante o sexo, você pode ter um aumento de 100%. A cocaína provoca aumento de 400%. Com o uso de crack, há um aumento de 1100%”, explica ele, com base em dados do NIDA (National Institute on Drug Abuse), órgão americano que estuda e combate o uso de drogas.
Além disso, segundo Roig, como o efeito do crack passa cada vez mais rápido, o volume consumido também cresce vertiginosamente, o que torna caro o vício na droga.
“Tive um paciente que chegou a usar 100 pedras num dia. Se uma pedra custa cerca de R$ 10, isso dá R$ 1 mil. Não é barato”, afirma. “Quem é pobre só consegue manter o vício roubando, se prostituindo, catando latinha.”
Entrada da unidade de Itapecerica da Serra da Clínica GreenwoodDireito de imagem
Segundo Pablo Roig, diretor do hospital-dia da Greenwood, cerca de 50% dos pacientes atualmente em tratamento no local usam ou já usaram crack em algum momento.
Um dos principais pesquisadores do assunto no Brasil, o psiquiatra Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Unifesp, diz que começou a perceber a disseminação do crack nas classe média e alta por volta dos anos 2000. Acredita-se que a pedra chegou ao Brasil por volta de 1987.
Todas as Classes
O médico Elton Kanomata, diretor do departamento de psiquiatria do Hospital Israelita Albert Einstein, em SP, explica que a droga atinge todas as classes sociais, mas seu uso acaba menos notado nas classes mais altas por causa das estruturas de apoio disponível para essas pessoas.
“Costuma haver mais suporte familiar, de amigos. Por ter mais acesso à informação e maior escolaridade, essas pessoas também tendem a procurar ajuda antes de ir parar na rua”, diz ele.
Os pacientes usuários de crack que o hospital recebe, segundo Kanomata, em geral são atendidos por conta das consequência clínicas do abuso da substância. “Têm problemas respiratórios, dores inespecíficas pelo corpo, arritmia, infarto. É muito comum também quadros psicóticos induzidos pela substância”, diz ele.
A Casa de Saúde São João de Deus, na zona oeste de SP, atende pacientes de diferentes classes sociais. O custeio do tratamento pode ser feito pela família do dependente ou por meio de convênio particular ou do SUS. As mensalidades do tratamento para particulares custam em torno de R$ 5 mil.
“O crack atinge todas as classes, todas as profissões. Já tratamos professores universitários, empresários, advogados, artistas. Tive (um paciente que era) médico neurologista”, diz Vanessa Cavalcante, diretora do hospital.
“A cracolândia é a faceta mais visível do problema porque ali estão as pessoas em maior situação de vulnerabilidade. Ali tem uma conjunção de fatores, não é só a droga, são questões sociais, psicológicas, políticas, de saúde”, diz ela.
De acordo com uma pesquisa da Fiocruz de 2013 – uma das mais recentes com cobertura nacional -, a média de tempo de uso entre dependentes de crack é de 8 anos.
Cavalcante diz que o efeito é muito individual —algumas pessoas sustentam o vício durante anos. “Para outras, basta dois ou três usos antes de atingir o fundo do poço”, conta.
Segredo corrosivo
“É um tabu, um estigma, você não conta para ninguém”, diz G., que é historiador e professor. “Minha namorada acha até hoje que meus problemas eram com cocaína. Nunca disse para ela que era crack.”
Filho de um oficial militar, G. mudou várias vezes de cidade enquanto crescia em função do trabalho do pai. Em São Paulo, experimentou crack algumas vezes quando estava na faculdade, no fim dos anos 1980. “Nessa época ainda não se falava tanto dos efeitos, de como ele te destrói”. Usuário de álcool e maconha, ficou longe da droga nos anos em que morou com a família em Brasília – o crack ainda não havia se espalhado pelo Brasil.
A volta à capital paulista, nos anos 1990, também representou o retorno à pedra. “Eu tenho tendência ao vício, sempre tive, sempre abusei. Um dia fui na biqueira comprar maconha e não tinha. Mas me ofereceram crack, eu tava tendo crise de abstinência, precisava de alguma coisa. Daí foi ladeira abaixo”, conta ele.
Como era professor concursado, demorou para perder o emprego. “Eu saía do trabalho e passava na biqueira. Chegava em casa e fumava uma pedra atrás da outra, até o dia seguinte, quando tinha que sair de novo.”
Depois começou a faltar às aulas – chegou a ficar três dias trancado em casa em uso contínuo, só saía para comprar mais pedras. Quando finalmente foi demitido, passou a vender tudo o que tinha. “Uma vez fui de moto e o dono da boca quis comprá-la. Me deu uns R$ 5 mil em dinheiro e R$ 3 mil em pedras. Depois que a droga acabou, voltei lá gastei o resto do dinheiro em pedra também”, diz.
Seus pais o internaram diversas vezes e o levaram de volta para Brasília. Depois do tratamento, ele melhorava por um tempo. “Eu ficava sóbrio, arrumava emprego para tentar recomeçar. Mas eram uns bicos que pagavam muito mal. Ficava deprimido com aquela vida e acabava voltando a usar”.
Em uma de suas recaídas, fugiu de casa e morou um tempo na rua. “Cheguei a roubar e me prostituir, mas me sentia muito mal. Então o que eu mais fazia era catar latinha”, conta.
Depois de quase duas décadas de esforços, conseguiu melhorar quando, durante um ano de sobriedade, começou um relacionamento sério e passou em um concurso para professor.
Chegou a recair depois, mas a namorada — que até hoje não sabe que ele usava crack — o ajudou com a redução de danos. “Eu substitui o crack por maconha. Ajudou. Porque, por pior que seja, permitia que eu tivesse uma vida funcional”, diz ele. Era a companheira que conseguia maconha para G. “Eu não queria ir comprar porque sabia que, se eu fosse, voltaria com uma pedra.”
“Até hoje eu tenho vontade, mas resisto, porque hoje tenho muito o que perder. O mais difícil quando você está no fundo do poço é ter esperança de que é possível sair do buraco. Tem um momento em que você não tem mais nada, é um caminho de morte. Não tem porque você se esforçar para sair porque não têm para o que voltar. Então gosto de contar minha história para que as pessoas vejam que é possível melhorar, é possível recuperar uma parte da sua vida”, afirma.
O pesquisador Dartiu Xavier corrobora o pensamento de G. Para o especialista, não basta tratar apenas o vício, mas o motivo que levou a pessoa àquela situação: “Se você não descobrir a questão de fundo de cada indivíduo e tratar isso, ele vai ficar tendo recaídas”.
Na experiência clínica de Pablo Roig, uma série de motivações são elencadas pelos pacientes para justificar o uso de crack: há quem comece de maneira recreativa, os que tentam superar uma tragédia familiar, uma morte ou separação, aqueles que lutam contra a depressão e a ansiedade. “Muita gente já tem um histórico familiar de abuso de substâncias, usava drogas na adolescência. Isso afeta o desenvolvimento do cérebro e deixa a pessoa suscetível a querer um prazer imediato e não pensar nas consequências”, diz o especialista.
Feridas públicas
“As pessoas acham que é droga de pobre, mas meu pai começou a usar nos Estados Unidos, com artistas”, diz Isabella Lemos de Moraes. Filha do empresário João Flávio Lemos de Moraes, ela lida até hoje com as marcas que o vício do pai deixou na família.
João Flávio era um dos homens mais ricos do Brasil nos anos 1980, à frente do grupo Supergasbras. Era amigo de Roberto Carlos, foi capa de revistas e se mudou para os Estados Unidos por ter recebido ameaças de sequestros. Lá fez amizade com artistas de Beverly Hills e começou a usar crack.
Muita coisa mudou na vida de Isabella desde que ela escreveu o livro Agora é Viver, em 2013, contando as dificuldades pelas quais passou.
“Hoje em dia minha família tem mais coragem de se expor, de procurar ajuda. Minha irmã tem menos vergonha de falar que é uma adicta em recuperação”, conta ela, que nunca se envolveu com nenhum entorpecente.
A irmã, Daniela, tinha 14 anos quando pegou um cachimbo que o pai havia deixado largado e começou usar crack. Relatos sobre a situação da família começaram a se espalhar.
“As pessoas imaginavam que era pior do que realmente era. Como meu pai usava drogas com a minha irmã, as pessoas imaginavam que poderia ter tido algum tipo de abuso sexual, o que não aconteceu”, diz ela. “Mas teve muita coisa ruim”.
Entre os episódios mais tristes, Isabella rememora a vez em que o pai chegou a apontar uma arma para as filhas durante uma crise.
Até hoje Isabella mantém uma relação difícil com o pai “Não sei se ele está sóbrio ou não, porque evito ficar muito próxima. Quem convive com um dependente químico fica doente também, porque você passa a organizar toda a sua vida de acordo com a necessidade. É o que a gente chama de codependência”, explica ela, que teve anoxeria e bulimia em decorrência dos problemas familiares. “Até hoje eu luto para superar a codependência.”
Medo da morte
Ex-funcionário público, J. trata seu vício na Casa de Saúde São João de Deus. Ele já se internou no hospital mais de vinte vezes.
“Casei cedo e não soube levar o relacionamento. Comecei a beber muito para lidar com coisas que sóbrio eu não conseguia”, diz ele, tentando conter o tremor nas mãos.
O alcoolismo se transformou em um vício em cocaína. Quando J. começou a usar crack, já tinha tido uma overdose por cheirar mais de 20 gramas de uma vez.
“Depois de ir pro hospital aumentei o uso, mas não tinha mais acesso tão fácil pois tinha separado da minha namorada, que me fornecia. A cocaína não prestava, não prestava (não dava a mesma sensação), aí eu peguei o crack”, conta.
J. vendeu boa parte de suas coisas para sustentar o vício, mas não ficou na rua porque morava com a mãe. “Vi amigos meus morrerem usando crack, na minha frente. Vi a pessoa começar a tremer, tremer, sair sangue do olho, nariz, boca, de tudo quanto é orifício que você pode imaginar”, diz J.
Certa vez, em uma crise de abstinência, socou uma porta de vidro. Os cacos rasgaram seu braço e cortaram os tendões. “Me disseram que ficou pendurado, mas eu não vi porque desmaiei. Quase perdi o braço, só agora recuperei os movimentos, e não foi totalmente.”
Nos dez anos em que ficou indo e voltando de internações, a motivação para procurar tratamento foi sempre a mesma: medo de morrer. “Acontece que medo de morrer faz você começar o tratamento, mas não continuar. Para continuar precisa ter vontade de viver”, diz.