Recebemos hoje, com pesar, a notícia da morte de Frei Henri des Roziers, frade dominicano que trabalhou quase 40 anos no combate ao trabalho escravo, na luta pela reforma agrária e pelos direitos humanos no Brasil. Henri morreu em Paris, no Convento onde passou os últimos 4 anos de sua vida, com saúde frágil, uma atenção plena e uma alegria invejável. Fonte de inspiração de uma grande quantidade de pessoas, Henri reuniu ao seu lado uma centena de gente que conspira e se inspira conjuntamente, que se encontra em torno da vida desse homem que fez dos seus atos individuais, os gestos coletivos de luta e de resistência.
Sua vida foi, sempre, uma vida política. E esse foi o convite que ele dirigiu a todos e todas. E para isso, mostrava o caminho que ele mesmo seguira: as grandes utopias da liberdade, a radical experiência da fé encarnada vivida por pessoas como Antonio Montesino e, principalmente, Bartolomeu de Las Casas, cuja inspiração Henri encarnou vivamente ao longo da vida: “eu tentei viver como ele”, confessara nas páginas finais do livro biográfico Comme une rage de Justice, publicado na França, em 2016, pela Editora Le Cerf (previsto para ser lançado, em breve, no Brasil).
Henri é membro da COMISSÃO DOMINICANA DE JUSTIÇA E PAZ DO BRASIL. Mais do que isso: foi um dos seus idealizadores. Entre nós, ele insistia na importância da estratégia e da articulação. Foi, por isso, um construtor de pontes, cujo cimento era a esperança na luta pela Justiça. Nessa tarefa, uniu mundos aparentemente incomunicáveis. Ele fez o estudante francês da Sorbonne de maio de 68 se encontrar com o sem-terra do sul do Pará; ele fez com que os jovens Katangais compartilhassem seus destinos com os jovens vítimas do trabalho escravo da Amazônia; que advogados do Haute-Savoie servissem de exemplo para os advogados do norte do Brasil; que os frades franceses se vissem em Tito de Alencar e nos jovens frades brasileiros que lutavam contra a ditadura; que o humanismo cristão se encontrasse com a teologia da libertação; que Congar, Chenu e o Cardeal Arns sentassem à mesma mesa; que o Centro Saint-Yves e a CPT se reconhecessem reciprocamente; que a autoridade jurídica do advogado se unisse, afinal, à autoridade moral do religioso; que o direito se encontrasse, afinal, com os pobres. Assim, Henri viveu sua vocação ao extremo e deu sentido à sua vida como poucos conseguiram. À sua cepa pertence gente como Tito de Alencar, Tomás Balduíno, Lília Azevedo e Irmã Revy, entre outros irmãos e irmãs que se inspiraram mutuamente.
Foi com palavras embrulhadas por um sotaque francês e com roupas rotas, que ele frequentou tribunais para defender as gentes sem defesa contra a impunidade. Advogado das causas da terra, ele conhecia de perto as vítimas e suas dores. Fez disso a sua estratégia de luta e nunca esmoreceu diante das muitas ameaças que sofrera. Ao contrário, toda vez que seu nome aparecia nas listas dos marcados para morrer, a luz dos seus olhos pequenos brilhavam com mais força. E era essa fonte de luz que animava quem estava ao seu lado.
Henri morreu no quarto do Convento Saint Jacques, onde está a famosa biblioteca dos Chorões (visitada por Foucault e tantos outros) em Paris, diante da janela, por onde se esparramava uma árvore frondosa, cujas folhas douradas ele não cansava de contemplar e que vinham suavemente morrer contra a vidraça do quarto. Aquela árvore outonal prenunciara o destino do homem que, no outono da vida, murchava como as folhas. Mas como elas, também declinava com beleza, tornando-se fertilizante de outras vidas. Como aquela árvore, a vida de Henri se prolongou nos seus adubos. A quem fica, restam outras estações, vitalidades e declínios. Para homenageá-lo, continuaremos contemplando as árvores, atentos às estações, cuidando do tempo que é nosso. Embora uma parte de nós morreu com Henri hoje, uma outra com ele se rejuvenesce. Em silêncio, olhos marejados, colheremos os frutos e as boas sementes do mundo que há de vir. Henri estará conosco. Aquela árvore foi sua última lição.
Goiânia, 26 de novembro de 2017
Coordenação da Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil