A Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal não acatou recurso do procurador Reginaldo Trindade para continuar desenvolvendo o trabalho em defesa do Povo Cinta Larga, etnia que vive em região rica em diamantes e conflitos na divisa dos estados de Rondônia e Mato Grosso.
Atuando na capital, o procurador tentou, mas não conseguiu derrubar a portaria que o impediu de abrir ou instruir qualquer feito acerca do assunto e ordenou a remessa de todos os inquéritos civis e demais, à Procuradoria de Vilhena, município mais próximo da região.
Uma das justificativas do Procurador-Chefe do MPF em Rondônia, Dr. João Gustavo de Almeida Seixas, para definir que a tutela do Povo Cinta Larga é exclusiva da Procuradoria da República no município de Vilhena, foi a economia.
“O valor da diária para o procurador de Porto Velho ir para a aldeia é o mesmo daquela paga ao procurador de Vilhena, mas haveria redução de custos, uma vez que o combustível utilizado no deslocamento do último é menor”.
Leia mais sobre o caso aqui: http://blogdalucianaoliveira.com.br/blog/2016/08/23/procurador-da-republica-em-ro-que-defende-indigenas-luta-pra-nao-ser-substituido-por-economia-de-combustivel/
O argumento econômico/orçamentário não deveria se sobrepor ao que representa um trabalho contínuo de inegável envergadura que Reginaldo Trindade fez por 16 anos.
Por tão valiosa atuação, o procurador venceu o Prêmio CNMP 2017 em que concorreram 1.077 iniciativas do Ministério Público brasileiro.
Reginaldo Trindade lamentou a decisão em carta que diz ser a mais difícil que escreveu.
“Nosso trabalho morre vivo”.
Confira na íntegra:
Caríssimos Irmãos,
Com o coração apertado, comunico que a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal decidiu, em 31.08.2017, por nos afastar formalmente do trabalho de defesa do Povo Cinta Larga, ordenando a remessa de todos os feitos à Procuradoria da República em Vilhena/RO no prazo máximo de 120 dias.
Considerando que é muito difícil que o Conselho Superior, a quem cabe dar a palavra final, decida contra o colegiado que tem o papel de orientar, no âmbito da instituição, os rumos da questão indígena; estaremos vivenciando, por mais algumas semanas, os últimos dias de um trabalho iniciado em abril de 2004.
Nesses dezesseis anos e meio de intenso trabalho corremos toda sorte de riscos, inclusive da incompreensão e do preconceito. Foram muitos os aprendizados, as emoções, as angústias. O desencanto que nos assombrou, no entanto, não nos levou a esperança. Jamais!
Estávamos em nosso melhor momento, já tendo ecoado nossa luta por todo o Estado de Rondônia e sonhando alçar voos ainda mais altos no país e quiçá no mundo, quando, em abril de 2016, tivemos conhecimento de que o trabalho de uma vida havia sido questionado.
Naquela época, faríamos, em algumas semanas, reunião importante, que contaria com a presença, dentre outras altas autoridades, do Embaixador da Polônia e do “Vice-Embaixador” da União Europeia…
Ou seja, nosso trabalho “morre vivo”!
Agradecemos aos quantos estiveram conosco nesses anos todos; em especial aos caríssimos amigos/irmãos do GRUPO CLAMOR – Cinta Larga: Amigos em Movimento pelo Resgate.
Rogamos que todos continuem ajudando, o máximo que puderem, a sofrida comunidade indígena, independentemente de quem esteja à frente de sua defesa.
De nossa parte, seguiremos fazendo tudo o que estiver ao nosso alcance para minorar, uma vírgula que seja, tamanho sofrimento. Não precisamos de qualquer divisa para fazer o bem às pessoas. Ninguém precisa.
Aliás, nossas responsabilidades vão muito além de nossas atribuições.
Seguiremos confiando, sobretudo na Providência. O Altíssimo sempre sabe o que faz. Aprendemos com o filósofo Demócrito que “Se sofrer uma injustiça, console-se, a verdadeira infelicidade é cometê-la” e, com o poeta Rilke, que “A vida tem razão em todos os casos”.
As épocas mais difíceis são as que mais exigem do homem de bem. Trabalhar com nossos irmãos indígenas ensinou que o verdadeiro guerreiro é o que jamais se deixa vergar. Quanto mais acuado for, mais inspiração terá!
Há, porém, tempo para tudo nesta vida. O Povo Cinta Larga, cedo ou tarde, haverá de assumir, verdadeiramente, o leme de suas vidas. Se nosso afastamento for o tributo a pagar para isso, o preço terá sido pequeno demais.
Sinceramente,
Porto Velho/RO, Amazônia Brasileira, 02 de Novembro de 2017.
REGINALDO TRINDADE
Procurador da República
PS. 1. Terminamos assim, melancolicamente, a carta mais difícil que tivemos que escrever. Até hoje.
PS. 2. No nosso momento mais simbolicamente marcante, escrevemos algo em que acreditávamos piamente e que, nessa hora mais extrema, não custa repetir. Quem dera ecoasse fundo no coração e na alma das pessoas:
Eu tenho esperança que um dia, nesse maravilhoso país, índios e não índios serão tratados como verdadeiramente são: seres humanos!
Eu tenho esperança que um dia nossa Constituição será efetivamente respeitada e não simplesmente modificada ao sabor dos interesses da ocasião e pelas mais inconfessáveis razões.
Eu tenho esperança que um dia o preconceito, mesquinho e ignorante, será substituído pelo amor.
Eu tenho esperança que a fé dos índios por dias melhores será eterna – assim como os diamantes!
Eu tenho esperança que sempre haverá pessoas de bem, que jamais repousarão enquanto não reverterem essa secular história de indignidades contra as minorias no Brasil e no mundo.
Eu tenho esperança que um dia o Governo do Brasil defenderá, de verdade, os povos indígenas. Não depois, mas antes que aconteça alguma tragédia – da qual tanto todos se lamentem.
PS. 3. Muito obrigado, de coração, ao Povo Cinta Larga, pela confiança depositada, pelas lições apreendidas, pela dádiva da amizade.
PS. 4. “E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar,
Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar.
Sem pedir licença muda nossa vida, depois convida a rir ou chorar.
Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá.
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar.”