O que fazer com a arte de homens monstruosos?

O que fazer com a arte de homens monstruosos?

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Eles fizeram ou disseram algo horrível, mas criaram algo maravilhoso.
A biografia de um artista deve influir na apreciação de sua obra? Denúncias reabrem o debate.

No El País – Roman Polanski, Woody Allen, Bill Cosby, William Burroughs, Richard Wagner, Sid Vicious, V. S. Naipaul, John Galliano, Norman Mailer, Ezra Pound, Caravaggio, Floyd Mayweather… e, se começarmos a enumerar os atletas, não acabaremos nunca. E o que dizer das mulheres? A lista logo se torna muito mais difícil e incerta: Anne Sexton? Joan Crawford? Sylvia Plath? Autoflagelação conta? Ok, suponho então que é melhor voltar aos homens: Pablo Picasso, Max Ernst, Lead Belly, Miles Davis, Phil Spector.

Todos eles fizeram ou disseram algo horrível, mas criaram algo maravilhoso. O horrível afeta o maravilhoso; não podemos ver, ouvir ou ler a grande obra de arte sem recordar o horror. Assoberbados com o que sabemos da monstruosidade do criador, nos distanciamos, cheios de repugnância. Ou talvez não. Continuamos olhando, tentando separar o artista da obra de arte. Em qualquer caso, é perturbador. São gênios e são monstros, e não sei o que fazer com eles.

Na era de Trump, todos temos pensado em monstros. No meu caso, comecei há vários anos. Estava pesquisando sobre Roman Polanski para um livro que escrevia, e fiquei impressionada com suas atrocidades. Era algo monumental, como o Grand Canyon do Colorado. E, no entanto… Quando via seus filmes, eles tinham uma beleza que era outro tipo de monumento, imune a tudo o que sabia de sua maldade. Havia lido muitíssimo sobre quando ele estuprou a menina Samantha Gailey, de 13 anos; tenho certeza de que não me falta saber nenhum detalhe. Mas, apesar disso, continuava sendo capaz de ver seus filmes. Desejando vê-los, inclusive. Quanto mais pesquisava sobre Polanski, mais compelida eu me sentia a ver seu cinema, e via de novo, sobretudo os grandes títulos: Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary, Chinatown. Como todas as obras-primas, estas convidam a repetidas sessões. Eu as devorava. Transformaram-se em parte de mim, como acontece quando amamos algo.

Eu não deveria ter gostado desses filmes, nem desse diretor. Polanski é alvo de boicotes, processos e indignação. Para as pessoas, o homem e sua obra parecem ser a mesma coisa. Mas são? Devemos tentar separar a arte do artista, o criador de sua obra? Não nos perdemos num esquecimento voluntário quando queremos escutar, por exemplo, O Anel do Nibelungo, de Wagner? (Esquecer é mais fácil para algumas pessoas que para outras; as peças de Wagner foram representadas bem poucas vezes em Israel). Ou pensamos que o gênio merece uma dispensa especial, uma permissão para se comportar mal?

E como nossa resposta varia em função das situações? A impressão é que algumas obras de arte são já impossíveis de desfrutar pelas transgressões de seu criador. Como podemos ver o Cosby Show depois das acusações contra Bill Cosby? Claro que podemos fazer isso, mas estaremos realmente vendo a série? Ou, mais propriamente, o espetáculo de nossa inocência perdida?

E essa é apenas uma questão pragmática? Retiramos nosso apoio à pessoa se está viva, para que não obtenha benefícios econômicos de nosso consumo de sua obra? Expressamos uma opinião com nossas ações? Nesse caso, seria correto baixar grátis da Internet um filme de Roman Polanski, por exemplo? Podemos vê-lo na casa de um amigo?

Um momento: quem é esse “nós” que aparece sempre nos ensaios críticos? Nós é uma escapatória. Nós é barato. Nós é uma forma de nos desfazermos da responsabilidade pessoal e, ao mesmo tempo, assumir o manto da autoridade fácil. É a voz do crítico masculino tradicional, o que acha sinceramente que sabe o que todo mundo deve pensar. Nós é corrupto. Nós é artificial. A pergunta que se deve fazer é: eu posso amar a arte mas odiar o artista? Você pode? Quando digo nós, me refiro a mim. Me refiro a você.

Sei que Polanski é pior — seja lá o que isso signifique — mas para mim o ultramonstro é Woody Allen.

Os homens querem saber por que Woody Allen nos indigna tanto. Woody Allen deitou-se com Soon-Yi Previn, filha de sua companheira Mia Farrow. Na primeira vez que foram para a cama, Soon-Yi era uma adolescente que estava sob os seus cuidados, e ele era o diretor de cinema mais famoso do mundo.

A relação sexual com Soon-Yi me afetou como uma traição pessoal. Quando era jovem, eu me sentia como Woody Allen. Intuía ou achava que ele me representava na tela. Era eu. Esse é um dos aspectos peculiares de seu talento, sua capacidade de suplantar espectador. A identificação era ainda mais intensa por sua mensagem habitual: magro como um menino, baixinho como um menino, confuso ante um mundo frio e incompreensível (como antes Chaplin). Eu me sentia mais próxima a ele do que é razoável para o que uma menina sente por um cineasta adulto. De uma maneira um tanto absurda, eu sentia que ele me pertencia. Sempre o havia considerado um de nós, os indefesos. A partir de Soon-Yi, me pareceu um predador. Minha reação não era lógica; era emocional.

Numa tarde chuvosa da primavera de 2017, deixei-me cair no sofá da sala de estar e cometi um ato transgressor. Não o que vocês estão pensando. O que fiz foi escolher Noivo Neurótico, Noiva Nervosa no serviço de pay-per-view. Foi fácil. Bastou eu clicar no botão OK, com enorme poder de mando, e depois me dediquei a catar biscoitos num pacote enquanto os créditos apareciam na tela. Como ato transgressor, foi bastante modesto.

Eu tinha visto o filme pelo menos uma dúzia de vezes, mas ele voltou a me cativar. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é uma comédia engenhosa, como um puro passo de dança de Fred Astaire, um balão cheio de hélio que tensiona a corda que o segura. É uma história de amor para as pessoas que não acreditam no amor: Annie e Alvy se unem, se distanciam, voltam a se unir e se separam definitivamente. Sua relação não teve sentido em nenhum momento e, ao mesmo tempo, valeu a pena. O bordão de Annie, “la la la”, é o princípio que rege a aventura, a coleção de sílabas sem sentido que imprimem uma feliz expressão ao existencialismo de Allen. “La la la” significa “Não importa nada”. Significa “Vamos nos divertir enquanto colidimos”. Significa “Nossos corações vão se partir”. Não é uma farra?

Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é o melhor filme de comédia do século XX — melhor que Levada da Breca, melhor até que Clube dos Pilantras — porque reconhece o irrefreável niilismo que espreita dentro de toda comédia. Além disso, é muito divertido. Ver Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é sentir, por um instante, que você pertence à humanidade. Sentir-se quase assaltada por essa sensação de pertencimento, essa conexão inventada que pode ser ainda mais bela que o amor. E isso é o que chamamos de verdadeira arte. Caso não saibam.

Veja, eu não saio por aí me conectando com a humanidade. É um raro prazer. E tenho que abrir mão dele só porque Woody Allen se comportou mal? Não me parece justo.

Quando contei à minha amiga Sara que estava escrevendo sobre Woody Allen, ela me disse que havia visto em seu bairro uma Little Free Library [um tipo de biblioteca compartilhada de rua] que estava abarrotada de livros escritos por ele e sobre ele. Rimos imaginando algum fã furioso, certamente uma mulher, que havia decidido que não podia suportar o fato de continuar tendo esses livros em casa e que os levara todos à biblioteca.

E então Sara disse em tom nostálgico: “Não sei onde colocar tudo o que sinto sobre Woody Allen.” Exato.

Também contei que estava escrevendo sobre Allen a outra amiga muito inteligente. “Tenho muitas opiniões sobre Woody Allen”, exclamou, entusiasmada. Estávamos tomando uma taça de vinho no alpendre de sua casa, e a luz da tarde iluminava seu rosto. “Estou furiosa com ele. Já estava nervosa com ele pelo que fez com Soon-Yi, então veio o episódio de… como se chama? Dylan? Chegaram as acusações de Dylan, e a reação tão desdenhosa que ele teve. E detesto como fala sobre Soon-Yi, sempre dizendo que é graças a ele que ela tem uma vida mais plena.”

Acredito que isso é o que acontece com muitos de nós quando pensamos na obra de gênios monstruosos: dizemos que temos pensamentos éticos, quando na verdade o que temos são sentimentos morais. Colocamos palavras ao redor desses sentimentos e os chamamos de opiniões. “O que Woody Allen fez foi muito ruim”. E os sentimentos nascem de um lugar mais elementar que os pensamentos. O fato era que eu me sentia nervosa com a história de Woody e Soon-Yi. Não estava pensando; estava sentindo. Me sentia pessoalmente ofendida.

Se querem emoções complicadas, vejam Manhattan.

Como muitas pessoas — muitas quem? Muitas mulheres? Muitas mães? Muitas que foram meninas? Muitas pessoas com sentimentos morais? —, passei anos sem poder ver Manhattan. Há alguns meses, quando comecei a pensar em Woody Allen como monstro, vi praticamente todos os demais filmes que ele dirigiu antes de enfrentar o fato de que em algum momento eu teria que ver Manhattan.

E esse dia chegou. Sentei-me no bonito sofá da minha confortável sala de estar enquanto julgavam Bill Cosby. Era junho de 2017. Meu marido, que tem um dom para o dramatismo discreto, me sugeriu que alternasse entre o julgamento e o filme para construir uma espécie de metarrelato da monstruosidade. Mas seu austero senso norte-europeu de espetáculo não serviu para nada, pois não transmitiram o julgamento de Cosby. Ainda assim, o julgamento estava sendo realizado.

Naquele verão, o clima era de um enorme mal-estar. Havia um sentimento generalizado de que algo estava errado. As pessoas, e ao dizer pessoas me refiro às mulheres, estavam agitadas e insatisfeitas. Se encontravam nas ruas, se olhavam, negavam com a cabeça e se distanciavam em silêncio. As mulheres estavam fartas. Organizaram um protesto gigantesco para expressar essa saturação. Começaram a se comunicar pelo Facebook e o Twitter, a fazer longas marchas indignadas, a dar dinheiro para organizações de direitos civis, a se perguntar por que seus companheiros e filhos não lavavam mais os pratos. Começaram a perceber que o paradigma dos pratos era odioso. Começaram a se radicalizar, embora não tivessem tempo para serem radicais. Arlie Hochschild publicou The Second Shift (A dupla jornada) em 1989, e em 2017 as mulheres começaram a descobrir que essa merda era mais verdade do que nunca. Alguns meses depois, surgiram as acusações contra Harvey Weinstein e, com elas, a força da campanha #MeToo.

Como escrevi quando era adolescente em meu diário: “Neste momento, não tenho uma grande opinião sobre os homens.” No verão de 2017, continuava sem ter, e muitas outras mulheres também não tinham. Muitos homens tampouco se sentiam muito bem sobre outros homens. Até os patriarcas estavam fartos do patriarcado.

Apesar de toda essa profusão de opiniões, sentimentos e raiva, eu tinha a determinação de pelo menos tentar me aproximar de Manhattan com a mente aberta. Afinal, muita gente pensa que é a obra-prima de Allen, e eu estava disposta a me deixar conquistar. E ele me conquistou com os créditos, em branco e preto; com os saltos temporais editados à perfeição, quase de maneira cômica, para coincidir com os acordes triunfais de Rhapsody in Blue. Momentos depois, cortamos para um plano de Isaac (o personagem de Allen), jantando com seus amigos Yale (está brincando comigo? Yale?) e sua mulher, Emily. Com eles está a acompanhante de Allen, uma estudante de 17 anos chamada Tracy, interpretada por Mariel Hemingway.

O mais espantoso dessa cena é a indiferença dele. Claro, ele sabe que a relação não vai durar, mas as implicações morais que isso tem parecem só perturbá-lo ligeiramente. Allen é fascinado pelas sombras morais, salvo nesse tema específico, o dos homens de meia idade que vão para a cama com adolescentes. Frente a esse assunto em particular, um dos grandes observadores da ética contemporânea — alguém cujas obras já maduras são quase dignas de Flaubert — torna-se um idiota de repente.

“No colégio, até as meninas mais feias são bonitas”. Um professor uma vez me disse essa frase.

O rosto de Tracy, que é o de Mariel, é feito de planos abertos que lembram os pioneiros, os campos ensolarados de trigo (é uma menina de Idaho, afinal). Para Allen, Tracy tem uma bondade e uma pureza que as mulheres adultas do filme não podem ter jamais. Tracy é sábia, tal como Allen a roteirizou, mas, ao contrário dos adultos, é milagrosamente livre de qualquer neurose.

Heidegger utilizava os conceitos de Dasein e Vorhandensein. Dasein significa a presença consciente, uma entidade consciente de sua mortalidade; por exemplo, os personagens de todos os filmes de Woody Allen salvo Tracy. Vorhandensein, ao contrário, é um ser que existe em si mesmo, simplesmente é, como um objeto ou um animal. Ou Tracy. A jovem é gloriosa sem precisar fazer nada: inerte, como um objeto, Vorhandensein. Como as grandes estrelas do cinema clássico, é um rosto, e Isaac deixa isso claro em sua litania de motivos para viver: “Groucho Marx e Willie Mays, as incríveis peras e maçãs de Cézanne, os caranguejos de Sam Wo’s e, ah, sim, o rosto de Tracy. (Ao ver o filme pela primeira vez em décadas, fiquei impressionada com o quanto a lista de Isaac parece um post do Facebook).

Allen/Isaac pode se aproximar mais desse mundo ideal, um mundo que se esqueceu de seu conhecimento da morte, transando com Tracy. Como é Woody Allen — um grande cineasta —, deixa Tracy falar, e ela não é nenhuma boba. “Suas preocupações são minhas preocupações”, diz. “Temos um sexo maravilhoso”. Para Isaac, isso é muito conveniente: ele consegue absorver sua simplicidade encerrada num corpo tão belo, ficando assim isento de culpa. As mulheres do filme não têm essa vantagem.

As mulheres adultas de Manhattan são frágeis e muito conscientes da morte; sabem de tudo. Uma mulher que pensa está presa, afastada do corpo, da beleza, da própria vida.

Na minha opinião, o momento mais significativo do filme é uma frase dita por uma mulher muito elegante em tom de queixa durante um coquetel. “Finalmente, tive um orgasmo e meu médico me disse que foi dos ruins.” A (divertida) resposta de Isaac: “Foi dos ruins? Nunca tive um dos ruins, nunca. O meu pior foi bem na mosca”.

Todas as mulheres que assistem ao filme sabem que o estúpido é o médico, não a mulher. Mas Woody/Isaac não vê dessa forma.

Se uma mulher é capaz de pensar, não pode ter orgasmo; se pode ter um orgasmo, não é capaz de pensar.

Assim como Manhattan nunca examina de forma plena e genuína as complexidades de um sujeito de idade dormindo com uma adolescente, o próprio Allen — um indivíduo extremamente eloquente — se torna estranhamente pouco articulado quando fala de Soon-Yi. Numa entrevista que concedeu a Walter Isaacson para a revista Time, Allen soltou uma frase que ficou famosa por seu fátuo desprezo acerca de suas deficiências morais: “O coração quer o que quer”.

Foi uma dessas respostas que você nunca esquece depois de ouvir. Todos a memorizamos de imediato, gostássemos ou não. Seu atroz desdém por tudo o que não seja ele mesmo, sua orgulhosa irracionalidade. E Allen prosseguia: “Essas coisas não seguem nenhuma lógica. Você conhece alguém, se apaixona, e é isso.”

I move on her like a bitch [“Mandei ver como se ela fosse uma cadela”, frase dita por Donald Trump]

Custei a terminar de ver Manhattan. Demorei algumas sessões. Mencionei nas redes sociais essa dificuldade de assistir ao filme nesse momento Trump (eu achava ferventemente que fosse um momento). “Manhattan é um trabalho de gênio! Cansei de você, Claire!”, respondeu um escritor que não conheço pessoalmente. Esse escritor tinha suportado vários pronunciamentos escandalosos meus, incluindo alguns sobre meu desejo de executar e cortar em pedaços a metade masculina da humanidade, ao estilo de Valerie Solanas. No entanto, quando confessei que me sentia mal vendo Manhattan — acho que disse que o filme havia me provocado “um pouco de náusea” —, ele me disse, furioso, que me removia [da rede social] e não pensava em dialogar comigo nunca mais.

Eu falhara no que ele considerava que era meu dever: na capacidade de superar meus próprios sermões e minhas bobagens — minhas emoções — e de fazer o trabalho de apreciação do gênio. Mas quem se mostrou mais emocional nessa situação? Foi ele que saiu furioso do chat. Nos meses seguintes, repeti essa conversa com muitos homens, inteligentes e tolos. “Você tem que julgar Manhattan por sua estética”, diziam todos.

Outro escritor e eu discutimos isso numa noite enquanto jantávamos. Foi como uma peça de teatro:

Escritora: “Hum, isso não se sustenta.”

Escritor, bruscamente: “O que você quer dizer?”

Ela: “Bem, parece tudo um pouco displicente. Isaac não se preocupa com o fato de que ela seja uma colegial.”

Ele: “Não, não, não, se preocupa muito”

Ela: “Ele faz piada sobre isso, mas não se preocupa tanto”

Ele: “Você está pensando em Soon-Yi e deixando que isso influa na hora de ver o filme. Achei que você fosse mais séria.”

Ela: “Me pareceu assustador por mérito próprio, mesmo que não soubesse nada de Soon-Yi.”

Ele: “Deixe isso de lado. Você tem que julgá-lo por seus valores estéticos.”

Ela: “E o que lhe dá essa qualidade estética, objetivamente?”

O escritor diz algo sobre “equilíbrio e elegância” que soa muito inteligente.

Eu gostaria que a escritora tivesse sido capaz de dar o golpe de misericórdia aqui, mas não foi assim. Não estava segura de si mesma.

Qual de nós está vendo de forma mais clara? Aquele que teve a capacidade — alguns diriam o privilégio — de permanecer inalterado ante as atitudes do cineasta com relação às mulheres e seus antecedentes com as meninas? Aquele que pôde contemplar a arte sem cair em falácias biográficas? Ou quem não pôde evitar ver as antipatias e os impulsos que parecem dar vida ao projeto?

Pergunto sinceramente.

Esses espectadores orgulhosos de sua objetividade estavam sendo tão objetivos quanto pensam? A genialidade habitual de Woody Allen é sua capacidade de culpar a si mesmo, e aqui está um filme em que essa capacidade falha e no qual ele também transa com uma adolescente. E esse é o filme considerado uma obra-prima? O que exatamente esses caras defendem? É o filme? Ou é outra coisa?

Acredito que Manhattan e sua história pró-menina e antimulher seriam inquietantes mesmo que o furacão Soon-Yi nunca tivesse tocado solo. Mas não podemos saber, e aí está a chave do assunto. O filme de Louis C. K. I Love You, Daddy — o relato de um pai que tenta evitar que sua filha adolescente se envolva com um homem mais velho — terá um destino similar. Será impossível vê-lo como algo alheio ao comportamento indevido de Louis C. K., se é que chegará a ser visto. Até agora, a distribuição foi suspensa e o filme não vai estrear. Uma grande obra de arte nos provoca sentimentos. E, no entanto, quando digo que Manhattan me provoca náusea, um homem me responde: “Não, esse sentimento não. Você está tendo o sentimento errado.” E fala com autoridade: “Manhattan é uma obra-prima”. Mas quem diz isso? A voz autorizada diz que a obra não deve ser afetada pela vida. Que a biografia é uma falácia. Que a obra existe num mundo ideal (a-histórico, alpino, nevado, puro). Isso fica para os vencedores da história (os homens) (até agora).

O ponto é: não digo que eu tenho razão. Mas sou o público. E a única coisa que faço é ser consciente da realidade dessa situação: o filme Manhattan é visto de outra maneira pelo que sabemos sobre Soon-Yi, mas também é ligeiramente repugnante por si mesmo e, por outro lado, tem um monte de coisas que são maravilhosas. E tudo isso pode ser verdade ao mesmo tempo. A história de Allen não perde importância só porque os homens te dizem que ela não conta.

E o que eu faço com esse monstro? Tenho alguma responsabilidade? Devo me afastar ou superar meu desagrado biográfico e ver, ler, escutar?

E por que o monstro nos deixa — me deixa — tão furiosos?

O público quer algo para ver, ler ou escutar. Isso é o que o transforma em público. Neste momento histórico concreto, em que estamos estupefatos por amargas revelações, o público fica indignado novamente com a aparição de novos monstros todo dia, repetidas vezes. O público se entusiasma com o drama das denúncias contra os monstros. Dá meia volta e jura que nunca mais verá um filme de Kevin Spacey.

Talvez os sentimentos do público sejam puros, justos e sinceros. Mas também pode estar acontecendo outra coisa.

Quando você tem um sentimento moral, fica satisfeito com você mesma. Coloca suas emoções num leito de linguagem ética e se admira por fazer isso. Somos governados pelas emoções, emoções que rodeamos de linguagem. A transmissão de nossos sentimentos virtuosos nos parece muito importante e estranhamento apaixonante.

Lembrete: não “você”, não “nós”, e sim “eu”. É preciso reconhecer as coisas. Eu sou o público. E percebo que há algo completamente inaceitável à espreita dentro de mim. Inclusive no meio de minhas explosões de justa indignação por Woody e Soon-Yi, sei que, em certo sentido, não sou a única cidadã completamente nobre. Me dou bem com meus filhos e cuido de meus amigos; tenho uma casa acolhedora, escuto meu marido e sou razoavelmente boa com meus pais. No que faço e penso diariamente, sou um ser humano mais ou menos decente. Mas também sou algo mais, algo que se parece vagamente com, bem, um monstro. Os vitorianos compreendiam esse sentimento; por isso não legaram as enormes dicotomias de Dorian Gray, de Jekyll e Hyde. Suponho que essa é a condição humana, essa leve suspeita de nossa própria maldade. Algo em nós — em mim — vibra com esse horror, o reconhece, se espanta ao reconhecê-lo e logo se entusiasma com o espetáculo de denunciar publicamente o monstro em questão.

O teatro psicológico da condenação pública dos monstros pode ser considerado uma espécie de distração elaborada: não olhem para mim, não há nada para ver. Não sou nenhum monstro. Em vez de mim, olhem para esse sujeito aí. Sou um monstro? Nunca matei ninguém. Sou um monstro? Nunca defendi o fascismo. Sou um monstro? Nuca cometi abuso contra uma criança. Sou um monstro? Nunca fui acusado por dezenas de mulheres de tê-las drogado e estuprado. Sou um monstro? Não bato nos meus filhos (ainda). Sou um monstro? Não sou antissemita. Sou um monstro? Nunca liderei uma seita sexual que captura mulheres numa mansão dourada de Atlanta. Sou um monstro? Não estuprei, analmente, alguém de 13 anos.

Com todas as coisas horríveis que não fiz, talvez eu não seja um monstro. Mas há uma coisa que de fato fiz: escrever um livro. E escrever mais um livro. Ensaios, artigos e resenhas. Ou talvez isso me transforme num monstro, mas num sentido muito específico.

O crítico Walter Benjamin falava da “barbárie que está na base de toda grande obra de arte”. Minhas obras não são exatamente grandes, mas me pergunto: existe um pouco de barbárie na base de toda pequena obra de arte? Uma pontinha?

Para ser escritor ou artista, uma pessoa deve ter muitas qualidades. Talento, inteligência, tenacidade. É bom contar com pais ricos. É decididamente conveniente. Mas o ingrediente mais necessário é o egoísmo. Um livro é feito de pequenos egoísmos. O egoísmo de fechar a porta à família. O egoísmo de ignorar o carrinho de bebê que aguarda no corredor [em alusão à frase do crítico literário Cyril Connolly, de que “não há inimigo mais sombrio da boa arte do que um carrinho de bebê no corredor”]. O egoísmo de se esquecer do mundo real para criar outro diferente. O egoísmo de roubar histórias de pessoas de carne e osso. O egoísmo de reservar o melhor de si para esse amante anônimo e sem rosto, o leitor. O egoísmo de dizer o que você tem que dizer.

Me pergunto se sou suficientemente monstruosa. Sou consciente de minhas falhas como escritora — conheço a lista em detalhes, e o pior são as falhas que sei que não conheço —, mas uma pequena parte de mim tem que perguntar: se fosse mais egoísta, meu trabalho seria melhor? Deveria almejar ser mais egoísta?

Todas as escritoras e mães que conheço se fizeram essa pergunta. Nenhuma diz isso em voz alta, mas posso ouvir como pensam; é quase ensurdecedor. Por acaso uma identidade interrompe fatalmente a outra? Meu trabalho me faz ser uma mãe pior? Isso é o que você se pergunta o tempo todo. E também: a maternidade me faz ser pior escritora? Essa pergunta é um pouco mais incômoda.

Jenny Offill aborda essa ideia num fragmento de seu romance Dept. of Speculation, uma passagem muito comentada pelas escritoras e artistas que conheço: “Meu plano era nunca me casar. Em vez disso, seria um monstro da arte. As mulheres quase nunca chegam a ser monstros da arte, porque os monstros da arte só se dedicam a essa arte, nunca às coisas cotidianas. Nabakov nem sequer fechava seu guarda-chuva. E Vera umedecia os selos para ele.”

Eu detesto lamber os selos. Um monstro da arte, pensei quando li esse fragmento. Isso é o que quero ser. Minhas amigas pensaram a mesma coisa. Victoria, que é pintora, saiu por aí gritando “monstro da arte” durante vários dias.

As escritoras que conheço sonham em ser mais monstruosas. Dizem meio que brincando: “Quem me dera ter uma esposa.” O que isso quer dizer? Quer dizer que sonham em abandonar os cuidados cotidianos para praticar os sacramentos egoístas que a arte exige.

E se não sou monstruosa o suficiente?

De certo modo, há anos pergunto isso a alguns amigos escritores que considero magníficos. Envio-lhes e-mails cheios de simpatia, mas nos quais, na verdade, sempre tento saber: quanto você tem de egoísta? Ou, em outras palavras: quão egoísta preciso ser para ser tão boa artista quanto você?

Muito egoísta, segundo descobri observando esses homens de longe. Egoísta de fechar a porta e não dar bola para o seu filho enquanto trabalha. Egoísta de trabalhar todo dia, inclusive nas festas, inclusive no Natal. Egoísta de viajar semanas seguidas promovendo o livro. Egoísta a ponto de dormir com outras mulheres em congressos. Tão egoísta para fazer o que for preciso.

Numa noite recente, eu estava na sala caótica cheia de livros de uma jovem escritora e seu marido, também escritor. Seus filhos já estavam na cama, no andar de cima; de vez em quando, ouvia-se um choro.

Com os três filhos no colégio e o marido trabalhando o dia todo, minha amiga tentava forjar uma carreira fazendo frilas e escrevendo livros. Uma nuvem de intensa ambição literária cobria a casa, como um microclima tormentoso. Era dia de semana; todos deveríamos ter ido dormir, mas lá estávamos, tomando vinho e falando de trabalho. O marido me pareceu encantador, o que significa que ele ria de todas as minhas piadas. Estava muito tenso e alerta, talvez porque, como escritor, não estava tendo muito sucesso. Já a mulher tinha, e muito.

Ela mencionou um relato breve que acabava de escrever e publicar.

“Ah, você se refere à última desculpa para abandonar as crianças e a mim?”, perguntou o inteligente e encantador marido.

A mulher havia se transformado num monstro capaz de terminar sua obra. O marido, não.

Essa é a monstruosidade feminina: abandonar os filhos. Sempre. O monstro feminino é Doris Lessing deixando seus filhos para se entregar a uma vida literária em Londres. O monstro feminino é Sylvia Plath, que, como se seu suicídio fosse pouco, ainda se preocupou em fechar o quarto dos filhos. E em deixar pão e leite para eles, uma espécie de poema terrível em si mesmo. Ela sonhava em devorar homens como o ar, mas era monstruosa porque deixou os filhos sem mãe.

Talvez, como uma mulher escritora, você não se mate nem abandone seus filhos. Mas você abandona alguma coisa, alguma parte vital de si mesma. Quando você acaba um livro, o que aparece espalhado no chão são pequenas coisas quebradas: encontros cancelados, promessas não cumpridas, compromissos desfeitos. E outros esquecimentos e falhas mais importantes: os deveres dos filhos sem ter sido revisados, as chamadas não realizadas aos pais, o sexo conjugal esquecido. Todas essas coisas têm que se romper para que um livro seja escrito.

Claro que possuo a monstruosidade corrente de uma pessoa normal, as profundezas insondáveis, o Hyde reprimido. Mas também tenho outra monstruosidade mais visível e quantificável, a da artista que termina seu trabalho. Os artistas que terminam suas obras sempre são monstros. Woody Allen não só tenta rodar um filme por ano; tenta estrear um filme por ano.

No meu caso, a monstruosidade de terminar meu trabalho sempre se pareceu muito com a solidão: me afastar da família, ficar fechada numa casa de campo emprestada ou num quarto de hotel. Se não posso me distanciar fisicamente, me escondo em meu frio escritório, com echarpes e luvas sem dedo, com um gorro de pele na cabeça, isolada do mundo, tentando terminar.

Porque terminar é o que faz o artista. O artista deve ser monstruoso o bastante para não só começar, mas também terminar uma obra. E cometer todas as barbaridades que salpicam o caminho entre o princípio e o fim.

Minha amiga e eu não havíamos feito nada mais monstruoso do que esperar que alguém se encarregasse de nossos filhos enquanto terminávamos nossa obra. Não é algo tão ruim quanto o estupro nem, por exemplo, quanto obrigar alguém a te olhar enquanto você se masturba perto de um vaso de planta. Pode parecer que estou misturando as coisas — os homens predadores e as mulheres artistas — de um jeito preocupante. É possível. Porque, quando nós, mulheres, fazemos o que deve ser feito para escrever ou criar arte, às vezes nos sentimos monstruosas. E outros se apressam em nos qualificar como tais.

A escritora Martha Gellhorn, namorada de Hemingway, não pensava que o artista tivesse que ser um monstro; pensava que o monstro precisava se transformar em artista. “Um homem deve ser um grande gênio para compensar o fato de ser uma pessoa tão abominável” (suponho que ela sabia do que falava). O que diz ela é que, se você é realmente horrível, se sente compelido a ser um gênio para compensar o mundo por todas as coisas espantosas que vai fazer a ele. De certo modo, é uma revisão feminista de toda a história da arte; uma história que ela, com uma única frase ácida e brilhante, transforma numa alegoria moral de compensação.

Em qualquer caso, restam perguntas para responder. O que fazemos com os monstros? Podemos e devemos amar suas obras? Todos os artistas ambiciosos são monstros? E, em voz muito baixa: sou um monstro?

Claire Dederer é autora das memórias Love and Trouble. Está escrevendo um livro sobre a relação entre o mau comportamento e a arte de qualidade. Este artigo foi publicado em inglês no The Paris Review Daily.

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