“A democracia é de fato uma ilha do arquipélago do despotismo”

“A democracia é de fato uma ilha do arquipélago do despotismo”

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Na Páguna B – O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que estuda o Brasil, a democracia e as esquerdas, afirma que é preciso inventar um novo partido político

Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

“A democracia é de fato uma ilha do arquipélago do despotismo”
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que estuda o Brasil, a democracia e as esquerdas, afirma que é preciso inventar um novo partido político
MARIA CAROLINA TREVISAN Publicado em: 03/07/2017 – 14:30Alterado em: 30/08/2017 – 18:42

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos recebeu a reportagem para um chá em São Paulo – Foto: Maria Carolina Trevisan
Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

Leia, a seguir, a conversa completa com o sociólogo e professor português:

Brasileiros: Em seu livro mais recente, “A difícil democracia”, tem a seguinte afirmação: “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas”. O que o senhor quis dizer?

Boaventura de Sousa Santos: É uma frase que procura mostrar que as democracias realmente existentes são parcialmente falsas, são truncadas. Não têm nada a ver com o ideal democrático de soberania popular e de livre ação dos cidadãos, que se sentem espiados nos seus representantes e, portanto, entre representados e representantes a distância será mínima. Pelo contrário, as distâncias hoje são máximas em muitas sociedades ditas democráticas.

Por outro lado, a democracia é um ideal de livre ação e de soberania, que não tem que estar confinado ao sistema político. Acontece que a democracia liberal foi sempre desenhada para poder aplicar exclusivamente ao sistema político, e portanto não poder estender-se à família, às relações sociais, às empresas, às ruas, às comunidades, ao espaço público, às universidades, etc.

A democracia é de fato uma ilha democrática no arquipélago do despotismo. Despotismo na família, na escola, na fábrica, na empresa, na rua, tanta violência, tanta forma de brutalidade no sistema mundial

Exatamente quando a democracia não atua, precisamente porque grande parte das relações sociais estão fora do controle democrático e são geridas por vontades até democráticas e mais frágeis nessas áreas sociais (seja na família, na empresa, na rua), são sujeitas a uma situação em que suas aspirações de vida estão reféns de um direito de veto do mais poderoso. Os grupos sociais que estão sujeitos a um direito de veto dos mais poderosos, como o jovem negro que vai na rua e é abordado pela polícia, pede-lhe uma identificação sem qualquer motivo, apenas pela sua cor de pele. Ele está a ser sujeito a uma forma de fascismo social. Por que é fascismo social? Não é fascismo político porque esse foi um sistema político que se opôs à democracia. Este convive com a democracia em todas as áreas onde a convivência das relações sociais não são democráticas. Infelizmente, grande parte das nossas sociedades e grande parte da nossa população, não vive relações sociais democráticas em que há um equilíbrio de poder. Vive por vezes em situações de poder despótico, ou seja, vivem situações de fascismo social. Essa coexistência é que está presente.

PB! – Então nos países em que há maior desigualdade a democracia é mais frágil e mais sujeita ao fascismo social?

BSS – Muito mais frágil. E pode ser um instrumento para aumentar essa fragilidade. Por que o neoliberalismo vem, desde os anos 1980, a tentar destruir os direitos sociais dos trabalhadores, tem vindo a tentar destruir o poder que o Estado tinha na distribuição social? Ao mesmo tempo se mostra muito adepto da democracia e a democracia hoje é de fato, numa das suas versões, característica do nosso tempo, a democracia é um instrumento de imperialismo. Destrói a Líbia para impor a democracia, destroi-se o Iraque para impor a democracia, destroi-se a Síria para impor a democracia, destroi-se o Afeganistão para impor a democracia.

A democracia que eu chamo de ‘baixa intensidade’ transformou-se num instrumento do imperialismo.

Não é essa a democracia pela qual lutamos e isso é exatamente a característica do nosso tempo: são diferentes conceitos de democracia que dividem os campos democráticos, digamos assim. Nós precisamos saber de que lado estamos

O campo democrático o qual me identifico, que é uma luta da radicalização da democracia, da ampliação do campo democrático, a ‘democracia de alta intensidade’ é que efetivamente luta contra as formas de fascismo social na nossa sociedade, portanto procura ampliar o campo de livre ação democrática, para que o arquipélago do despotismo seja mais pequeno, gradualmente mais pequeno, e idealmente não exista.

PB! – Trazendo para a nossa realidade no Brasil, fica cada vez mais evidente que quem manda na nossa democracia é o capital. Como o senhor vê essa situação?

É evidente que o capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. O capitalismo não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado, ele tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. É um dos pontos do meu trabalho hoje: ao contrário do que a gente pensa, nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós-coloniais.

O colonialismo não tem que ser apenas ocupação territorial estrangeira, como aconteceu historicamente. Pode assumir outras formas: colonialismo interno na forma de xenofobia, de racismo, de islãmofobia.

O capitalismo no século XVI não tem nada a ver com o capitalismo do século XXI. Mas a gente continua a falar do capitalismo do século XVI e no capitalismo do século XXI. Eu faço o mesmo com o colonialismo: o histórico, de ocupação territorial, era uma forma. Temos que analisar as outras formas de colonialismo, porque há muita gente que vive na nossa sociedade sob o domínio das revoluções coloniais, a casa grande e a senzala. E portanto, isso em sociedades sobretudo que foram colonizadas historicamente, continua sob outras formas.

“A democracia é de fato uma ilha do arquipélago do despotismo”
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que estuda o Brasil, a democracia e as esquerdas, afirma que é preciso inventar um novo partido político
MARIA CAROLINA TREVISAN Publicado em: 03/07/2017 – 14:30Alterado em: 30/08/2017 – 18:42

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos recebeu a reportagem para um chá em São Paulo – Foto: Maria Carolina Trevisan
Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

Leia, a seguir, a conversa completa com o sociólogo e professor português:

Brasileiros: Em seu livro mais recente, “A difícil democracia”, tem a seguinte afirmação: “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas”. O que o senhor quis dizer?

Boaventura de Sousa Santos: É uma frase que procura mostrar que as democracias realmente existentes são parcialmente falsas, são truncadas. Não têm nada a ver com o ideal democrático de soberania popular e de livre ação dos cidadãos, que se sentem espiados nos seus representantes e, portanto, entre representados e representantes a distância será mínima. Pelo contrário, as distâncias hoje são máximas em muitas sociedades ditas democráticas.

Por outro lado, a democracia é um ideal de livre ação e de soberania, que não tem que estar confinado ao sistema político. Acontece que a democracia liberal foi sempre desenhada para poder aplicar exclusivamente ao sistema político, e portanto não poder estender-se à família, às relações sociais, às empresas, às ruas, às comunidades, ao espaço público, às universidades, etc.

A democracia é de fato uma ilha democrática no arquipélago do despotismo. Despotismo na família, na escola, na fábrica, na empresa, na rua, tanta violência, tanta forma de brutalidade no sistema mundial

Exatamente quando a democracia não atua, precisamente porque grande parte das relações sociais estão fora do controle democrático e são geridas por vontades até democráticas e mais frágeis nessas áreas sociais (seja na família, na empresa, na rua), são sujeitas a uma situação em que suas aspirações de vida estão reféns de um direito de veto do mais poderoso. Os grupos sociais que estão sujeitos a um direito de veto dos mais poderosos, como o jovem negro que vai na rua e é abordado pela polícia, pede-lhe uma identificação sem qualquer motivo, apenas pela sua cor de pele. Ele está a ser sujeito a uma forma de fascismo social. Por que é fascismo social? Não é fascismo político porque esse foi um sistema político que se opôs à democracia. Este convive com a democracia em todas as áreas onde a convivência das relações sociais não são democráticas. Infelizmente, grande parte das nossas sociedades e grande parte da nossa população, não vive relações sociais democráticas em que há um equilíbrio de poder. Vive por vezes em situações de poder despótico, ou seja, vivem situações de fascismo social. Essa coexistência é que está presente.

PB! – Então nos países em que há maior desigualdade a democracia é mais frágil e mais sujeita ao fascismo social?

BSS – Muito mais frágil. E pode ser um instrumento para aumentar essa fragilidade. Por que o neoliberalismo vem, desde os anos 1980, a tentar destruir os direitos sociais dos trabalhadores, tem vindo a tentar destruir o poder que o Estado tinha na distribuição social? Ao mesmo tempo se mostra muito adepto da democracia e a democracia hoje é de fato, numa das suas versões, característica do nosso tempo, a democracia é um instrumento de imperialismo. Destrói a Líbia para impor a democracia, destroi-se o Iraque para impor a democracia, destroi-se a Síria para impor a democracia, destroi-se o Afeganistão para impor a democracia.

A democracia que eu chamo de ‘baixa intensidade’ transformou-se num instrumento do imperialismo.

Não é essa a democracia pela qual lutamos e isso é exatamente a característica do nosso tempo: são diferentes conceitos de democracia que dividem os campos democráticos, digamos assim. Nós precisamos saber de que lado estamos

O campo democrático o qual me identifico, que é uma luta da radicalização da democracia, da ampliação do campo democrático, a ‘democracia de alta intensidade’ é que efetivamente luta contra as formas de fascismo social na nossa sociedade, portanto procura ampliar o campo de livre ação democrática, para que o arquipélago do despotismo seja mais pequeno, gradualmente mais pequeno, e idealmente não exista.

PB! – Trazendo para a nossa realidade no Brasil, fica cada vez mais evidente que quem manda na nossa democracia é o capital. Como o senhor vê essa situação?

É evidente que o capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. O capitalismo não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado, ele tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. É um dos pontos do meu trabalho hoje: ao contrário do que a gente pensa, nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós-coloniais.

O colonialismo não tem que ser apenas ocupação territorial estrangeira, como aconteceu historicamente. Pode assumir outras formas: colonialismo interno na forma de xenofobia, de racismo, de islãmofobia.

O capitalismo no século XVI não tem nada a ver com o capitalismo do século XXI. Mas a gente continua a falar do capitalismo do século XVI e no capitalismo do século XXI. Eu faço o mesmo com o colonialismo: o histórico, de ocupação territorial, era uma forma. Temos que analisar as outras formas de colonialismo, porque há muita gente que vive na nossa sociedade sob o domínio das revoluções coloniais, a casa grande e a senzala. E portanto, isso em sociedades sobretudo que foram colonizadas historicamente, continua sob outras formas.

Aliás, nos anos 1960, sociólogos importantes deste País, como Dom Pablo Gonzáles Casanova, teorizaram a ideia do “colonialismo interno”. Criou-se as elites com a ideia do mito da democracia racial, através do olhar de intelectuais, alguns deles bastante importantes, como Gilberto Freire. Permitiu, durante muito tempo, a ideia do mito da democracia racial. Foi preciso chegar ao século XXI para o Brasil, muitas décadas depois da intendência, chegar à conclusão de que realmente é uma sociedade racista e que por isso era preciso haver cotas, por exemplo, para inclusão dos jovens na sociedade, porque não é nem toda a desigualdade no Brasil se justificava apenas pelas diferenças de classe, que obviamente são muito fortes. Houve aqui uma articulação entre raça e classe, e gênero, obviamente, porque as mulheres também compõem um grupo muito substancial dos mais pobres deste País.

É essa a constelação de dominações que domina as nossas sociedades. O que acontece é que essas dominações atuam em conjunto, os movimentos que lutam contra elas estão separados: as feministas podem lutar apenas contra o patriarcado, mas descuidam da luta anti-colonial, anti-capitalista; os movimentos quilombolas podem lutar contra o colonialismo na sociedade, mas descuidam da luta anti-capitalismo e anti-patriarcal, os próprios indígenas a mesma coisa.

Os movimentos estão divididos e a dominação está unida. É essa situação que temos. Nós precisamos unir os movimentos. Quando o capitalismo se reforça, reforça-se também o colonialismo e o patriarcado.

Por exemplo, ao olhar para o governo da presidente Dilma, tinha mulheres e tinha negros. No momento em que houve o golpe para forçar o capitalismo de origem neoliberal, desaparecem as mulheres e desaparecem os negros nos ministérios. E houve aquela coisa caricata do presidente dizendo que não tinha encontrado mulheres para os ministérios. Aquela coisa absurdamente caricata num País onde a maioria são mulheres.

PB! – Como foi possível que o processo de impeachment acontecesse daquela forma, tão desrespeitosa com a primeira mulher presidente do Brasil, eleita com 54,5 milhões de votos?

BSS – É difícil dizer porque é especulativo. Mas ela foi vítima de discriminação, sem dúvida nenhuma. Isso mostra também que os partidos progressistas e o movimento popular andaram 13 anos distraídos porque pensavam que a sociedade tinha sido profundamente transformada. As forças de esquerda tomaram o governo, mas não tomaram o poder social. E nem sequer cuidaram de democratizar a sociedade. No futuro, não haverá democratização do Estado se não houver democratização da sociedade, o que é uma tarefa muito mais ampla. Portanto, todas essas conquistas parece que se desfazem no ar, de um dia para o outro, e se viu que era tudo um certo verniz. Passado esse verniz, as empregadas domésticas tinham que ser servis, como tinham antes, estavam tendo demasiados direitos, já não dependiam tanto da filantropia.

A classe no brasil é sempre racista e é sempre patriarcal. Isso nos trouxe uma grande virulência e está se mostrando uma grande virulência neste momento.

PB! – As esquerdas foram surpreendidas com essa fraqueza da democracia? Houve um descuido? Como se pode reorganizar as esquerdas?

BSS – O que é a esquerda? Temos a esquerda organizada em uma pluralidade de partidos e temos a esquerda que são os movimentos sociais que lutam contra a opressão e as diferentes formas de dominação, e que estiveram ou não ligados a partidos, muitos deles em uma estrutura apartidária, digamos assim. É evidente que os partidos populares e os governos, como na Bolívia, no Equador, na Venezuela e aqui no Brasil, que saem da emergência de forte mobilização popular, criam uma ilusão nos movimentos sociais de que seus amigos tinham chegado ao poder. E, portanto, descansaram. Quando exatamente deveria ter sido o contrário porque no momento em que os amigos chegavam ao poder, sabiam que esses amigos iam ser sujeitos a múltiplas pressões para se distanciarem dos seus amigos, e portanto governar o País contra eles. Mesmo não crendo, era preciso continuar a haver uma pressão de baixo.

Isso é uma coisa que nós lutamos em todos os países. Os movimentos sociais do Equador e da Bolívia lutaram muito por uma Constituição e quando foi promulgada, descansaram. O primeiro dia de luta era esse: lutar para que a Constituição fosse cumprida. Não. Descansaram. No Brasil, os movimentos sociais de alguma maneira descansaram. Talvez o único que não descansou e continuou com uma atividade de intervenção foi o MST, um dos maiores movimentos sociais da América Latina e quiçá do mundo, e portanto continuou com um certo ativismo.

Muitos outros pensaram que, tendo amigos no Planalto, podiam descansar. Finalmente nós íamos ter uma sociedade um pouco mais inclusiva. Isso descuidou a retaguarda dos movimentos. No que diz respeito aos partidos, o partido protagônico, PT, é sempre a mesma ideia de tomar o governo ou tomar o poder.

Realmente houve a ilusão de que num sistema político que não foi reformado se poderia governar à moda antiga para outros objetivos. Com as mesmas alianças, as mesmas formas, com a mesma ideologia que vem da segunda república.

Ideologia que é um pacto entre as elites, onde as classes populares não deveriam entrar para perturbar o jogo.

Mas na verdade, como as sociedades não podem ser planeadas como uma linha de montagem, houve aqui uma perturbação e em 2003, um operário consegue chegar à Presidência da República. A partir daí, cria-se uma primeira fissura na própria hegemonia das classes dominantes: alguém que não pertence às elites, o primeiro movimento é tentar absorver. O que foi de certa maneira fácil, na medida em que, como eu digo, basta ver a “Carta aos brasileiro” do presidente Lula, dizendo que não iria alterar os compromissos internacionais, financeiros do País, um modelo de desenvolvimento que não era sustentável a longo prazo, era uma modelo de continuidade do colonialismo, que era o extrativismo e a extração de recursos naturais, tornado possível devido ao impulso de desenvolvimento da China, num contexto de altos preços das commodities.

Era uma situação em que todos ganham. É mais fácil governar numa situação desse tipo.

A partir daí, os bancos nunca tiveram tantos lucros. O Brasil transformou mais de 50 milhões de pessoas através do Bolsa Família e das políticas de inclusão. Não se pode trivializar a ideia de que tantos milhões que não comem uma vez por dia passaram a comer 3 vezes por dia que isso não é uma revolução. Obviamente que é uma revolução, mas que foi feita com o mesmo modelo de desenvolvimento e com o mesmo sistema político que favorecia as elites e as classes dominantes.

No momento em que a solução do ganha-ganha entra em crise, o modelo entra em colapso, praticamente. Entra em colapso também por conta de situações internacionais, por exemplo o preço do petróleo, que de uma semana para outra passou a metade. Não foram os mercados, foi uma intenção do imperialismo norteamericano, no meu entender, que queria neutralizar a Rússia, que tem muito petróleo, neutralizar o Irã, que com o fim do embargo ia entrar no mercado internacional do petróleo e era preciso fazer baixar o preço, e a Venezuela. Era preciso neutralizar o Brasil, que estava tendo algum protagonismo internacional como um dos países emergentes. O erro foi um pouco esse: terminou a hegemonia da própria classe dominante. Ou seja, ela vai aguentar a sua hegemonia até a produção do golpe? O golpe é o ponto final da hegemonia da classe dominante? A partir desse momento ela esbroa-se. Exatamente o que estamos a ver.

PB! – Diante do quadro de combate à corrupção e do desgaste dos partidos políticos o Poder Judiciário ganhou força. Qual a sua opinião sobre esse quadro?

“A democracia é de fato uma ilha do arquipélago do despotismo”
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que estuda o Brasil, a democracia e as esquerdas, afirma que é preciso inventar um novo partido político
MARIA CAROLINA TREVISAN Publicado em: 03/07/2017 – 14:30Alterado em: 30/08/2017 – 18:42

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos recebeu a reportagem para um chá em São Paulo – Foto: Maria Carolina Trevisan
Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

Leia, a seguir, a conversa completa com o sociólogo e professor português:

Brasileiros: Em seu livro mais recente, “A difícil democracia”, tem a seguinte afirmação: “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas”. O que o senhor quis dizer?

Boaventura de Sousa Santos: É uma frase que procura mostrar que as democracias realmente existentes são parcialmente falsas, são truncadas. Não têm nada a ver com o ideal democrático de soberania popular e de livre ação dos cidadãos, que se sentem espiados nos seus representantes e, portanto, entre representados e representantes a distância será mínima. Pelo contrário, as distâncias hoje são máximas em muitas sociedades ditas democráticas.

Por outro lado, a democracia é um ideal de livre ação e de soberania, que não tem que estar confinado ao sistema político. Acontece que a democracia liberal foi sempre desenhada para poder aplicar exclusivamente ao sistema político, e portanto não poder estender-se à família, às relações sociais, às empresas, às ruas, às comunidades, ao espaço público, às universidades, etc.

A democracia é de fato uma ilha democrática no arquipélago do despotismo. Despotismo na família, na escola, na fábrica, na empresa, na rua, tanta violência, tanta forma de brutalidade no sistema mundial

Exatamente quando a democracia não atua, precisamente porque grande parte das relações sociais estão fora do controle democrático e são geridas por vontades até democráticas e mais frágeis nessas áreas sociais (seja na família, na empresa, na rua), são sujeitas a uma situação em que suas aspirações de vida estão reféns de um direito de veto do mais poderoso. Os grupos sociais que estão sujeitos a um direito de veto dos mais poderosos, como o jovem negro que vai na rua e é abordado pela polícia, pede-lhe uma identificação sem qualquer motivo, apenas pela sua cor de pele. Ele está a ser sujeito a uma forma de fascismo social. Por que é fascismo social? Não é fascismo político porque esse foi um sistema político que se opôs à democracia. Este convive com a democracia em todas as áreas onde a convivência das relações sociais não são democráticas. Infelizmente, grande parte das nossas sociedades e grande parte da nossa população, não vive relações sociais democráticas em que há um equilíbrio de poder. Vive por vezes em situações de poder despótico, ou seja, vivem situações de fascismo social. Essa coexistência é que está presente.

PB! – Então nos países em que há maior desigualdade a democracia é mais frágil e mais sujeita ao fascismo social?

BSS – Muito mais frágil. E pode ser um instrumento para aumentar essa fragilidade. Por que o neoliberalismo vem, desde os anos 1980, a tentar destruir os direitos sociais dos trabalhadores, tem vindo a tentar destruir o poder que o Estado tinha na distribuição social? Ao mesmo tempo se mostra muito adepto da democracia e a democracia hoje é de fato, numa das suas versões, característica do nosso tempo, a democracia é um instrumento de imperialismo. Destrói a Líbia para impor a democracia, destroi-se o Iraque para impor a democracia, destroi-se a Síria para impor a democracia, destroi-se o Afeganistão para impor a democracia.

A democracia que eu chamo de ‘baixa intensidade’ transformou-se num instrumento do imperialismo.

Não é essa a democracia pela qual lutamos e isso é exatamente a característica do nosso tempo: são diferentes conceitos de democracia que dividem os campos democráticos, digamos assim. Nós precisamos saber de que lado estamos

O campo democrático o qual me identifico, que é uma luta da radicalização da democracia, da ampliação do campo democrático, a ‘democracia de alta intensidade’ é que efetivamente luta contra as formas de fascismo social na nossa sociedade, portanto procura ampliar o campo de livre ação democrática, para que o arquipélago do despotismo seja mais pequeno, gradualmente mais pequeno, e idealmente não exista.

PB! – Trazendo para a nossa realidade no Brasil, fica cada vez mais evidente que quem manda na nossa democracia é o capital. Como o senhor vê essa situação?

É evidente que o capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. O capitalismo não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado, ele tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. É um dos pontos do meu trabalho hoje: ao contrário do que a gente pensa, nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós-coloniais.

O colonialismo não tem que ser apenas ocupação territorial estrangeira, como aconteceu historicamente. Pode assumir outras formas: colonialismo interno na forma de xenofobia, de racismo, de islãmofobia.

O capitalismo no século XVI não tem nada a ver com o capitalismo do século XXI. Mas a gente continua a falar do capitalismo do século XVI e no capitalismo do século XXI. Eu faço o mesmo com o colonialismo: o histórico, de ocupação territorial, era uma forma. Temos que analisar as outras formas de colonialismo, porque há muita gente que vive na nossa sociedade sob o domínio das revoluções coloniais, a casa grande e a senzala. E portanto, isso em sociedades sobretudo que foram colonizadas historicamente, continua sob outras formas.

Aliás, nos anos 1960, sociólogos importantes deste País, como Dom Pablo Gonzáles Casanova, teorizaram a ideia do “colonialismo interno”. Criou-se as elites com a ideia do mito da democracia racial, através do olhar de intelectuais, alguns deles bastante importantes, como Gilberto Freire. Permitiu, durante muito tempo, a ideia do mito da democracia racial. Foi preciso chegar ao século XXI para o Brasil, muitas décadas depois da intendência, chegar à conclusão de que realmente é uma sociedade racista e que por isso era preciso haver cotas, por exemplo, para inclusão dos jovens na sociedade, porque não é nem toda a desigualdade no Brasil se justificava apenas pelas diferenças de classe, que obviamente são muito fortes. Houve aqui uma articulação entre raça e classe, e gênero, obviamente, porque as mulheres também compõem um grupo muito substancial dos mais pobres deste País.

É essa a constelação de dominações que domina as nossas sociedades. O que acontece é que essas dominações atuam em conjunto, os movimentos que lutam contra elas estão separados: as feministas podem lutar apenas contra o patriarcado, mas descuidam da luta anti-colonial, anti-capitalista; os movimentos quilombolas podem lutar contra o colonialismo na sociedade, mas descuidam da luta anti-capitalismo e anti-patriarcal, os próprios indígenas a mesma coisa.

Os movimentos estão divididos e a dominação está unida. É essa situação que temos. Nós precisamos unir os movimentos. Quando o capitalismo se reforça, reforça-se também o colonialismo e o patriarcado.

Por exemplo, ao olhar para o governo da presidente Dilma, tinha mulheres e tinha negros. No momento em que houve o golpe para forçar o capitalismo de origem neoliberal, desaparecem as mulheres e desaparecem os negros nos ministérios. E houve aquela coisa caricata do presidente dizendo que não tinha encontrado mulheres para os ministérios. Aquela coisa absurdamente caricata num País onde a maioria são mulheres.

PB! – Como foi possível que o processo de impeachment acontecesse daquela forma, tão desrespeitosa com a primeira mulher presidente do Brasil, eleita com 54,5 milhões de votos?

BSS – É difícil dizer porque é especulativo. Mas ela foi vítima de discriminação, sem dúvida nenhuma. Isso mostra também que os partidos progressistas e o movimento popular andaram 13 anos distraídos porque pensavam que a sociedade tinha sido profundamente transformada. As forças de esquerda tomaram o governo, mas não tomaram o poder social. E nem sequer cuidaram de democratizar a sociedade. No futuro, não haverá democratização do Estado se não houver democratização da sociedade, o que é uma tarefa muito mais ampla. Portanto, todas essas conquistas parece que se desfazem no ar, de um dia para o outro, e se viu que era tudo um certo verniz. Passado esse verniz, as empregadas domésticas tinham que ser servis, como tinham antes, estavam tendo demasiados direitos, já não dependiam tanto da filantropia.

A classe no brasil é sempre racista e é sempre patriarcal. Isso nos trouxe uma grande virulência e está se mostrando uma grande virulência neste momento.

PB! – As esquerdas foram surpreendidas com essa fraqueza da democracia? Houve um descuido? Como se pode reorganizar as esquerdas?

BSS – O que é a esquerda? Temos a esquerda organizada em uma pluralidade de partidos e temos a esquerda que são os movimentos sociais que lutam contra a opressão e as diferentes formas de dominação, e que estiveram ou não ligados a partidos, muitos deles em uma estrutura apartidária, digamos assim. É evidente que os partidos populares e os governos, como na Bolívia, no Equador, na Venezuela e aqui no Brasil, que saem da emergência de forte mobilização popular, criam uma ilusão nos movimentos sociais de que seus amigos tinham chegado ao poder. E, portanto, descansaram. Quando exatamente deveria ter sido o contrário porque no momento em que os amigos chegavam ao poder, sabiam que esses amigos iam ser sujeitos a múltiplas pressões para se distanciarem dos seus amigos, e portanto governar o País contra eles. Mesmo não crendo, era preciso continuar a haver uma pressão de baixo.

Isso é uma coisa que nós lutamos em todos os países. Os movimentos sociais do Equador e da Bolívia lutaram muito por uma Constituição e quando foi promulgada, descansaram. O primeiro dia de luta era esse: lutar para que a Constituição fosse cumprida. Não. Descansaram. No Brasil, os movimentos sociais de alguma maneira descansaram. Talvez o único que não descansou e continuou com uma atividade de intervenção foi o MST, um dos maiores movimentos sociais da América Latina e quiçá do mundo, e portanto continuou com um certo ativismo.

Muitos outros pensaram que, tendo amigos no Planalto, podiam descansar. Finalmente nós íamos ter uma sociedade um pouco mais inclusiva. Isso descuidou a retaguarda dos movimentos. No que diz respeito aos partidos, o partido protagônico, PT, é sempre a mesma ideia de tomar o governo ou tomar o poder.

Realmente houve a ilusão de que num sistema político que não foi reformado se poderia governar à moda antiga para outros objetivos. Com as mesmas alianças, as mesmas formas, com a mesma ideologia que vem da segunda república.

Ideologia que é um pacto entre as elites, onde as classes populares não deveriam entrar para perturbar o jogo.

Mas na verdade, como as sociedades não podem ser planeadas como uma linha de montagem, houve aqui uma perturbação e em 2003, um operário consegue chegar à Presidência da República. A partir daí, cria-se uma primeira fissura na própria hegemonia das classes dominantes: alguém que não pertence às elites, o primeiro movimento é tentar absorver. O que foi de certa maneira fácil, na medida em que, como eu digo, basta ver a “Carta aos brasileiro” do presidente Lula, dizendo que não iria alterar os compromissos internacionais, financeiros do País, um modelo de desenvolvimento que não era sustentável a longo prazo, era uma modelo de continuidade do colonialismo, que era o extrativismo e a extração de recursos naturais, tornado possível devido ao impulso de desenvolvimento da China, num contexto de altos preços das commodities.

Era uma situação em que todos ganham. É mais fácil governar numa situação desse tipo.

A partir daí, os bancos nunca tiveram tantos lucros. O Brasil transformou mais de 50 milhões de pessoas através do Bolsa Família e das políticas de inclusão. Não se pode trivializar a ideia de que tantos milhões que não comem uma vez por dia passaram a comer 3 vezes por dia que isso não é uma revolução. Obviamente que é uma revolução, mas que foi feita com o mesmo modelo de desenvolvimento e com o mesmo sistema político que favorecia as elites e as classes dominantes.

No momento em que a solução do ganha-ganha entra em crise, o modelo entra em colapso, praticamente. Entra em colapso também por conta de situações internacionais, por exemplo o preço do petróleo, que de uma semana para outra passou a metade. Não foram os mercados, foi uma intenção do imperialismo norteamericano, no meu entender, que queria neutralizar a Rússia, que tem muito petróleo, neutralizar o Irã, que com o fim do embargo ia entrar no mercado internacional do petróleo e era preciso fazer baixar o preço, e a Venezuela. Era preciso neutralizar o Brasil, que estava tendo algum protagonismo internacional como um dos países emergentes. O erro foi um pouco esse: terminou a hegemonia da própria classe dominante. Ou seja, ela vai aguentar a sua hegemonia até a produção do golpe? O golpe é o ponto final da hegemonia da classe dominante? A partir desse momento ela esbroa-se. Exatamente o que estamos a ver.

PB! – Diante do quadro de combate à corrupção e do desgaste dos partidos políticos o Poder Judiciário ganhou força. Qual a sua opinião sobre esse quadro?

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BDD – Como a corrupção é sistêmica, a hegemonia que permitiu a segunda República caiu completamente e as classes dominantes estão a comer-se umas às outras, com escândalos diários de escutas em que os periódicos que criaram o golpe e que promoveram o golpe estão neste momento a atacar os golpistas, digamos assim, como se realmente agora se repusesse a democracia pondo apenas os golpistas à vista. Nós já tínhamos visto que eram golpistas, não é? É uma crise de hegemonia na sociedade brasileira, que não pode, neste momento, ter nenhuma solução muito criativa. A solução criativa numa situação em que, por um lado, a classe dominante perdeu a hegemonia, nitidamente, está sem ter um norte para onde ir, metem-se na prisão uns aos outros, digamos assim, por outro lado, as classes populares não têm ainda uma capacidade organizada de resposta, foram apanhadas de surpresa, houve um grande choque, as medidas que estão aí em preparação não chegaram ainda ao bolso das pessoas, leva tempo para que esse empobrecimento, o sucateamento da educação, da saúde, atinjam a sociedade, leva um tempo até filtrar, até a base.

Houve um impasse entre uma classe dominante que tem uma crise de hegemonia muito forte, e as classes dominadas, as classes populares, que ainda não conseguiram se organizar como uma resposta.

Temos aqui uma dualidade de impotências: a da classe dominante e a das classes populares. Dos três órgãos de soberania, todos eles um pouco deslegitimados, o único que não foi eleito – o judiciário – assume uma posição de gerir esse impasse durante algum tempo. É natural. E pode geri-lo de várias formas: mantendo-se no campo do judiciário, ou algum de seus membros passa a se firmar como líder político. Isso vai criar uma perturbação enorme nos movimentos populares e pelas diretas já.

PB! – Está se construindo a ideia de que as reformas trabalhista e previdenciária são a única saída para salvar o País. Que consequências essa política neoliberal pode nos trazer?

BSS – As medidas que estão aqui sendo impostas são as medidas que foram impostas aos portugueses em 2011. É exatamente a mesma coisa: crise da previdência, das leis trabalhistas, privatizar a saúde e privatizar a educação. A receita neoliberal é global, com nuances de país para país. Na Europa, temos vindo a vivê-la, a própria Grécia, também sob alguma forma violenta, e Portugal em 2011, conseguiu livrar-se. O que mostra o seguinte: essa receita neoliberal é global, apresenta-se com uma total rigidez, isto é, ou se fazem essas reformas ou não há investimento externo, ou não há competitividade, ou o fim da recessão, e portanto o país não tem como avançar, tem mesmo que fazer essas reformas.

Podemos dizer que, se calhar, o fato de Temer ter caído em desgraça na Globo é parte da convicção de que ele não tem poder suficiente para levar a cabo as reformas. E provavelmente em um sistema de eleições indiretas ou de qualquer outra forma, alguém pode ter legitimidade suficiente – se for alguém do Judiciário provavelmente ainda mais legitimidade, porque não traz a mácula da corrupção, e isso vai ser muito importante: não é o movimento popular a lutar contra a corrupção, porque quem é candidato é quem lutou contra a corrupção. Isso altera completam tente o cenário. Mas o objetivo é aplicar essas medidas, obviamente.

E isso é que nós temos que ver que é uma grande farsa do neoliberalismo. Já está demonstrado que não é assim. Há um grande poder de convicção, por ter o oligopólio da mídia, que mostra e entra nessa forma de alienação das classes populares e quer convencer as classes populares que vivem acima de suas posses, que realmente a sua pensão, mesmo magra, está em perigo se não for privatizada, e é melhor que a gente liberalize o mercado de trabalho e precarize porque vamos aumentar empregos. É um pouco essa a lógica que está aí.

O que acontece é vermos que quando isso resiste, com êxito, mostra-se efetivamente que é uma farsa. O melhor exemplo é o caso português: entre 2011 e 2015 tivemos um governo reacionário, que aplicou essas medidas. Em final de 2015 há eleições, e os portugueses como sempre, desde 1974, votam à esquerda, mas quem governa é a direita. Porque a direita está unida e a esquerda está desunida.

Pela primeira vez em 40 anos, os três grandes partidos de esquerda decidem articular-se, não para se fundirem, mas com um acordo de governo que ponha travão à precarização das leis trabalhistas e à privatização da previdência, entre outras austeridades.

Foi possível criar uma alternativa através de uma coisa muito corajosa, que é o estado “geringonça” – palavra depreciativa criada pela direita e que está a funcionar. Funciona há pelo menos 4 anos, os alemães já tem uma palavra correspondente a geringonça e os ingleses também. Ou seja, nós transformamos um nome negativo contra a esquerda em um nome positivo, e temos muito orgulho nessa geringonça.

É um pacto de governo mas que teve este efeito. É que fizemos exatamente o oposto ao que diz a receita neoliberal. E os resultados que estamos a ter é exatamente o oposto ao que eles diziam: o país nunca teve tão pouco desemprego, estamos em 9%; é um dos países que mais cresce na Europa, estando acima dos 10%; o déficit público está a diminuir; a dívida pública se mantém porque é impossível diminuir de um ano para o outro, e o país está exatamente fazendo o contrário do que diz a receita neoliberal, e está a erguer-se de novo.

Ou seja, o neoliberalismo é uma farsa. O capitalismo só é rígido enquanto não tiver que se confrontar com uma alternativa. É mais fácil, para garantir a acumulação deles, produzir o empobrecimento das classes populares, precarização das leis trabalhistas, privatização da previdência – porque é um bolo de dinheiro enorme – que anda no sistema financeiro que é quem domina este País, obviamente. Eles querem essas vantagens, não os critique por isso. Nós temos a criticar é promover forças suficientes para resistir contra isso. No momento em que eles tem que se confrontar com uma alternativa política, adapta-se. Diziam que não haveria investimento direto em Portugal, está a aumentar o investimento direto, e é por isso que Portugal está a crescer.

O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui no Brasil exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política eventualmente como a reforma política, porque esta, como vê, só é possível numa condição, que é a grande reforma política. Por isso, o Brasil estará em impasse durante um tempo.

Os partidos de esquerda, em nenhuma condição se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. E se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas.

Ir governar na base de conciliação com grupos de direita, com partidos de direita, que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB, com o PSDB, não sejamos ingênuos, podemos cometer o erro uma vez. Mas não vamos cometer o mesmo erro muitas vezes porque senão um político daqui disse que a esquerda é burra. É burra se continuar a cometer os mesmos erros.

PB! – Alguns políticos costumam classificar o Partido dos Trabalhadores, e seus líderes, como “inimigos”. O que significa essa construção?

BSS – É realmente a perda da face dessa democracia fársica. Porque na democracia não há inimigos, há adversários. É a grande distinção. O inimigo é aquele que se quer destruir, o adversário é aquele com quem se tem que articular na oposição e tentar ganhar ou perder, mas tem uma posição contrária e que democraticamente pode ser elaborada, para ganhar ou perder. O inimigo é para destruir. A lógica do amigo-inimigo, do nazismo alemão, a ideia é que nos dividimos entre duas águas. Aliás todo o conservadorismo, o projeto que está em curso neste momento não é o liberalismo. É a que já não tolera a democracia, mesmo de baixa intensidade, passa a se tornar mais “fascizante”, digamos assim, por exemplo, começa a não ter confiança nem sequer na classe política, e quer que sejam os seus a governar – é o caso do Macri, do Trump, do Macron – são os homens de negócios que se transformam em políticos.

Eles vão perdendo a confiança porque no jogo democrático são muito impacientes. A direita aqui no Brasil, dada que a alteração no preço dos commodities estava a levar a uma crise no sistema, no seu segundo mandato, a presidente Dilma teve que tomar medidas anti-populares, e ter um ministro [Joaquim Levy] que era totalmente contrário a tudo aquilo que ela tinha proposto na campanha eleitoral. Então, era de prever que houvesse crise e que nas próximas eleições esta orientação política perdesse as eleições. Estavam impacientes. Nós nunca vimos em nenhum outro país, poucos meses depois de um presidente ganhar as eleições, estar-se a pedir o seu impeachment, sem prova nenhuma de crime de responsabilidade.

É essa a grande novidade que o Brasil deu ao mundo. Infelizmente é uma novidade triste: talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina. Em plena democracia. Isso é que mostra a falência do sistema democrático.”

PB! – Qual a sua opinião sobre o atual movimento das Diretas Já?

BSS – As Diretas Já tem um impulso interessante que é repor a legitimidade democrática. É uma ideia de dar a palavra ao povo. É também a forma mais eficaz de travar essas leis porque ninguém que vá dizer numa campanha eleitoral que quando chegar ao poder vai aplicar aquelas leis é eleito. Provavelmente, depende de como os mídia vão funcionar, sobretudo num País que passa 4/5 horas por dia a ver televisão, penso que seria difícil que ocorressem.

A luta é exatamente entre aqueles que querem aplicar as medidas e aqueles que querem travar as medidas. O que se viu efetivamente é que não querem recuar de maneira nenhuma nas medidas, porque muitos acreditam genuinamente que é a única maneira de repor a sua rentabilidade. Mas há muitas outras medidas possíveis, bastava que o capital financeiro não fosse tão voraz como é no Brasil, que tem as taxas de juros mais elevadas do mundo. E que 7,9% do PIB é para pagar os juros da dívida, coisa que nenhum outro país no mundo faz.

PB! – Que tempo é esse da reinvenção das esquerdas, subtítulo do seu livro?

BSS – É muito difícil prever porque os sociólogos são bons para prever o passado, mas o futuro não somos muito bons. Evidente que com o bombardeamento midiático que se fez, dando sinal das medidas e da demonizarão da esquerda e do partido que foi protagonista durante este período, nós vamos precisar de um certo tempo, porque a pessoa na rua que não é militante começa a sentir no bolso o sucateamento do sistema de saúde, que já é fraco mas que vai ser muito mais fraco; o pagamento da educação dos seus filhos; a possibilidade de perder a casa e ser despejado; o salário que vai baixar; a distância entre a periferia e o centro, que o Haddad de alguma maneira tinha tentado encurtar vai aumentar; portanto vão começar a sentir isso, mas o sofrimento humano nunca é ativo politicamente.

O sofrimento pelo sofrimento não vai lá. É preciso organizar-se politicamente, que as forças políticas, os movimentos sociais e os partidos possam captar a insatisfação que se vai gerar. ”

Mas leva um pouco de tempo porque as pessoas ainda não viram as consequências. Há espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.

PB! – Quanto tempo?

BSS – Depende de quanto tempo de doutrinação. A doutrinação tem muitos limites, ela não consegue doutrinar completamente porque os seres humanos vivem na História e fora da História. Ninguém esperaria que Portugal fosse criativo politicamente e agora foi criativo. Amanha pode ser o Brasil, pode ser outro país. O que é preciso é o poder de agregação das forças de esquerda – e não vai ser fácil. Vai ser difícil. O que aconteceu com Jeremy Corbin, que ninguém esperava, diferente dos jovens que criaram o Podemos, os jovens ingleses decidiram inscrever-se em massa no Partido Trabalhista. Foi o que o levou ao poder. Eles achavam que o partido tinha sido completamente descaracterizado por Tony Blair, tinha apoiado a guerra no Iraque e feito todas aquelas estripulias. Através de uma inscrição massiva, alteraram a política do partido.

No Brasil, eu corro o Brasil todo, o jovens não estão a sentir-se atraídos de maneira nenhuma pelo PT, alguns pelo PSOL, mas eu trabalho muito com rappers, são esses os jovens que eu vejo, que estão a fazer uma atividade política extraordinária neste País mas fora do movimento partidário. Isso vai durar algum tempo, não sabemos como vão se reorganizar, penso que há efetivamente espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.

PB! – Qual a sua opinião sobre a presença do ex-presidente Lula na crise e no processo de saída da crise?

BSS – O ex-presidente Lula é tanto parte do problema como é parte da solução. Eu tenho respeito por ele, sou amigo dele. É um homem que sem dúvida é a figura mais notável da História do Brasil depois da Independência. É a quem o Brasil deve, para sempre, tem uma dívida absolutamente extraordinária. Mas é evidente que é um homem refém do seu passado, como também todos nós somos. É um homem que teve como ninguém mais tem, e como não teve a presidente Dilma, a capacidade de conciliar classes. É uma pessoa que realmente conseguiu fazer uma política de conciliação muito forte. Isso é um trabalho notável que ele realizou e que transformou o Brasil. O Brasil é hoje muito diferente de 2003. E o legado dele vai se dar até contra ele, mas foi devido a ele que hoje as pessoas pensam o que pensam no Brasil. A possibilidade de uma sociedade melhor.

O presidente Lula, evidente que neste momento, como não houve renovação nos partidos de esquerda, é o único nome da esquerda com alguma viabilidade para ganhar as eleições. Se a esquerda quer ganhar as eleições, tem que ser com o presidente Lula. É evidente que isso é importante para ganhar as eleições. Agora, com o presidente Lula não vai haver renovação do PT, não vai haver renovação política muito profunda. Porque essa renovação passa pela transformação do PT num partido-movimento, passa pela democracia participativa dentro do partido, como tem o Podemos, passa por uma articulação com o PSOL e com os movimentos sociais, que eu penso que neste momento, com a lógica de conciliação que o presidente Lula tem no seu imaginário, vai ser muito difícil de levar.

Estando Lula não vai ser possível criar outro partido político. E eu penso que a política brasileira tem espaço, eventualmente para um novo partido a partir dessa mobilização social ainda incipiente. O que é curioso é que aquilo que em Portugal foi possível unindo as esquerdas pela via partidária, no Brasil está a se fazer via movimentos sociais. Temos duas frentes: Brasil Popular e Povo Sem Medo. São duas articulações que falam uma com a outra, em que algumas organizações estão nas duas, portanto eu penso que essa articulação profunda está-se a dar. Se amanhã vai se transformar ou ter uma voz partidária, depende muito do futuro.

O presidente Lula é um fator muito importante, evidente que a direita sabe exatamente isso que estou dizendo, há uma fração eventualmente da direita mais inteligente que até é capaz de pensar que talvez fosse bom que o presidente Lula voltasse à Presidência, para destruir de uma vez para sempre o mito Lula. Porque ele não vai poder governar como governou, não há uma reforma política que lhe permita governar de outra maneira, os preços das commodities são o que são e portanto destroi-se o mito de uma vez para sempre. Se ele não voltar a ser presidente, o mito está intacto. A aceitação que ele continua a ter, que é absolutamente notável, é que todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo, o homem mais demonizado pela imprensa continua a ter aceitação popular enorme. Foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro, e essa parte de futuro tem um lado muito claro e outro menos claro. É preciso que digamos publicamente que temos consciência disso, para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular, que foi também a sua tradição. Só que ele não teve que tomar uma grande posição entre uns e outros, era amigo de todos, Lula paz e amor. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.

PB! – Esse momento de crise profunda pode se transformar em oportunidade?

BSS – É um momento interessante na sociedade brasileira, de renovação. A democracia se defende na rua, neste momento. A rua é o único espaço público que não é colonizado pelo mercado financeiro, portanto é um espaço importante de manifestações pacíficas. Vai ser problemático porque vai haver infiltrados e agentes provocadores para provocar violência, dizer que são todos violentos e suscitar a brutalidade policial.

A rua é muito boa para manifestar as aspirações políticas das classes populares e dos jovens, mas não pode formular política, ela não é capaz de formular política. Tudo isso vai levar o seu tempo.

O grande problema é que essa crise de hegemonia pode entrar em uma crise social muito forte. Que desagrega o tecido social.”

Mas o Brasil vai se reinventar. As crises, se não forem permanentes – e o neoliberalismo quer a crise permanente porque assim a crise se transforma ela própria em solução e destrói a oportunidade – e essa no Brasil não é porque é uma crise política, de hegemonia e econômica, cria oportunidades. Vamos ver como o campo popular se articula, pode reagir pela reposição das energias democráticas e por isso as Diretas Já é uma sinalização nesse sentido. O importante é bloquear as medidas. Esta é a luta em que o Brasil vai estar metido nos próximos tempos.

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