Por Maria Berenice Dias – Durante séculos ninguém titubeava em responder: família, só tem uma – a constituída pelos sagrados laços do matrimônio. Aos noivos era imposta a obrigação de se multiplicarem até a morte, mesmo na tristeza, na pobreza e na doença. Tanto que se falava em débito conjugal!
Este modelito se manteve, ao menos na aparência, às custas da integridade física e psíquica das mulheres, que se mantinham dentro de casamentos esfacelados, pois assim exigia a sociedade.
Tanto que o casamento era indissolúvel. As pessoas até podiam se desquitar, mas não podiam casar de novo. Caso encontrassem um par, tornavam-se concubinos e alvos de severas punições.
As mudanças foram muitas. Vagarosas, mas significativas. As causas, incontáveis. No entanto, o resultado foi um só. O conceito de família mudou, se esgarçou. As mulheres de objetos de desejo se transformaram em sujeitos de direito.
O casamento perdeu a sacralidade e permanecer dentro dele deixou de ser uma imposição social e uma obrigação legal.
Veio o divórcio. Antes, porém, era necessário os cônjuges passarem pelo purgatório da separação, que exigia que se identificassem causas, punindo-se os culpados. A liberdade total de casar e descasar chegou somente no ano de 2006.
A lei regulamentava exclusivamente o casamento.
Punia com o silêncio toda e qualquer modalidade de estruturas familiares que se afastasse do modelo “oficial”.
A omissão preconceituosa do legislador, porém, não significa inexistência de direito. Não se pode falar em silêncio eloquente, com significado de conteúdo excludente. Ausência de lei não impede a inclusão no âmbito da tutela jurídica.
E foi assumindo a responsabilidade de julgar que os juízes começaram a alargar o conceito de família. As mudanças chegaram à Constituição Federal que enlaçou no conceito de família, outorgando-lhes especial proteção, outras estruturas de convívio. Além do casamento trouxe, de forma exemplificativa, a união estável entre um homem e uma mulher e a chamada família parental: um dos pais e seus filhos.
Mas seguiu a justiça a cumprir o seu papel de fazer Justiça. Reconheceu que o rol constitucional não é exaustivo, e continuou a reconhecer como família outras estruturas familiares. Assim as famílias anaparentais, constituídas somente pelos filhos, sem a presença dos pais; as famílias parentais, decorrentes do convívio de pessoas com vínculo de parentesco; bem como as famílias homoafeitivas, que são as formadas por pessoas do mesmo sexo.
O reconhecimento da homoafetividade como união estável foi levado a efeito pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2011, em decisão unânime e histórica. O tema acabou regulamentado pelo Conselho Nacional de Justiça. Agora é proibido negar acesso ao casamento e impedir o registro das uniões homoafetivas, estando assegurada a possibilidade de estas se transformarem em casamento.
Também se deve à iniciativa do Poder Judiciário assegurar aos homossexuais, vivendo sozinhos ou em família, o direito de adotarem crianças, bem como fazerem uso das técnicas de reprodução assistida.
Agora esta é a realidade. Homossexuais casam, têm filhos, ou seja, são uma família!
Ativismo judicial? Não, interpretação da Carta Constitucional segundo um punhado de princípios fundamentais. É a justiça cumprindo o seu papel de fazer justiça, mesmo diante da lacuna legal.
Da inércia, passou o Legislativo, dominado por autointitulados profetas religiosos, a reagir. Não foi outro o intuito do Estatuto da Família, que acaba de ser aprovado pela Câmara dos Deputados (PL 6.583/2013). Tentar limitar o conceito de família à união entre um homem e uma mulher, além de afrontar todos os princípios fundantes do Estado, impõe um retrocesso social que irá retirar direitos de todos aqueles que não se encaixam neste conceito limitante e limitado.
Mas há mais. Proceder ao cadastramento das entidades familiares e criar Conselhos da Família é das formas mais perversas de excluir direito à saúde, à assistência psicossocial, à segurança pública, que são asseguradas somente às entidades familiares reconhecidas como tal. Limitar acesso à Defensoria Pública e à tramitação prioritária dos processos à entidade familiar definida na lei, às claras tem caráter punitivo.
O fato é que o conceito de família mudou. E onde procurar a sua definição atual? Talvez na frase piegas de Saint-Exupéry: a responsabilidade decorrente do afeto.