Mídia honesta depende cada vez mais dos leitores
Da Carta Maior, por Leneide Duarte-Plon, de Paris – Os meios de comunicação não são empresas como as outras e produzem um bem público, a informação, necessária ao bom funcionamento da democracia
Com o desmoronamento da receita publicitária, jornais e revistas, impressos ou online, se deparam com a questão : “Como financiar as redações na produção de uma informação de qualidade e independente”? Honesta sobretudo, no caso do Brasil.
O slogan do mais conhecido e respeitado jornal online francês, Mediapart, resume a situação: “Mediapart, somente nossos leitores podem nos comprar”. Ele não tem publicidade e vive da assinatura dos seus mais de cem mil leitores. Criado em 2008 por Edwy Plenel, ex-diretor da redação do Le Monde, Mediapart é um verdadeiro jornal online, pure player, com uma redação de mais de 35 jornalistas.
O maior argumento publicitário do Mediapart é sua independência. Uma publicidade recente para ampliar o número de leitores perguntava: “a quem pertence seu jornal? A quem o possui? Aos que anunciam nele? Aos que defendem seus interesses? Aos que o leem? Mediapart, somente nossos leitores podem nos comprar”.
Qual o papel dos leitores de jornais e revistas nesse momento de crise da imprensa e de crise político-econômica no Brasil? O que pode ser feito para que revistas, jornais e blogs independentes não morram?
Essas perguntas foram respondidas pela economista Julia Cagé no livro “Sauver les médias” (“Salvar os meios de comunicação”, editora La République des idées). Por coincidência nefasta, o livro chegou às redações dos jornais franceses no dia em que dois homens invadiram a redação do semanário Charlie Hebdo matando quase toda a redação em plena reunião de pauta. Era 7 de janeiro de 2015.
Por coincidência feliz, Charlie Hebdo – que vinha perdendo leitores progressivamente e estava à beira da falência – foi salvo pelo grande élan de generosidade que se avolumou em dons que atingiram mais de 4 milhões de euros. Os números de exemplares vendidos antes do atentado oscilavam em torno de 30 mil e o chamado “número dos sobreviventes”, que saiu dia 14 de janeiro, vendeu 7.950.000 exemplares. Ninguém poderia esperar esse resultado.
O excesso de euros doados – vindos de particulares e de empresas com vantagens de isenção fiscal segundo a lei francesa – chegou a criar um novo problema para a redação sobrevivente. Tiveram de reestruturar a estrutura jurídica do jornal.
Uma das ideias defendidas por Cagé em seu livro é exatamente que os leitores podem financiar e participar da gestão de jornais independentes do poder econômico. Charlie Hebdo não criou exatamento o que Cagé – doutora pela Universidade de Harvard e professora de economia do Instituto de Ciências Políticas (Sciences Po) de Paris – preconiza : o financiamento por pequenos doadores com participação nos destinos do jornal. Ela chama a isso de “société de média à but non-lucratif” (sociedade de mídia sem fins lucrativos).
A informação é um bem público, necessário à democracia
Uma das ideias mais interessantes e fundamentais do livro é que como a mídia produz um bem público, a informação, reconhecida como necessária ao bom funcionamento da democracia, os meios de comunicação não são empresas como as outras. Idealmente, se a imprensa com o que veicula, a informação, pode ser considerada como um bem público, ela deveria fazer parte do setor da “economia do conhecimento” tanto quanto a escola, os cinemas, as bibliotecas e os museus.
Ora, na França esses setores citados, incluindo neles a pesquisa e o ensino superior, recebem 10% do PIB. Mas na realidade francesa a imprensa está fora do PIB citado porque é um setor privado, ainda que os jornais recebam do governo o que se chama de “ajuda direta à imprensa escrita”.
Em 2013, esse total foi de 400 milhões de euros e entre os títulos, de direita e de esquerda, que mais receberam a subvenção governamental estavam entre os vinte primeiros, em ordem decrescente : Le Figaro, Le Monde, Aujourd’hui en France, Ouest France, La Croix, Télérama, Libération, Le Nouvel Observateur, Télé 7 Jours, L’Humanité e L’Express. O primeiro da lista recebeu 16 milhões de euros e o último pouco mais de 6 milhões de euros.
“Na França consideramos que a educação não pode ser vendida porque é um bem público. Precisamos pensar a produção de informação da mesma maneira. A mídia pertence à iniciativa privada mas não pode ser considerada como qualquer empresa com fins lucrativos. Na sociedade de mídia de fins não lucrativos que menciono no livro, o voto dos pequenos acionistas é ampliado”, explica Julia Cagé.
Charb, diretor do jornal Charlie Hebdo, um dos mortos no atentado, inspirou uma lei adotada no ano passado para “a modernização do setor de mídia”. A lei prevê a dedução de impostos de dons de particulars às empresas de mídia de menos de 50 assalariados. O governo fixou dois níveis de abatimento fiscal : 30% do total doado para títulos da “imprensa de informação política e geral” e até 50% quando esse investimento diz respeito a “empresas solidárias de mídia”.
100 anos de compromisso apenas com o leitor
O mais respeitado e sólido impresso francês de sátira, Le Canard Enchaîné, completou este ano 100 anos em março vivendo apenas das vendas em bancas. Lançado em março de 1916, numa Europa devastada em plena 1ª Guerra Mundial, o jornal não tem nenhuma publicidade. O número que comemorou os cem anos intitulava : “no caminho para o bicentenário” (En route pour le bicentenaire!).
Como resistir 100 anos sem publicidade? O segredo do jornal é aliar a sátira e desenhos humorísticos ao verdadeiro jornalismo. Frequentemente, o “Canard” dá furos nos outros jornais, que o citam em matérias apuradas a partir de histórias levantadas pelo jornal satírico.
Um pouco mais velho que o “Canard”, o centenário L’Humanité (fundado em abril de 1904), já foi o órgão oficial do Partido Comunista Francês e hoje é apenas o melhor jornal independente, que sobrevive sem os milhões da casta financeira que se apropriou de parte da imprensa francesa. “Nosso objetivo é dar a informação mais ampla e exata a todas as inteligências livres para que tenham condições de compreender e julgar por elas próprias os acontecimentos do mundo”, dizia no editorial do primeiro número seu fundador, Jean Jaurès.
Libération e Le Monde pertencem a bilionários que, no entanto, não interferem na liberdade da redação. A total autonomia da redação garante o bom jornalismo de centro-esquerda praticado pelos dois jornais.
Franceinfo, o allnews da TV pública
Como a BBC, o serviço público francês audiovisual tem agora seu canal de informação 24 horas. Dia 1° de setembro, o canal Franceinfo começou a funcionar e de repente deixou seus concorrentes parecendo jurássicos.
O canal público inovou na posição dos apresentadores, que não ficam mais sentados mas percorrem o estúdio e se servem dos mais modernos elementos de tecnologia. Os jornalistas fazem parte do grande serviço público francês de informação que conta com as holdings France Télévisions e Radio France. Elas dispõem de diversas estações de TV e rádio e têm a Maison de la Radio como base.
Os canais franceses de TV 24 horas de repente ficaram parecendo ultrapassados e demasiadamente comerciais. Os franceses têm agora um canal do serviço público digno do canal allnews da BBC.
No panorama francês de mídia sem publicidade, o jornal impresso semanal Le UN comemorou o número 100 em seu segundo ano de vida. Fundado por Éric Fottorino, ex-diretor da redação do Le Monde, Le Un é uma agradável revista político-cultural para quem quer complemento à imprensa tradicional.
Quanto à internet, segundo o Instituto Reuters de Estudo do Jornalismo da Universidade de Oxford, 44% dos internautas se informam pelo Facebook, que conta com 1 bilhão e 700 milhões de utilizadores.
O desafio é não se contentar com o Facebook e ir buscar a informação nos sites independentes do grande capital, cada vez mais numerosos e mais fortes.
A saúde e a sobrevivência deles depende dos leitores, que os sustentam com a leitura e colaboração financeira como forma de militância cidadã.