Em Cartas Proféticas, por Roberto Bueno – Quem desperta e dissemina o ódio nem sempre tem suficientemente claras as consequências de suas ações, mas não raro as têm, e sem preocupação em evitá-las. Aqueles que alimentam as condições do enfrentamento insistem levianamente em desprezar as vidas de seus contemporâneos e também as condições de existência das gerações vindouras, e a deterioração ambiental assim o exemplifica. Aqueles que projetam dias perpassados pelo compartilhamento da cultura do ódio e da negação do outro e das diferenças entre os humanos semeiam a mancheia o fértil território onde a apreensão e o medo cultiva o espaço que logo cobrará denso jorro de sangue.
Neste território em que reina o temer recordamos a precisa identificação literária de Ernst Jünger, narrador entre trincheiras das aventuras sanguinárias da Primeira Grande Guerra Mundial. Em sua premiada obra apontava os pavores testemunhados na qualidade de ator com seu singular brilhantismo estético-literária: “Instantes como éstos en una patrulla nocturna son inolvidables. Ojos y oídos se tensan al máximo; el cada vez más cercano crujido de unos pies extraños que caminan sobre la alta hierba adquiere una intensidad amenazadora y fatídica; la respiración se hace entrecortada y uno ha de esforzarse en reprimir las dolorosas contracciones del jadeo; el seguro de la pistola salta hacia atrás con un leve chasquido y ese sonido atraviesa los nervios como un cuchillo; los dientes rechinan al morder la mecha de la granada de mano”. Esta é a descrição de um ponto futuro que começa com a radicalização desenfreada marcada pela designação do outropolítico como criminoso a quem se reserva apenas o extermínio como alternativa possível para uma suposta pacificação.
A narrativa de Jünger é a de um momento em que a retórica do ódio já triunfara, e se passava do mundo das palavras ao das ações, e ali é onde o homem concretiza a tensão máxima, dispondo sobre o campo de batalha toda a força de sua mente disposta a sobreviver. Ali é realizado o tensionamento no limite das capacidades humanas, projetando-as sobre o corpo que, na iminência do embate último, recebe a pesada carga de manter aquela unidade existencial em vida em face da iminente e letal ameaça. Este é o momento dadesrazão supina capaz de produzir o maiúsculo horror, cujos instantes prévios são também descritos pela literatura jüngeriana como o alerta do homem para um “Breve y mortífero […] choque”, aquele momento definidor, e definitivo, onde as sensações precisam estar alertas, todas as percepções aguçadas, pois e naquele átimo de segundo que tudo será decidido, o ser e o não-ser, enfim, a definição entre o ser caçador ou a caça. A transposição desta realidade de enfrentamento último para tempos de política ordinária é possível somente através do empenho de psicopatas travestidos de senhores da representação, mentores de grupos que oscilam entre a inconsequência e a irresponsabilidade crua, na iminência de cruzar os limites para a criminalidade penal, ao propor o extermínio da alteridade e dos homens e mulheres com hábitos diversos a sua padronização como critério suficiente para enquadramento legal.
Mas se é mesmo tudo assim o sistema, tão vil e bárbaro, por qual motivo os homens deixam conduzir os seus corpos rumo ao sofrimento e, no limite, ao extermínio? Se é mesmo o enfrentamento a raiz da radicalidade do mal, então, por qual motivo os homens se deixam conduzir perigosamente rumo ao abismo? Talvez uma das chaves seja a ânsia da posse, o desenfreado desejo pela propriedade, a furibunda capacidade de sobrepor o mundo da detenção de bens ao mundo da criação existencial interior capaz, e apenas ela, de constituir o eixo de equilíbrio e forte sustentáculo para a pacificação do humano. Este é o cruzamento entre a civilização conhecida e outra ainda por conhecer. Hoje, contudo, é o velho que se apresenta sem faces nem disfarces, eis que o núcleo duro do Estado está constituído por casta de agentes públicos formados culturalmente sob a égide deste velho mundo em que receber barrotes de ouro em país sacrificado pela miséria ainda é compreendido como chave de honorabilidade e signo de distinção. Estas são as figuras de um triste passado que já morreu mas que ainda não teve o seu atestado de defunção assinado e devidamente publicado para conhecimento geral, senão em si mesmas.
Continua a triunfar esta desmesura em favor das castas, ornamentando o brilho dourado em homens e mulheres sedentos de mais em meio à decadência, orçamentos extraordinários de poderes togados alcançando a órbita de bilhão e meio de reais que supera sem vergonha ou pudor a rubrica do investimento federal em saneamento público, pois assim podem estes coroados, como disse o juiz Renato Nalini, ir comprar seus suntuosos ternos, um para cada dia da semana. As sociedades latinas deglutem a duras penas o triunfo de uma cultura imposta cuja orientação política e econômica é a do desligamento do homem da valoração de suas mais subjetivas experiências, resumindo pauperrimamente todo o mundo dos valores em um único apenas, o vil metal, mediador e representante último de tudo como medidor das aproximações humanas, e este é o movimento que interessa à oligarquia manter. A representação da pobreza e da miséria é feita por Antonio Negri como habitando a subjetividade de homens e mulheres que já não tem mais nenhuma relação com o valor, mas acaso esta oligarquia que os conduz às portas do abismo supõe que os seus organismos não exercerão o seu natural instinto de sobrevivência?
Tenho aguda percepção de que já não falo para estes tempos, mas se é certo dizer que não se trata de eliminar a moeda e o conjunto de funções que exerce, isto sim, se trata de ressignificar o seu papel, de eliminar o valor social que foi emprestado a este instrumento como forma de mediação de praticamente toda e qualquer relação humana. Hoje ela opera como um vicioso círculo, eis que se fecha sobre si, alimentando as condições para o incremento de posses e posses, exceto de sua subjetividade, desencontrada em meio a tanto pertences, como um belo e raro título perdido em um velho antiquário desordenado. Nada disto é possível sem prévio passo como o identificado por Antonio Negri, que supõe a necessidade de “[…] arrancar dos mercados a sua capacidade de dominar o dinheiro e sobre essa base determinar hierarquias, estruturas de comando e, sobretudo, distribuir a possibilidade de fazer coisas, realizar desejos”. Esta estratégia evidencia o teor da reapropriação de homens e mulheres de suas vidas – corpos, tempos e afetos – hoje alienados em favor do sistema econômico cuja oligarquia apresenta-se sob a retórica triunfadora de renatos teólogos medievais, prometendo a redenção em longínquas e transcendentais plagas.
O neoliberalismo habita a mente daqueles que creem que a natureza deixada a operar livremente produzirá alguma ordem, quiçá, ainda uma mínima noção de equidade social capaz de motivar a almejada segurança social. Contudo, quando pereçam homens e mulheres, crianças e idosos, assim, atirados ao léu, como em nenhum dos países socialmente ordenados ocorre, peculiaridade que não pode menos do que exercer atração por parte de qualquer ser humano sensato. O neoliberal é alguém distante desta realidade, pois concentra-se na (re)produção de riqueza exponencial, a qualquer custo, na promoção das condições da concentração de recursos em escassas mãos dispostas a sacrificar quaisquer outros fins humanos. Sem embargo, é precisamente neste momento em que a sua radicalidade atinge os limites do inaudito, pois ao esquecer completamente o momento do enfrentamento último em que colocam os homens e mulheres o seu sistema ruirá. Ao interditar qualquer opção de vida em suas organizações sociopolíticas a uma massa de homens e mulheres, tudo quanto lhes restará será aquela sensação de frieza do soldado jüngeriano a ranger os dentes ao retirar o pino da granada, antecipando em seu íntimo o que o autor descreveu como uma sensação singular antecipadora do iminente choque breve e mortífero, aquele momento em que “Uno tiembla entre dos sensaciones dolorosas: la acrecentada excitación del cazador y la angustia de la pieza de caza”. Este é o último passo antes da destruição.
A imposição de ordem social em que temer é o paradigma desenha todo o presságio do mal possível. Homens e mulheres são colocados contra a parede por lunáticas versões da Santa Inquisição em sua moderna formatação econômica, quando desembainham as suas espadas redentoras estes renatos guerreiros santificados e dispostos a derramar o sangue em nome dos santos princípios da doutrina neoliberal. Neste ato saberemos que são falsificadores da própria teologia, pois conhecemos que nenhuma convida o humano à barbárie. Neste cenário contemporâneo assistimos a razão teológica medieval inquisitória sendo recepcionada pelo mundo econômico em que a suposta benevolência de longínquos fins justificaria a aplicação de transgressores meios.
Emerge destas profundezas a raiz da inaudita e malfajeza figura do perfil de um economista-teólogo. Ele não conhecerá limites nem sacrifícios impagáveis para impor a sua razão econômico-teológica e, assim, por linhas transversas, cumprirá prazerosamente o fim de violar o declarado respeito liberal pela democracia. Neste sentido terminará por realizar a antecipação de Raymond Aron, intelectual que esteve demasiado distante de ser considerado socialista, nem sequer um social-democrata, neoliberal que foi. Mas foi ele a afirmar que a doutrina econômica de homens como o economista francês Jacques Rueff e de von Hayek não poderia realizar-se senão sob um específico e bem determinado contexto político, a saber, a ditadura. Portanto, é através da voz de um neoliberal que somos informados desta sua afinidade teórica com as ditaduras e, afinal, quem duvidaria que isto se confirmou no plano empírico quando observamos o testemunho histórico da assessoria de Milton Friedman a Pinochet e, nos dias em curso, das várias estratégias para suprimir da população o acesso a assistência médica, a educação e ao emprego?
Antes que a ditadura neoliberal hayekiana se constitua de modo inexorável e, assim, o mal radical, a única saída é a de reinventar o processo constituinte, ou seja, o poder político originário através do qual o povo outorgue a si os princípios e leis que devem regê-lo. Esta é uma nota essencialmente democrática e isto realiza o que Vladimir Safatle preconiza como a “[…] transferência do poder para instâncias de decisão popular que podem e devem ser convocadas de maneira contínua”. Esta nova residência do núcleo duro do poder é capaz de contribuir de forma decisiva para a consolidação da democracia, mas isto efetivamente não interessa aos oligarcas que historicamente dão as cartas, que não apoiarão a retomada da política (democrático-popular) em prejuízo da manutenção do poder, e assim cumprem com o teor da observação de Vladimir Safatle de que há os que temem a política pretendendo substituí-la pela polícia.
Mas se o objetivo é a democratização através da retomada do poder, então, o primeiro e necessário passo é “desoligarquizar” as instâncias de representação política, elevar os homens médios ordinários à condição de realizadores da política, algo que certamente desarticula desde dentro a armadilha detectada já há muito por Darcy Ribeiro, a saber, de uma sociedade em que o desajustamento tende a crescer tão intensamente que “[…] alguns setores da fôrça de trabalho; produzindo, depois, massas de deslocados e gerando, por último, multidões de marginalizados social e ocupacionalmente […]”. Armadilha que precisa ser decomposta, passo seguinte, convergimos com Antonio Negri ao propor a necessidade de “Modelar o desejo da singularidade para construí-lo como elemento coletivo ao interior de experiências que permanecem irredutivelmente libertárias”. É preciso, portanto, fugir à lógica da caça e do caçador exposta pela literatura de guerra de Ernst Jünger, pois isto é o que hoje vigora na lógica imposta pela oligarquia dominante do mercado.
A oligarquia dominante do mercado é que, em última análise, cumpre e bem constrói o cenário ideológico que Roberto Aguiar aponta há muito que precisamos suplantar para constituir novas e libertárias relações humanas, e o cenário oligárquico a vencer é precisamente aquele de exploração de um ser humano por outro, pois nestes termos é visceralmente “[…] impossível falar em liberdade quando um vive de sugar a energia de outro, quando poucos usufruem do trabalho de muitos, e quando muitos não podem pensar e agir senão conforme as normas e padrões de poucos”. É preciso vencer o discurso acachapante do temor, o profundo e enraizado receio de realizar um outro modelo de sociedade calçado em relações trabalhistas e humanas que discrepem ao da aceleração imparável rumo ao abismo conduzido pela lógica ditatorial neoliberal. O rumo da destruição é a tentativa de brecar já à beira do abismo quando, expostos e já sem opções, devem emergir homens e mulheres com a coragem singular do soldado jüngeriano para enfrentar a sua única chance de vida.
Roberto Bueno. Professor universitário.