No 247 , Por Paulo Moreira Leite – Ainda que se considere que a decisão de 6 votos a 5 que deixou para o Senado a palavra final sobre o destino do mandato de Aécio Neves tenha sido uma medida acertada do ponto de vista dos princípios do Estado Democrático de Direito, como sustenta um grande número de juristas, ela não traz nenhum sinal animador ao atual momento político.
Não representa a consolidação de uma jurisprudência necessária nem afasta qualquer suspeita de motivação política óbvia, para favorecer um dos generais do PSDB e aliado de Michel Temer.
Em duas decisões análogas, tomadas em tempos recentes, o mesmo Supremo deliberou em outra direção. Em 25 de novembro 2015, acusado de obstruir a Justiça a partir de um diálogo gravado com auxílio de procuradores da força tarefa da Lava Jato, Delcídio do Amaral (PT-MS) foi mandado para a prisão por tempo indeterminado. Só saiu após assinar acordo de delação premiada menos substancioso do que se dizia, mas que ajudou a engrossar o ambiente midiático contra Lula e Dilma. A decisão foi tomada pelo relator da Lava Jato, Teori Zavaski, e referendada, por unanimidade, pela Segunda Turma do STF.
Em 5 de maio de 2016, Teori Zavaski determinou o afastamento de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara de Deputados. A denúncia contra Cunha chegou ao Supremo em dezembro do ano anterior e ali adormeceu por cinco meses. Antes de ser afastado, Cunha pode aceitar a denúncia que levaria ao impeachment de Dilma e teve todas as condições de organizar a sessão da Câmara que deu início ao processo, ocorrida três semanas antes de ser retirado do argo. em 17 de abril.
Num depoimento ao 247, o constitucionalista Marcelo Neves, professor na Universidade de Brasília, disse:
–A decisão parece-me constitucionalmente mais aceitável mas é incoerente com outras decisões do STF, como no caso de Eduardo Cunha, quando o plenário ratificou, posteriormente, a decisão de Teori Zavaski.
Tocando na questão política geral, Marcelo Neves avalia: “o problema é que o próprio Senado não cumpre sua função constitucional de afastar e até mesmo de cassar Aécio”.
Em 2012, no julgamento da AP 470, ocorreu uma situação diferente, pois a questão do mandato surgiu no final dos trabalhos do STF, que ali atuou como tribunal. Mesmo assim, ocorreu um debate com pontos de contato com aquele realizado na quarta-feira. Os ministros decidiram, por 5 votos a 4, que não só deveriam determinar a perda dos direitos políticos de três deputados condenados, mas também cassar seus mandatos, reservando à Câmara uma simples tarefa burocrática, declaratória, de formalizar a decisão.
Em situação diferente – o julgamento já estava encerrado – o debate também envolveu a palavra final sobre as imunidades dos parlamentares, que, conforme já lembrei aqui, devem ser respeitadas inclusive “sob estado de sítio”, diz o artigo 53 da Constituição.
Há cinco anos, a discussão em plenário do STF concentrou-se no artigo 55 da Constituição, que diz que esta é uma atribuição reservada ao Legislativo. Maioria em 2017, os ministros partidários dessa posição ficaram em minoria, em 2012, novamente pela diferença de um voto.
Um dos votos mais importantes a favor da cassação, o decano Celso de Mello disse que qualquer reação do Congresso que contrariasse a decisão do Supremo seria “inaceitável, intolerável, inadmissível”. Falou em “insubordinação”, expressão que implica na existência de uma hierarquia entre os poderes da República.
Comparando os votos de 2012 e em 2017, verifica-se que, entre os oito ministros presentes aos dois julgamentos, três assumiram uma postura diferente em relação às imunidades parlamentares. Como relator, Gilmar Mendes defendeu a cassação “automática,” no que foi acompanhado por Marco Aurélio Mello. Cinco anos mais tarde, ambos defenderam que o caso Aécio fosse resolvido pelo Senado. Rosa Weber preferiu que o destino dos parlamentares fosse resolvido por sua casa legislativa em 2012. Teve postura diferente, em 2017.
Os demais – cada um em sua opção – mantiveram-se em postura semelhante nos dois casos: Ricardo Lewandovski, Carmen Lucia e Dias Toffoli, favoráveis a uma decisão na Câmara. Luiz Fux e Celso Mello, favoráveis ao afastamento pelo STF.
Neste período de cinco anos, muitas águas passaram sob a ponte do Supremo. Longe da severidade das togas negras, que deveriam contribuir para que se tornassem invisíveis, a AP 470 marcou o início de um período de nossa história no qual os ministros disputam espaço na vida política, tentando conquistar uma influência que levou Fernando Henrique Cardoso a dizer que podem ser comparados aos “generais de quatro estrelas” do período militar.
Falam sobre tudo, tem opinião sobre quase tudo e boa parte não faz silêncio sequer sobre casos que deveriam manter sob reserva, pois podem acabar sendo chamados a votar sobre eles. Nesta situação, mesmo quando toma uma decisão acertada, como ocorreu na quarta-feira, o STF não consegue evitar a visão de que, para além das boas causas jurídicas, pode-se apontar uma motivação política oculta por trás.
Como os observadores mais atentos irão se recordar, a matriz desse comportamento nasceu num período em que o STF julgou-se acima dos demais poderes e se repetia, em plenário, a noção de que “a Constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é.”
O nome é disso é perda de credibilidade. O saldo desse comportamento é a dificuldade de construir referências indispensáveis à segurança jurídica, um dos traços essenciais da vida sob o Estado Democrático de Direito.