Mesmo com o massacre e a inundação, Canudos é um retrato da luta do povo do Nordeste
Vanessa Gonzaga, de Canudos (BA)
Brasil de Fato | Recife (PE)
O ano é 1897. No norte da Bahia, a vila de Canudos era um dos focos de resistência popular contra a República e os altos impostos. A revolta era organizada por todos os moradores da vila, que tinha cerca de 20 mil habitantes, liderados pelo cearense Antônio Conselheiro.
Nascido em Quixeramobim-CE, Antônio Vicente Mendes Maciel foi seguidor do Padre Cícero e Padre Ibiapina. Antes de se estabelecer em Canudos, peregrinou na Bahia e em Sergipe. Além de pregar a palavra de Deus, Antônio Conselheiro contribuía na organização de 3 obras que considerava fundamentais por onde passava: açudes, para lidar com clima do semiárido e enfrentar os períodos de estiagem; cemitérios, para enterrar com dignidade a grande quantidade de crianças que morriam de fome; e as Igrejas, para reunir a comunidade em torno da palavra de Deus e para a tomada de decisões coletivas.
Um fato curioso é que Antônio não era o único conselheiro da região. Para ser conselheiro, era preciso ser uma pessoa ligada à religião e que tivesse idade avançada, pois a experiência de vida influenciava nos conselhos dados. Grande parte dos conselheiros eram na verdade conselheiras, pois muitas beatas tomavam para si o papel de aconselhar os mais jovens, especialmente as meninas e também contribuir na organização política dos vilarejos.
Em 1893 Antônio Conselheiro chega a Canudos, um pequeno vilarejo à margem do rio Vaza Barris, na Bahia. O modo de produção coletiva e a dinâmica de mutirões para construir os pilares da cidade, além das casas de pau a pique das famílias que chegavam, atraíram milhares de sertanejos que fugiam do latifúndio e da tirania dos coronéis. Chegavam por dia cerca de 12 novas famílias.
É nesse momento de crescimento rápido que a comunidade se recusa a pagar impostos e se organizar da forma que a recente República exigia. É aí que a vila de Canudos é renomeada por Conselheiro e passa a se chamar Belo Monte.
Canudos crescia e assustava não apenas os latifundiários da região, que perdiam diariamente seus vaqueiros, mas também assustava o Estado, que via a comunidade como uma ameaça ao estabelecimento da nova forma de organização política do país.
O massacre teve início em 1896. A justificativa dada pelas tropas para o ataque seria a invasão da cidade de Juazeiro, no Norte baiano. O fato é que Conselheiro e uma parte dos habitantes iriam a Juazeiro buscar madeiras para a construção da Igreja da vila, que já havia sido paga, mas não foi entregue. O primeiro combate aconteceu ainda no caminho, onde hoje fica o município de Uauá.
A guerra era veiculada nos jornais de circulação nacional, especialmente no sudeste, onde Canudos parecia uma iminente ameaça ao país inteiro. Luiz Paulo, coordenador do Projeto Canudos, relaciona a mídia ao ódio coletivo que Canudos despertou em todo o país. “A mídia sempre representou as elites. Na época as reportagens retratavam o povo de Canudos como um bando de malucos. Até hoje surgem comentários do tipo, nos retratando como jagunços, o que é muito pejorativo”.
A primeira das quatro investidas contra o vilarejo foi derrotada rapidamente pela comunidade. Por mais que o Exército tivesse armas de fogo, o povo de Canudos tinha um aliado: a Caatinga. O reconhecimento do território facilitava a locomoção dos grupos que vigiavam a cidade e impediam, com paus e pedras, a chegada das tropas na cidade.
O Estado mandou mais combatentes para Canudos do que para a Guerra do Paraguai, o maior conflito internacional da América Latina. Mesmo com o apoio do Estado e dos fazendeiros, as três expedições enviadas foram derrotadas pela população, inclusive pelas crianças.
A vitória da comunidade nas três tentativas veio acompanhada de muitas mortes, devido a diferença de armas e ferramentas. O Exército tinha armas, mas não conhecia o terreno e subestimou a comunidade. Os conselheiristas tinham um grande domínio sobre a geografia da região, rodeada de serras, mas tinha em mãos apenas paus, pedras, facas e armas para caçar passarinhos.
A expedição Artur Oscar, a quarta e última, destruiu a cidade de Canudos. Grande parte da população foi morta por degolamento e a vila incendiada. Ainda assim, os sobreviventes reconstruíram a vida no mesmo local da Guerra.
Até hoje a história da cidade e – principalmente do massacre – seguiam a linha de raciocínio de pesquisadores que criminalizavam os moradores que resistiram aos ataques e, especialmente, criminalizavam Antônio Conselheiro, além das tentativas de provar que o beato era louco.
Nos últimos anos novas pesquisas confrontam o que estava sendo dito pela Universidade e pela mídia. É o que ressalta o padre José Wilson de Andrade, que também possui doutorado sobre a história de Canudos. “Agora tem um visão política sobre o lado dos pobres e dos movimentos sociais. Essa é a nossa ótica. A entrada de pessoas pobres na Universidade é o que possibilita essa mudança de visão. Canudos foi uma guerra do litoral, dos poderosos, do exército, dos políticos, dos fazendeiros, contra o povo de Canudos, com faca, facão e espingarda. Agora estamos constatando isso sociologicamente”.
Em 1968 o Departamento Nacional de Combate à Seca (DNOCS) construiu o Açude Cocorobó na tentativa de oferecer água aos cerca de 20 municípios da região. A justificativa do progresso e combate à seca foi dada pelo Estado para inundar a cidade onde o massacre aconteceu. O açude tem uma extensão de 12km e 250mil m³, mas não abastece nem a cidade de Canudos inteira. Os sobreviventes do massacre e seus descendentes foram novamente expulsos da terra em que viviam, mas fundaram uma terceira Canudos, que existe até hoje.
Após 120 anos
Com um dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) mais baixos do Brasil, Canudos ocupa a 5002ª posição entre os 5570 municípios brasileiros. Além disso, não há cursos de graduação na cidade. Recentemente Canudos recebeu o primeiro Centro de Robótica da Bahia, que faz parte do Campus Avançado da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Por enquanto o campus executa apenas atividades de extensão.
Mesmo com as recorrentes tentativas de apagamento da memória da cidade, boa parte da história do município está arquivada em museus, como o Memorial Antônio Conselheiro; o Instituto Popular de Memória de Canudos, que abriga o cruzeiro crivado de balas que presenciou e resistiu ao massacre; e o Parque Estadual de Canudos, o único campo de batalha aberto a visitação no Brasil, de onde é possível ver a antiga Canudos submersa pelo Açude Cocorobó.
Um aspecto relevante é a perspectiva da economia e desenvolvimento regional. Uma das experiências é a Cooperativa de Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (COOPERCUC). A cooperativa conta com 204 cooperados das três cidades, sendo composta em sua maioria por mulheres. O foco é a produção de doces e geléias de frutas nativas da região, como o umbu e o maracujá da caatinga.
A iniciativa, umas das maiores da região, vem sofrendo cortes do Ministério do Desenvolvimento Agrário, como explica a presidenta da cooperativa, Denise Cardoso. “Após o golpe estamos tendo dificuldades no acesso a políticas públicas. Até 2015 tivemos acesso a R$ 800 mil pelos programas. Dos R$ 25 milhões que eram investidos no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), hoje são apenas R$ 750 mil para todo o Brasil. É menos do que o total que só a nossa cooperativa acessava”, informa.
Mesmo com uma série de obstáculos que dificultam o desenvolvimento econômico da cidade e o bem estar da população, o povo canudense demonstra resistência e orgulho da sua história, que é possível ver nas ruas, escolas e estabelecimentos da cidade, que carregam o nome de Antônio Conselheiro. Canudos hoje é uma parte do passado do Nordeste que têm sido revelado e uma peça fundamental para entender a história do Brasil.
Edição: Texto: Monyse Ravena | aúdio: Anelize Moreira