No 247, por Tereza Cruvinel – Dentro de poucas horas os três desembargadores de Porto Alegre dirão se o Brasil se manterá na trilha democrática, já esburacada pelo golpe de 16, ou se enverederá de vez pelo caminho escuro do novo autoritarismo, em que a Justiça se presta ao controle da vontade popular, condenando um candidato sem prova inconteste, para tirá-lo do páreo.
Isso é o que enunciam juristas brasileiros e estrangeiros, alguns renomadíssimos, como Ferrajoli e Zaffaroni. Isso é que desperta e move manifestantes em defesa do ex-presidente Lula, não só em Porto Alegre, mas no Brasil todo e em muitas cidades do mundo. Mas é preciso, mesmo nestas horas finais, recordar os vícios da sentença do juiz Sergio Moro motivadores desta grande insurgência, que ultrapassa o chamado “lulismo”, unindo partidos e movimentos sociais, apesar das divergências, sensibilizando personalidades estrangeiras (como as 200 mil que assinaram o manifesto “eleição sem Lula é fraude”) e até mesmo vozes do conservantismo fieis ao Estado de Direito. Se os desembargadores se guiarem pela técnica e pelo direito, e não pela vontade política da aliança dominante, refugarão pelo menos três aspectos cruciais da sentença de Moro, já apontados tanto a defesa como outros advogados e juristas. A saber.
I – O juiz não foi natural – Sergio Moro não poderia ter julgado Lula, morador de São Bernardo do Campo/SP, pelo suposto recebimento, como vantagem indevida, de um apartamento situado no Guarujá/SP. No ordenamento jurídico brasileiro, a competência para julgar o crime é da autoridade da jurisdição local. Tanto que o primeiro inquérito sobre o assunto começou em São Paulo. Foram os procuradores da Lava Jato de Curitiba que, na denúncia, criaram o pretexto para puxar o tema para Curitiba, associando o imóvel a propina supostamente recebida em troca da participação da Construtora OAS em três consórcios contratados pela Petrobrás: um para obras na Refinaria Getúlio Vargas-Repar e dois para a Refinaria Abreu e Lima. Criado o pretexto para que o processo seguisse com Moro (inclusive com a transferência dos autos de São Paulo), não se conseguiu demonstrar a vinculação entre o apartamento e os contratos da OAS com a Petrobrás. “Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”, escreveu o próprio Moro em resposta a uma contestação da defesa. Não havendo nexo com a Petrobrás, o caso não era de sua competência. Mesmo assim, ele julgou e condenou Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro a 9,6 anos de prisão. Moro não podia ter julgado Lula mas o TRF-4 indeferiu contestação da defesa neste sentido, decisão que deve ser seguida pelos desembargadores.
II – A insustentável ausência de prova – Seja o réu um ladrão de galinha ou um líder popular acusado de corrupção passiva no valor de R$ 2,4 milhões, a prova para a condenação deve ser robusta e inconteste. Não é o acontece no caso do tríplex da OAS, que Moro diz ser de Lula. A prova que sustenta a condenação é o depoimento do relator Leo Pinheiro, da OAS, que nem foi taxativo ao dizer que “foi informado” de que o apartamento estava reservado para a família de Lula, com quem nunca tratou do assunto. Documentalmente, o imóvel continua em nome da OAS, foi por ela dado em garantia e recentemente penhorado por uma juíza de Brasília para atender a credores da empreiteira. Testemunhas falaram de uma visita de Lula e Maria mas quantos de nós não visitamos um imóvel no qual tivemos interesse e desistimos de comprar? Se os desembargadores se guiarem pelo direito, esbarrarão nesta falha insuperável da sentença de Moro. Pelo menos de um deles, Victor Lauss, diz-se que é avesso a condenações baseadas apenas em delações. Dai vem certa crença no resultado 2 a 1.
III – A inovação jurídica de Moro – O crime de corrupção passiva exige a correspondência cristalina entre uma vantagem recebida pelo corrompido e um ato de oficio por ele praticado, como autoridade pública, a favor do corruptor. Teria que haver um ato de Lula em favor da OAS para sustentar a condenação. Não conseguindo provar nexo causal entre Lula, contratos da OAS com a Petrobrás e o suposto recebimento do tríplex, Sergio Moro inventou uma figura inexistente no direito, o “ato de ofício indeterminado”. Um ato que Lula assinaria “quando surgisse a oportunidade”. Ou seja, a OAS o teria corrompido para garantir favores num incerto futuro. Serão também os três desembargadores avalistas desta inovação que espanta alguns juristas?
Estas são as três questões cruciais da sentença que os desembargadores irão confirmar ou reformar amanhã, embora exista uma até mais grave, a da parcialidade de Moro. Mas esta alegação da defesa, com base na conduta efetiva do juiz, já foi refugada pelo TRF-4 e até por instâncias superiores.
Se a sentença for mantida, o mundo não acabará amanha, e nem será o fim da candidatura de Lula, que irá às ultimas consequências, valendo-se de todos os recursos possíveis, para que ela seja registrada. Mas algumas coisas já terão mudado muito no Brasil.
Como aponta o constitucionalista Lênio Streck, “se alguém diz que o futuro do Brasil depende desse julgamento, é um exagero, é claro. Mas, sem dúvida, se alguém afirmar que o futuro do Direito e da teoria da prova dependem desse julgamento, terá toda a razão. Se até aqui já houve tantos atropelos à Constituição Federal, vamos ver o que ocorrerá depois… Vários institutos jurídicos dependem desse julgamento. O que ensinar nas aulas sobre prova? Ensinar que “prova é uma questão de crença, de probabilismo”? Juristas de todo o país: isto é coisa séria. Mataremos Malatesta, Cordero, todas as teorias garantistas? Bom, não sei como isso vai terminar. Uma coisa é certa: Direito não pode ser substituído por argumentos morais e políticos…. será que os fins justificam os meios? Será que o Brasil vai retroceder ao inquisitivismo?”
Estas são consequências para o Direito e o Estado de Direito, que já está com as asas tão avariadas. Mas há também a consequência política.
Nestes últimos dias, o povo voltou do exílio em que havia se recolhido desde a derrota de 2016, quando o impeachment de Dilma queimou 54 milhões de votos e a agenda não eleita foi imposta por Temer e sua turma com voracidade, com a pressa dos não eleitos, que precisam fazer o mal rapidamente, enquanto têm nas mãos a caneta do poder, que é fugidio quando ilegítimo. Com Lula condenado ou não, candidato ou não, daqui para a frente tudo tende a ser diferente. O confronto, de todo modo, vai se acentuar, e vai desembocar na campanha e na urna, ainda que nela não figure o nome de Lula.
O julgamento escancara o projeto de dotar o país de uma democracia faz-de-conta, onde a casa grande diz quem pode ser candidato, submetendo a soberania popular a seu controle e a seus interesses. O nome deste regime pode ser qualquer um, mas não pode ser democracia. De outro lado, estarão as forças populares que agora ganharam nova disposição para resistir. Por isso também, nada será como antes.