No The Intercept, por Jon Schwarz – O OBSCURO “Sinédoque, Nova York”, filme escrito e dirigido por Charlie Kaufman em 2008, surgiu quando a Sony Pictures Classics pediu um filme de terror ao diretor. Kaufman, mais conhecido por roteiros excêntricos como o de “Quero ser John Malkovich”, aceitou. Mas ele não pretendia fazer um daqueles típicos filmes de terror adolescente que parecem se passar em outra dimensão. Em vez disso, afirmaria ele mais tarde, a ideia era fazer um filme para adultos “sobre coisas assustadoras do mundo real, das nossas vidas”.
Assista: https://theintercept.com/2017/11/01/uma-noite-no-garden-um-olhar-sobre-o-nazismo-nos-eua/
E foi o que Kaufman conseguiu fazer. Para mim, “Sinédoque, Nova York” foi tão assustador que nunca mais quero vê-lo. Filmes sangrentos como “Sexta-Feira 13″ e suas 11 continuações não deixam de ser prazerosos – quando eles acabam, mesmo que ainda estejamos cheios de adrenalina, sabemos que não estamos sendo perseguidos por Jason Vorhees. Mas, quando “Sinédoque, Nova York” chega ao fim e as luzes se acendem, percebemos que aquilo que perseguia os personagens também nos persegue fora do cinema, na vida real.
Nenhum outro filme tinha me proporcionado uma experiência tão pura de horror até assistir ao novo documentário da Field of Vision, chamado “A Night at the Garden” (“Uma Noite no Garden”, em tradução livre) e dirigido por Marshall Curry. (A Field of Vision pertence ao grupo First Look Media, assim como The Intercept.)
O filme de Curry, que pode ser visto acima, tem apenas seis minutos de duração; é uma minúscula obra-prima, que deveria ser ensinada em cursos de História, Cinema e Psicologia.
À primeira vista, o curta-metragem simplesmente mostra um comício do Bund Germano-Americano, realizado em fevereiro de 1939 no Madison Square Garden, em Manhattan.
O Bund – “federação” em alemão – nunca chegou a crescer de maneira significativa. As estimativas variam, mas, de qualquer forma, o número de filiados nunca passou de 25 mil. No entanto, ele era aliado da Frente Cristã, uma organização inspirada na figura de um famoso demagogo antissemita, o padre Charles Coughlin. Dezenas de milhões de americanos ouviam o programa de rádio semanal do sacerdote; um de seus lemas era “Menos internacionalismo e mais prosperidade nacional”.
A Frente Cristã ajudou a encher a arena, com capacidade para 20 mil pessoas. É um número surpreendente para Nova York, que sempre foi um símbolo de progressismo, o que pressupõe um apoio passivo a essas duas organizações que ia muito além do público presente no comício.
Do lado de fora, o letreiro anuncia um “comício pró-americano” — no dia seguinte, haveria uma partida de hóquei entre Rangers e Detroit Red Wings, e, um dia depois, um jogo de basquete universitário entre Fordham e Piitsburgh. O evento começa com a entrada de dezenas de pessoas portando bandeiras dos Estados Unidos, marchando solenemente até o fundo da sala, diante de uma gigantesca imagem de George Washington.
O orador principal é Fritz Kuhn, um alemão naturalizado americano, presidente do Bund. É óbvio que se trata de um fanfarrão, um escroque. Ele declara que está ali para “exigir que o governo volte para as mãos dos americanos, seus fundadores” – com um sotaque tão forte que parece o próprio Adolf Hitler. Até o embaixador nazista nos Estados Unidos se envergonhava de Kuhn, referindo-se a ele como “estúpido, barulhento e absurdo”.
Entretanto, ninguém no Madison Square Garden parece se dar conta disso. Arrancando risadas da plateia, Kuhn fala sobre as mentiras da “imprensa controlada pelos judeus”, que o descreve como “uma criatura com chifres, cascos e uma longa cauda”.
Então, um homem de 26 anos chamado Isadore Greenbaum invade o palco e é imediatamente agarrado e agredido pelos lacaios uniformizados de Kuhn. Em um determinado momento, enquanto a polícia de Nova York carrega Greenbaum para fora, suas calças são arriadas. Kuhn sorri, debochado, e a plateia vai ao delírio.
O filme termina com uma soprano entoando “Star-Spangled Banner“, o hino americano.
No dia seguinte, o New York Times noticiou que o Bund havia coletado quase US$ 8,5 mil em doações, o equivalente a US$ 150 mil nos dias de hoje. Ainda naquele ano, Kuhn seria preso por se apropriar de um total equivalente a US$ 250 mil atuais de seus fiéis seguidores.
O artigo do New York Times citava manifestantes de esquerda, que afirmavam terem sido “pisoteados pela polícia montada e brutalmente agredidos por policiais uniformizados e à paisana” do lado de fora da arena. Um coronel da reserva reclamava que os membros do Bund“poderiam confundir as pessoas”, pois seus uniformes eram parecidos com o do exército americano.
Além disso, informava o jornal, a repórter Dorothy Thompson, que estava presente no comício, chegara a ser retirada da sala por ter soltado uma risada. Anos antes, Thompson havia sido correspondente do New York Post em Berlim, cobrindo a ascensão do fascismo antes de ser expulsa da Alemanha, em 1934. Na época do comício do Bund, ela estava casada com Sinclair Lewis, autor do livro “Não Vai Acontecer Aqui“.
Muitos anos depois dos acontecimentos de “Uma Noite no Garden“, Thompson escreveu um influente artigo para a Harper’s Magazine intitulado “Who Goes Nazi?” (“Quem vai virar nazista?”, em tradução livre), no qual descreve a “brincadeira macabra” de tentar especular quem, dentre as pessoas que conhecemos, poderia se tornar um nazista. “A essa altura da vida, acho que já sei”, afirma.
“O nazismo não tem nada ver com raça ou nacionalidade. Ele atrai um determinado tipo de mentalidade. (…) O intelectual frustrado e humilhado; o especulador rico e assustado; o filho mimado; o tirano dos empregados; o homem que alcançou o sucesso com oportunismo – todos eles abraçariam o nazismo”, escreve Thompson.
Curry ficou sabendo do comício do Bund há seis meses, por meio de um amigo que estava escrevendo o roteiro de um filme que se passa em 1939. A princípio, o diretor não acreditou. “Se realmente tivesse acontecido um enorme comício nazista no coração de Nova York, eu já teria ouvido falar”, explica.
Mas a verdade é que aconteceu; o evento simplesmente havia sido esquecido pela História. Curry encontrou outros documentários que usavam imagens daquela noite e contratou o pesquisador Rich Remsbergpara procurar mais material.
Remsberg descobriu imagens do comício em todo o país, inclusive no Arquivo Nacional e na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). O material tinha duas características notáveis: em primeiro lugar, o comício havia sido filmado em 35mm – e não em 16mm ou 8mm, o padrão da época –, então a qualidade do filme era surpreendentemente boa. Além disso, as imagens de dentro do Madison Square Garden haviam sido todas filmadas pelo próprio Bund – e de forma tão hábil que seus autores certamente devem ter estudado a cinematografia nazista.
Curry usou essas imagens de arquivo para criar um filme extremamente engenhoso. Não há nenhuma narração ou depoimento de historiador nos dizendo o que sentir. Em vez disso, o espectador tem espaço para decidir por si mesmo como apreender a experiência.
O que é ainda mais interessante é a ausência de qualquer menção aos Estados Unidos atuais. “Quando o americano médio não politizado assistir ao filme, ficará um pouquinho mais consciente de como os demagogos usam o sarcasmo, o humor e a violência para atrair pessoas que até então eram cidadãos respeitáveis”, afirma Curry.
Para ilustrar a questão, o diretor menciona as cenas de júbilo da plateia ao ver Greenbaum sendo atacado e humilhado. “São milhares de pessoas de terno, vestido e chapéu; pessoas que provavelmente tratavam muito bem os vizinhos”, diz.
TALVEZ O GRANDE MOMENTO de “Uma Noite no Garden” seja o plano de um jovem uniformizado no palco. Ele parece ter cerca de oito anos, é membro da juventude do Bund e é menor do que os outros. Enquanto a turba ultraja Greenbaum, carregando-o para fora do palco, o menino olha em volta, para se certificar de que não está sozinho, e dá pulinhos de prazer, esfregando as mãos e dançando.
Esse deleite selvagem e animalesco só pode se manifestar em uma pessoa com a idade emocional de uma criança. Mas existem muitos adultos “cronológicos” esperando para que alguém lhes dê autorização para se livrar do fardo da consciência moral adulta; alguém que lhes diga: “Encontramos os culpados de toda a sua frustração e dor. Eles se parecem conosco, como humanos, mas não o são. Estão apenas disfarçados. Dissolva-se conosco nessa uivante massa protoplasmática, e você não será responsável por nada.”
Isso já aconteceu, em maior ou menor escala, diversas vezes na história humana. É algo muito mais enraizado em nós do que qualquer coisa que chamemos de “política”. O nazismo e o fascismo são apenas os nomes que demos à manifestação moderna desses valores.
Contudo, para que esse potencial vire realidade, são necessárias determinadas pessoas tomando determinadas decisões em determinados momentos históricos. Neste caso, o filme nos informa que o evento ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1939.
Quando vi a data, fiquei com uma pulga atrás da orelha. Outra coisa havia acontecido naquele dia. Mas o quê?
Consultei o livro “Ascensão e Queda do Terceiro Reich” e linhas do tempo da Segunda Guerra Mundial na internet, mas não encontrei o que procurava; fui dar um longo passeio, mas não consegui refrescar a memória. Durante dois dias, fiquei com aquela sensação desagradável que todo mundo conhece: a de ter esquecido algo importante que só será lembrado quando for tarde demais.
Mas o que era?
EMBORA EU não seja judeu, o pai do meu pai era. A família dele emigrou da Alemanha para os EUA no fim do século XIX e se instalou em Chicago, onde meu avô nasceu. Depois que ele se casou com a minha avó, a família se mudou para a capital, Washington. Mas ele ainda tinha parentes na Europa.
Há quase 80 anos, minha família guarda uma carta que meu avô recebeu de sua prima Lilly Schwarz, de Düsseldorf. Minha tia, irmã do meu pai, é a atual guardiã do documento. Mesmo em 2017, aquela caligrafia meticulosa ainda exalava terror:
“Querido Charles!
Finalmente consegui o seu endereço e escrevo imediatamente. Das piores coisas, acho que você vai ser informado pela sua mãe. (…) Agora temos que esperar o nosso número ser chamado pelo consulado americano em Stuttgart, o que pode demorar de um ano a um ano e meio. Enquanto isso, tento emigrar para a Inglaterra, porque a situação aqui está intolerável. Você ou algum amigo seu tem contatos na Inglaterra? Se tiver, por favor me mande o endereço deles. A única forma de emigrar é encontrar um serviço de empregada doméstica. Só assim o Home Office permite que você entre no país e trabalhe. (…)
Quero saber da sua vida. Nossa querida tia Helen me escreveu dizendo que você tem um bom emprego no Departamento do Tesouro. Você deve andar muito ocupado, e o trabalho deve ser muito gratificante. E a sua mulher e o seu bebê? Espero que todos estejam bem de saúde. (…)
Você tem alguma ideia ou conselho para apressar a nossa emigração? Aliás, será que você tem algum contato no governo? Como Washington é a capital, aí deve ser o melhor lugar para experimentar o que há de mais novo. Estamos aguardando a publicação das novas condições para a emigração judaica. Você não imagina como os judeus estão desesperados.
Meu inglês é muito engraçado? Consigo ler livros e jornais em inglês e sei que as palavras nunca mudam, não importa a declinação. Aproveito cada momento para estudar o idioma; aprendi no último inverno a taquigrafia inglesa e também sei datilografar.
Por favor, mande uma resposta rápida.
Com muitos cumprimentos e muito amor para todos vocês,
Continuo sendo
a sua prima
Lilly”
A pulga atrás da minha orelha me dizia para encontrar essa carta, então fiz uma busca na minha caixa de e-mails e acabei encontrando uma transcrição. E bati o olho na primeira linha:
Lilly tinha 33 anos quando escreveu ao meu avô. Ela estava sendo perseguida por um monstro e acreditava que estaria a salvo se conseguisse chegar nos EUA.
Mas ela nunca chegou. O monstro devorou-a. Dois anos depois, em outubro de 1941, ela foi deportada para o gueto de Minsk, na Bielorússia, onde acabou morrendo.
Quando vi a data da carta de Lilly, experimentei uma reação física que jamais havia sentido. Aquilo reverberou pelo meu corpo, da cabeça aos dedos do pé e de volta à cabeça. Naquele dia, ela era mais de 10 anos mais nova do que eu hoje. Ela não sabia que o monstro que a perseguia também esperava por ela nos Estados Unidos, só que dormitando – e que, no exato momento em que escrevia seu apelo desesperado, dezenas de milhares de americanos comuns, banais, ordinários, tentavam despertá-lo.
É por isso que “Uma Noite no Garden” é um verdadeiro filme de terror. Ele acaba em seis minutos, mas o medo do espectador perdura. Percebemos que o monstro está por toda parte – porque o levamos dentro de nós.
Na maioria dos lugares, na maioria das épocas, o monstro está hibernando. Muitos americanos brancos acreditam que esse sempre foi o caso nos EUA, mas quem não é branco sabe que ele sempre andou por aí, cambaleante de sono, ao longo da história do país. Porém ele nunca chegou a acordar totalmente, e só em ocasiões extraordinárias uma sociedade consegue despertar a sua fúria. Por enquanto, ainda estamos longe disso, e a probabilidade do monstro acordar nos EUA ainda é pequena. Mas o último ano me fez perceber que ela é maior do que eu imaginava. Há dias em que posso ver um estremecimento nas pálpebras da besta.
Graças àquela carta, tenho a impressão de que conheço Lilly, e às vezes me imagino encontrando-a em outra dimensão. Gostaria de poder dizer à minha prima que seu sofrimento não foi em vão, que aprendemos com ele e fizemos de tudo para manter o monstro sedado. Mas eu estaria mentindo. Os americanos são tão ignorantes, egoístas e cegos quanto todos os seres humanos que já passaram por este planeta, e quem assistir a “Uma Noite no Garden“ – assistir de verdade – entenderá que absolutamente tudo é possível.
Tradução: Bernardo Tonasse