Há 48 anos, forças do regime militar fuzilavam o principal dirigente da Aliança Libertadora Nacional
A transformação de personagens históricos em mitos costuma simplificar figuras complexas e superestimar a importância de momentos particulares, deixando em segundo plano as realizações de longo prazo. Foi o que aconteceu com Carlos Marighella.
O período da luta armada contra a ditadura militar, que construiu no imaginário popular a figura de um homem com um fuzil na mão participando de atos violentos, não passou de três anos.
Marighella, que faria 100 anos em 5 de dezembro de 2011, teve uma militância política de mais de 30 anos nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e só atuou na clandestinidade em períodos de intensificação da repressão e perseguição aos comunistas, tanto sob ditaduras como durante regimes mais democráticos.
A imagem que caracteriza melhor a trajetória de Marighella é a de um disciplinado operário do partido, apaixonado por samba, poesia e futebol, que participou de todas as etapas da linha de montagem da luta política, desempenhando diversas funções específicas e repetitivas para a implementação da revolução socialista.
O mulato baiano, como era chamado por amigos fora do estado de origem, nasceu em Salvador. Os ideais socialistas e a vontade de transformar a sociedade herdou do pai, Augusto, um mecânico italiano, e da mãe, Maria Rita, uma negra filha de uma africana que chegou ao país em um navio negreiro. Precoce, aprendeu a ler com 4 anos e tomou gosto pelos livros já na adolescência.
Mas não ficava preso em casa. Gostava de jogar bola e sonhava em ter uma chuteira. Também participava de serenatas em Itapuã com os amigos. No carnaval, saía fantasiado de mulher e cigana na Baixa dos Sapateiros. Escrevia poemas e fazia provas em versos no ginásio.
A militância começou cedo, com pouco mais de 20 anos. Marighella entrou no PCB no começo da década de 1930, depois de ingressar no curso de engenharia civil da Escola Politécnica da Bahia, onde se envolveu com as agitações estudantis.
Foi preso pela primeira vez em 1932 por participar de um protesto em Salvador contra o presidente Getúlio Vargas. O ato terminou com a prisão de mais de 500 estudantes por ordem do governador Juracy Magalhães, interventor de Vargas no estado.
Solto alguns meses depois, ele ganhou prestígio no partido e recebeu a tarefa de organizar o PCB na Bahia. No começo de 1936, três dirigentes da secretaria nacional do PCB visitaram Salvador para conhecer as atividades do partido no estado. Meses depois, Marighella tinha um novo desafio: contribuir para a organização dos comunistas no Rio de Janeiro, então capital do país.
Prisão e torturas
Com 25 anos, Marighella foi para o Rio de Janeiro ajudar na rearticulação do PCB depois do fracasso da chamada Intentona Comunista, levante militar organizado em 1935 pela Aliança Nacional Libertadora (ANL) de Luís Carlos Prestes para tomar o poder de Getúlio Vargas.
O movimento foi derrotado, e vários dirigentes comunistas foram presos, entre eles o próprio Prestes, o grande líder do partido, e o secretário-geral, Antônio Maciel Bonfim, conhecido como Miranda. Foi em meio a esse clima adverso que Marighella chegou ao Rio de Janeiro e logo foi preso pela segunda vez, no dia 1o de maio de 1936. Ele ficou encarcerado por um ano e dois meses e foi submetido a 23 dias de tortura.
Os suplícios começavam com murros e chutes. Depois vinham as surras de cassetete e chicote da cabeça à sola dos pés. Em seguida, seus algozes queimavam várias partes de seu corpo com brasa de cigarro. Sob as unhas das mãos, enfiavam alfinetes.
Chegaram até a amarrar os testículos com uma corda e puxar. Marighella saiu da prisão em 1937 e retomou as atividades no PCB, que foi posto na clandestinidade por Getúlio Vargas após a proclamação do Estado Novo, em novembro daquele ano. Sob a ditadura de Vargas, Marighella recebeu a tarefa de se mudar para São Paulo e aparar as arestas dos dirigentes do estado com o Comitê Central do partido.
Em pouco tempo ele se tornou a principal referência entre os comunistas paulistas, mas sua militância política foi novamente interrompida por uma prisão – a terceira –, em 1939. Durante os seis anos seguintes Marighella passou pelos presídios de Fernando de Noronha (PE) e da Ilha Grande (RJ), que durante o Estado Novo se transformaram em “depósitos” de presos políticos. Ao ser libertado escreveu um dos seus poemas que ficaram mais famosos, um soneto chamado “Liberdade”.
Parlamentar
Marighella saiu da prisão em abril de 1945 e voltou para a Bahia. Com o fim do Estado Novo, em outubro, foram convocadas eleições gerais e os presos políticos, anistiados. Novamente legalizado, o PCB lançou candidatos por todo o país, e Marighella se elegeu deputado federal pela Bahia com uma grande votação.
Aos 34 anos, ele voltou para o Rio de Janeiro para assumir sua cadeira no Parlamento ao lado de outros 14 deputados comunistas.
No plenário da Constituinte, defendeu as lutas dos trabalhadores, o direito de greve, o direito do divórcio, a liberdade de expressão, a imprensa popular, a separação entre Estado e Igreja e a reforma agrária. Só ficava com 20% dos vencimentos de parlamentar, o que considerava o necessário para a sobrevivência. O resto passava para o partido.
Depois de anos preso, teve um romance com Elza Sento Sé, uma baiana que mudara para o Rio de Janeiro e trabalhava na empresa de energia Light. Desse namoro, nasceu Carlos Augusto Marighella, em 1948. Mas a paixão da vida inteira dele foi Clara Charf, com quem dividiu até a morte as alegrias e agonias da construção de uma família e da instabilidade da atividade política comunista.
Apesar da legalização formal do PCB, a repressão aos comunistas continuou sob o governo do presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), e o registro do partido foi novamente cassado em 1947. Em seguida foram anulados os mandatos dos parlamentares eleitos pela legenda.
Mais uma vez na ilegalidade, o mulato baiano teria de atuar com discrição para dirigir o partido em São Paulo, a nova tarefa que recebeu da organização. Desde 1943, quando ainda estava preso, passara a fazer parte do Comitê Central do PCB. Para formar novos militantes, estimular greves e fazer lutas, ele passou a investir no movimento sindical paulista.
A mobilização parece ter dado resultados, pois em 1953 eclodiu em São Paulo uma série de greves, como a dos operários da indústria têxtil, dos gráficos, dos marceneiros e dos metalúrgicos, todas vitoriosas.
Pouco tempo depois, no entanto, o PCB entraria em uma nova crise. Em 1956, comunistas de todo o mundo se chocaram com a divulgação do relatório em que o novo dirigente da União Soviética, Nikita Kruschev, denunciou os crimes de Josef Stalin.
A primeira reunião do Comitê Central do PCB após a divulgação do documento foi marcada por duros ataques entre os dirigentes do partido. Abalado com as revelações, Marighella foi à tribuna e chorou. Por dias e dias, as lágrimas correram.
Apesar da decepção, ele continuou com suas atividades no partido e passou a fazer parte da principal instância de decisão da organização, o Secretariado do Comitê Central. Embora não tenham conquistado a legalização do partido, sob o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) os comunistas viveram um momento de maior tranquilidade, porque não eram reprimidos. Nesse período, Marighella pôde ficar mais tempo com a família.
A virada
O período de maior estabilidade terminou com a renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961, sete meses depois de assumir o poder. Diante do impasse, os militares começaram a agir para impedir a posse do vice, o trabalhista João Goulart, e a perseguir os comunistas. A polícia foi até o apartamento de Marighella no Rio, mas ele e a mulher conseguiram escapar.
Foram anos de intensa agitação política até 1964.
O governo progressista de João Goulart ensaiou reformas estruturais no país. Ao mesmo tempo, o PCB crescia com a organização dos sindicatos e a realização de greves. O partido caminhava no fio da navalha, dividido entre apoiar o governo, sobre o qual exercia influência, ou intensificar a pressão para cobrar mudanças.
Marighella defendia a segunda opção. Essa intensa luta política, no entanto, terminou com o golpe militar de 1964. Mais uma vez os comunistas foram para a clandestinidade. No próprio dia em que o golpe foi consumado, 1º de abril de 1964, Marighella e a mulher escaparam por pouco da polícia.
Em maio, o mulato baiano foi preso, mas resistiu o quanto pôde, baleado no peito, e enfrentou os policiais armados dentro de um cinema. Conseguiu um habeas corpus, mas logo depois foi decretado um novo pedido de prisão. Na clandestinidade, escreveu o texto “Por que resisti à prisão”, que analisa a conjuntura política e a realidade brasileira e propõe a luta armada como tática para o PCB.
A partir daí, começou a fazer a luta política dentro do partido para convencer dirigentes e militantes a optar pelas armas como uma forma de despertar a insurreição popular, enquanto a linha de Prestes era de resistência pacífica.
Com o tempo, as tensões foram aumentando dentro da organização. Marighella pediu desligamento da Comissão Executiva, mas continuou como secretário-geral em São Paulo, esforçando-se para levar o partido para a luta armada. Em São Paulo, por exemplo, 90% dos militantes do partido ficaram com Marighella na conferência estadual de abril de 1967, mesmo com a presença de uma delegação liderada por Prestes.
Em Armas
O Comitê Central reagiu e passou a intervir nos estados não alinhados à sua posição. Depois de participar de uma conferência em Cuba sem consentimento do comando do partido, em setembro de 1966 o mulato baiano foi expulso da organização na qual militou por mais de 30 anos.
Não havia mais amarras para pôr em prática a linha política que defendera para o partido, e ele então fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN).
A organização política tinha um braço armado formado por células de militantes que fizeram assaltos a bancos, carros-fortes e até a um trem-pagador, para levantar recursos para a luta, além de sequestros de autoridades diplomáticas para trocá-las por presos políticos.
As primeiras ações foram lideradas por Marighella, que em dezembro de 1968 escreveu e divulgou o manifesto “Chamamento ao povo brasileiro”, documento no qual apresentava as propostas dos guerrilheiros para o Brasil.
Enquanto isso, a repressão aumentava. O primeiro sinal da intensificação da violência dos militares foi o Ato Institucional nº 5, que fechou o Congresso Nacional em dezembro de 1968.
Depois, houve um recrudescimento ainda maior, quando o embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, foi sequestrado no Rio de Janeiro e trocado por presos políticos em setembro de 1969.
A ditadura já tinha identificado as “digitais” de Marighella nas ações da luta armada, e os militares lançaram uma caçada obsessiva àquele que consideravam o inimigo no 1 do regime.
A perseguição acabou em 4 de novembro de 1969, quando o guerrilheiro marcou encontro com dois frades dominicanos que colaboravam com a ALN. Ele não sabia, porém, que ambos haviam sido presos e torturados e agiam sob as ordens da polícia.
Ao chegar ao local marcado, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, o militante comunista foi assassinado com quatro tiros, em uma operação que envolveu 29 policiais em seis carros.
Marighella deixou órfãos uma mulher, um filho e uma série de herdeiros na luta contra a ditadura, com seu exemplo de convicção ideológica, persistência na luta e coragem para agir.
Foi militante de base, dirigente partidário, preso político, deputado federal, agitador das massas, guerrilheiro, assaltante de bancos… Em mais de 30 anos de luta política, o líder que encarnava as aspirações de liberdade e justiça, de acordo com as palavras do crítico literário Antonio Candido, passou por todas essas funções e cumpriu todo tipo de tarefa, o que fez dele um verdadeiro operário da luta pelo socialismo que deu a vida pelo povo brasileiro.
O que Marighella queria com a luta armada
Em dezembro de 1968 o guerrilheiro divulgou o manifesto “Chamamento ao povo brasileiro”, no qual expunha as principais bandeiras defendidas por sua organização, a Ação Libertadora Nacional:
● Fim dos privilégios e da censura
● Eliminação da corrupção
● Liberdade de criação e liberdade religiosa
● Libertação dos presos políticos da ditadura
● Eliminação dos órgãos da repressão policial
● Expulsão dos americanos do país e confisco de suas propriedades
● Monopólio estatal das finanças, comércio exterior, riquezas minerais, comunicações e serviços fundamentais
● Fim do latifúndio e garantia de títulos de propriedade aos agricultores
● Confisco das fortunas ilícitas dos grandes capitalistas
● Garantia de emprego a todos os trabalhadores e às mulheres
● Redução dos aluguéis, proteção aos inquilinos e garantia da casa própria
● Reforma do sistema de educação e expansão da pesquisa científica
● Tirar o Brasil da condição de satélite da política externa americana
Para saber mais
* Carlos, a face oculta de Marighella. Edson Teixeira da Silva Junior. Expressão Popular, 2009.
Marighella – Retrato falado do guerrilheiro. Documentário dirigido por Silvio Tendler. Caliban, 2001.
* Carlos Marighella – O homem por trás do mito. Cristiane Nova e Jorge Nóvoa (Orgs.). Editora da Unesp, 1999.
* Carlos Marighella, o inimigo número um da ditadura militar. Emiliano José. Casa Amarela, 1997.
Porque resisti à prisão. Carlos Marighella. Editora Brasileira, 1994.
Poemas. Carlos Marighella. Brasiliense, 1994.
Combate nas trevas. Jacob Gorender. Ática, 1987.
Escritos de Carlos Marighella. Editorial Livramento, 1979.
Cronologia
1911
Nasce em Salvador, no dia 5 de dezembro.
1930
Entra no curso de engenharia e torna-se militante do Partido Comunista.
1932
É preso pela primeira vez.
1936
Muda-se para o Rio de Janeiro para reorganizar o PCB. É preso novamente.
1939
É preso em São Paulo.
1945
Eleito deputado federal pelo PCB da Bahia.
1964
Resiste aos agentes da ditadura que tentam prendê-lo.
1966
É expulso do PCB e entra para a luta armada. Funda a Ação Libertadora Nacional (ALN).
1969
É assassinado por policiais em São Paulo, no dia 4 de novembro.
Fonte: Revista História Viva, nº 102, abril de 2012
Edição: Fundação Maurício Grabois