Maioridade penal: A rotina em uma vara da infância, em que juízes e promotores decidem o destino de adolescentes infratores

Maioridade penal: A rotina em uma vara da infância, em que juízes e promotores decidem o destino de adolescentes infratores

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Da BBC Brasil em São Paulo, por Leandro Machado – Quase todas as frases terminam com “senhor” ou “senhora”. “Com licença, senhor. Com licença, senhora”, dizem, invariavelmente os adolescentes que entram em uma das salas de audiência da 1ª Vara Especial da Infância e Juventude de São Paulo, no Brás, centro da capital paulista. Em poucos minutos, terão uma definição sobre seu próprio futuro, proferido por um juiz. Luciano (os nomes dos adolescentes foram trocados nesta reportagem), de 16 anos, começa a chorar, e pede ao magistrado: “Por favor, me dá mais uma chance, senhor”. Flagrado em um roubo, ele havia acabado de receber sua punição: uma temporada internado na Fundação Casa – instituição para onde são enviados menores infratores.

Por três dias a BBC Brasil acompanhou audiências na Vara da Infância. Enquanto os juízes seguem definindo punições e correções a adolescentes, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) analisa uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que reduz a maioridade penal em casos de crimes hediondos, como homicídio e estupro – de 18 para 16 anos.
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A votação do projeto na CCJ, já aprovado na Câmara, acontecerá no final de outubro. Depois dessa etapa, ele poderá ser levado ao plenário. Caso a proposta passe, um adolescente de 16 anos acusado de assassinato deverá ser julgado como um adulto. Se for condenado, poderá ir para uma prisão comum – hoje, cumpre medidas socioeducativas.
Há anos, essa discussão causa polêmica no país. Quem defende a diminuição argumenta que os adolescentes infratores já têm consciência de seus atos, recebem punições brandas e saem de instituições correcionais sem antecedentes criminais. A suposta impunidade dos menores faria com que o crime organizado os recrutassem para praticar crimes que custariam muitos anos de cadeia para adultos.
Quem é contra argumenta que um menor de 18 anos ainda está em formação e que antecedentes criminais manchariam sua vida em um país que costuma dar poucas oportunidade para ex-presidiários. Também afirma que o encarceramento não diminui a violência. Pelo contrário, a tendência seria aumentá-la, pois os jovens presos poderiam se transformar em massa de manobra para as facções criminosas que dominam as cadeias.
As cerca 30 audiências às quais a BBC Brasil assistiu foram presididas pelo juiz Egberto de Almeida Penido, que há oito anos atua na área. Na sala ficam ainda a promotora Tatiana Callé, responsável pela acusação, e o defensor público Guilherme Feccini. Baseados em suas experiências cotidianas, os três se mostraram contrários à redução da maioridade. Mas essa não é uma posição unânime nos órgãos que os três representam.

Adolescente em unidade da Fundação Casa

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Em São Paulo, cada uma das quatro varas responsáveis por infrações fazem, em média, 20 audiências no período de uma tarde – cinco dias por semana. O ritmo é intenso, como em um “fast-food” judicial, nas palavras de pessoas que atuam na área.
No começo de outubro, a Fundação Casa de São Paulo tinha 9.333 adolescentes cumprindo medidas socioeducativas – 8.887 em restrição total de liberdade, provisórias ou não.
‘Fui no embalo’
A cabeça baixa, as mãos pra trás, a repetição do termo “senhor”, que menores como Luciano adotam, são um código de conduta ensinado por funcionários da Fundação Casa e criticado por integrantes do fórum – eles chamam o ensinamento de “coisificação” dos adolescentes.
O pai de Luciano, um encanador, acompanha a audiência. Junto a amigos, o jovem roubou uma pessoa usando uma pedra como arma. Levou celular, R$ 20 e o Bilhete Único da vítima. O juiz Penido pergunta o que o motivou. “Não sei por que fiz, senhor. Fui pela cabeça dos outros, fui no embalo”, responde.
Essa foi uma resposta comum: muitos se disseram influenciados por amizades ruins ou simplesmente não sabiam a motivação exata do próprio ato – foram “na onda”, “sem pensar direito”.
Para a promotora Tatiana Callé, a pouca idade faz com que os garotos tenham dificuldade em conseguir medir as consequências de seus atos. “Com 16 anos, a pessoa ainda é imatura, por mais que a gente acredite que ela já saiba o que faz”, diz ela, há dois anos na área. “Eles são mais influenciáveis, com hormônios à flor da pele, o que também dificulta o autocontrole”, diz.
Oswaldo Monteiro Neto, promotor da infância há 24 anos no mesmo fórum, mas em casos distintos, discorda da avaliação da colega – ele é a favor da redução da maioridade penal. “Com 16 anos, eles têm plena consciência do que fazem. O Código Penal foi feito em 1940. Naquela época, uma pessoa de 16 anos era completamente diferente de alguém com a mesma idade hoje”, diz.
Na audiência, Luciano conta que parou de estudar há dois anos. Ao lado, seu pai explica: “Matriculei ele, doutor. Mas ele faltava muito. Eu trabalho à noite, não consigo acompanhar direito, a mãe não mora com a gente. Sou pai e mãe”.
O juiz Penido dá uma bronca no garoto: “Isso é uma questão de vida ou morte. Você poderia ter morrido. E se a vítima reage? E se você leva um tiro? Você não está obedecendo o seu pai”. O encanador acrescenta: “Falo para ele, doutor. Se você continuar assim, é cadeia ou morte. Mas ele não escuta”.

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Pais e filhos
“Sabe dizer por que sua mãe não veio?”, questiona o magistrado a um garoto alto e magro, cabeça raspada. “Acho que ela está trabalhando”, responde João, de 15 anos. No mês passado, ele e um amigo roubaram um celular. Por quê? “Porque eu queria comprar um tênis e uma roupa para o fim do ano, senhor” diz ele, em resposta ao juiz.
“Em geral, nossa experiência mostra que quem comete uma infração é aquele adolescente que não tem o respaldo familiar. Ou que os pais, por problemas financeiros, ficam ausentes”, explica Callé. “Eles residem em comunidades carentes de saúde, de educação de qualidade, carentes do Estado. A maioria é negra ou parda, pobres de tudo. Se são brancos, são muito pobres também. Eles acabam ficando na rua, soltos, sem imposição de limites. Assim, a possibilidade dessa pessoa infracionar é enorme”, diz.
O defensor público Guilherme Feccini compartilha da percepção de Callé. “Os adolescentes que estão mais sujeitos ao processo judicial são majoritariamente pobres. Isso acontece em razão da seletividade do sistema punitivo.”

Em outra audiência, um garoto de cerca de 1,50 metro de altura entra na sala junto da mãe. Só ao completar 12 anos é que uma pessoa passa a responder por um processo. Felipe tem 12 anos e quatro meses e essa era sua segunda passagem por tráfico de drogas. No braço, ostenta três tatuagens: “Mãe”, “Pai” e “Jesus Cristo” (em outra sessão naquele mesmo dia, um adolescente de 16 anos tinha uma tatuagem em referência à facção criminosa Primeiro Comando da Capital).
A mãe de Felipe, que cria os filhos sozinha, é empregada doméstica “de domingo a domingo” – ela tem outro filho internado na Fundação Casa.
Ao lado de ambos, entra na sala Daniel, de 16, apreendido junto com o amigo Felipe – ambos estavam com cocaína e dinheiro na hora da abordagem policial. Daniel diz que é viciado em maconha e “pó”. O juiz Penido explica que o vício e o tráfico podem levá-los à morte, caso continuem. “Morrer? Mas morrer como?”, pergunta a mãe de Daniel, surpresa. Auxiliar de limpeza, ela soube da dependência química do filho na audiência.
Ao final, no lado de fora, a promotora Callé comenta com a reportagem: “Você entendeu? Às vezes, a família é tão vulnerável que nem faz ideia de que o filho está correndo risco”.
O caso Victor
A discussão da redução da maioridade penal renasceu depois de 9 em abril de 2013. Naquela noite, o estudante universitário Victor Hugo Deppman, de 19 anos, chegava em casa na zona leste de São Paulo quando foi assassinado por um adolescente que roubou seu celular. Faltavam três dias para que o infrator completasse 18 anos, idade que permitiria julgá-lo como adulto.
O episódio ganhou repercussão e fez com que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), criasse uma proposta que aumentava para oito anos o tempo máximo de internação para adolescentes com infrações graves, como homicídio, estupro ou latrocínio. Atualmente, o limite é de três anos de internação. A proposta de Alckmin não prosperou, mas o projeto em estudo hoje no Congresso é de outro tucano: Aloysio Nunes (PSDB) – senador licenciado e ministro das Relações Exteriores. Nunes propõe reduzir a maioridade para crimes hediondos.

Adolescentes em audiência
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No texto, ele argumenta: “Não se pode questionar o fato de que menores infratores, muitas das vezes patrocinados por maiores criminosos, praticam reiterada e acintosamente delitos que vão desde pequenos furtos, até crimes como tráfico de drogas e mesmo homicídios”.
A proposta de Nunes encontra acolhida popular: o Datafolha questionou, em 2015, os brasileiros sobre o assunto. Na ocasião, 87% se disseram a favor da redução da maioridade, apenas 11% foram contrários.
Penas brandas?
De acordo com a legislação atual, adolescentes apreendidos por tráfico podem passar mais tempo atrás das grades (três anos) do que adultos processados por tráfico (em média, um ano e oito meses de prisão em caso de réus primários). Para crimes violentos, no entanto, menores são detidos normalmente por menos tempo do que prevê o Código Penal para adultos. Homicídio simples, por exemplo, pode manter alguém encarcerado entre 6 e 20 anos.
De acordo com o magistrado Penido, a questão das penas gera a tentação de solucionar a questão aplicando a adolescentes o mesmo castigo que a adultos. Isso seria, no entanto, uma ameaça ao futuro dessa geração. Na opinião do juiz, a política de segurança pública adotada pelo Brasil já não tem funcionado bem para os adultos. “A gente vai propor como solução algo que está falido, que é o encarceramento em massa e o sistema prisional brasileiro?”, questiona. Boa parte das cadeias do país são hoje dominadas por facções criminosas. Segundo dados de 2014, os últimos divulgados pelo governo federal, há 622 mil pessoas nas cadeias do Brasil – a quarta maior população carcerária do mundo.
O promotor Neto afirma que o raciocínio do magistrado não procede: a necessidade de melhorar o sistema prisional não exclui a viabilidade de que menores de idade sejam enviados pra lá. “Se o problema são as prisões, precisamos resolvê-lo, é óbvio. Mas também precisamos dar uma resposta para a sociedade que está cansada de sofrer com a violência (dos adolescentes)”, diz.

Cadeia é solução?
Neto tem opinião parecida à do ministro Aloysio Nunes. “Os menores têm plena consciência do que fazem, e fazem porque têm certeza de que não serão punidos”, diz. Segundo o promotor, nos últimos anos os jovens passaram a praticar mais infrações graves do que antes, quando ele entrou no Ministério Público, há 24 anos. “Na faixa dos 16 e 17 anos, eles vêm infracionando gravemente, com tráfico, roubo, homicídio. Esses atos sempre existiram, mas eram em menor proporção. Demorou para reduzir a maioridade penal”.
O juiz Penido pensa de outra forma. “Quando vejo um adolescente acusado de tráfico na minha frente, vejo que a mãe dele sai às 5h para trabalhar, pega duas conduções e retorna no final da tarde, cansada. A escola pública dele é mal estruturada, ou ele a abandonou. Vejo que ele está numa sociedade de consumo que o bombardeia de necessidades superficiais, e que o pressionam a buscar um pertencimento a um grupo. Daí uma biqueira (local de venda de drogas) oferece um valor altíssimo para ele trabalhar. E eu vou falar para esse jovem que o castigo, uma internação, ou a prisão vão resolver o problema dele? Não vão”, diz.
Dos 9.333 jovens que estão na Fundação Casa de São Paulo – internos ou em semiliberdade – 43%, ou 4.038 jovens, estão ali por tráfico de droga. Crimes violentos representam a minoria dos casos: 99 adolescentes praticaram homicídio, 1% do total, 77 estão ali por latrocínio (0,7%) e 68 por estupro (0,7%).
“Eles não têm qualificação nenhuma e recebem uma quantia inimaginável até para os pais deles. Tem moleque de 15 anos que ganha mais que gente com ensino superior. Ele sabe que se a polícia aparecer, ele pode ser preso. Mas, para ele, o benefício é muito maior que o risco. Ele vê os rapazes mais velhos da comunidade com muito dinheiro. Você acha que ele vai escolher o quê? Trabalhar num lava-rápido?”, diz a promotora Callé.
O promotor Oswaldo Monteiro Neto, a favor da redução, diz que não se pode creditar a criminalidade à pobreza. “Isso é uma injustiça com a classe mais baixa, a pobreza não é indutora do crime”.
Em uma das audiências presenciada pela BBC Brasil, o estudante Caique, de 16 anos, conta que ganhava R$ 300 por seis horas de trabalho vendendo drogas em uma favela de São Paulo. É sua segunda passagem por tráfico.
“Lá, eles (chefes do tráfico) só contratam menores. Porque para menor dá menos B.O. (gíria para problema com a Justiça). Não precisa de advogado, não vai ser preso”, disse. Caique mora com a avó, que é cega, desde que a mãe o abandonou.
A promotora Callé rebate: “Caique, como não fica preso? Você pode ficar na Fundação Casa por mais de um ano, isso não é ficar preso? Você não percebe que esses traficantes não estão nem aí para você? Eles te contrataram para ser preso no lugar deles. Você acha que não acontece nada com você?”. O garoto responde: “É, acontece, senhora…”
Enviado à Fundação Casa, não se sabe quando Caique retornará às ruas.

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