Sensação de que petista é o único a pagar por Lava Jato silencia quem apoiava impeachment de Dilma. Processo expõe sombras da democracia brasileira
No El País, por CARLA JIMÉNEZ – O Brasil encara um juízo histórico contra o ex-presidente Lula, neste julgamento que deve ser lembrado como marco político, do mesmo modo que as jornadas de 2013, ou o impeachment de Dilma em 2016. Não há exageros nesta afirmação, uma vez que as variáveis em jogo terão consequências práticas para as eleições, e devem ser capitalizadas politicamente por muito tempo, seja qual for o resultado. Com Lula no banco dos réus, o Brasil traz junto seus ressentimentos, passados e presentes, após dois anos de um processo político aparvalhado que começou no dia 2 de dezembro de 2015.
Naquele dia, o homem, que viria a pedir publicamente que a misericórdia divina intercedesse pelo Brasil, acatou o pedido de impeachment da ex-presidente Dilma. Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, era ali o homem mais poderoso do país, com o dedo ao alcance da bomba atômica política. Acabou explodindo junto com ela dois meses depois (talvez atendido pela misericórdia divina) da destituição de Dilma.
A decisão de Cunha, porém, tinha o apoio de uma maioria no Brasil. Pessoas que nunca gostaram do PT. Outras que gostavam no passado e se desencantaram, e outras ainda que nunca chegaram a odiar o PT, mas detestavam saber que a Petrobras havia virado a mina de ouro de esquemas corruptos. Entre esses, estavam também os que padecem de demofobia, que jogaram no ventilador o ressentimento de ver um país fora do zona de (des)conforto social. Os tais que reclamam de pobres nas universidades, aviões ou que acreditam que o Bolsa Família servia para aumentar a prole da baixa renda. Mas dizer que toda essa massa era homogênea é desonesto. Nada no processo político brasileiro hoje, aliás, pode ser visto por um filtro maniqueísta. Nem mesmo o juízo de Lula.
A constatação de que o 2 + 2 não é igual a 4 na política brasileira ficou patente entre aquele 2 de dezembro de 2015 e este 24 de janeiro de 2018. Neste período, o Brasil – e a massa que apoiou o impeachment de Dilma por práticas ilícitas reveladas por delatores da Lava Jato – encarou uma realidade bem menos aprazível do que esperava. Assumiu o vice Michel Temer com seu superministério masculino. Estabeleceram-se reformas a toque de caixa, gastos públicos foram congelados, um bom pedaço da Amazônia quase foi rifado. O Congresso deu marcha a ré para conquistas sociais importantes, colocando sob risco até mesmo o direito ao aborto em caso de estupro. Congresso este que engavetou duas denúncias de corrupção contra Temer, muito embora tenha sido implacável com as pedaladas de Dilma.
Saiu uma presidente sob o manto da corrupção, entrou um mandatário, sobre quem pesam suspeitas monstruosas que passam por propina da JBS e Odebrecht, favorecimento de uma empresa no porto de Santos, e até o conluio com o próprio Cunha, preso desde outubro de 2016 em Curitiba. Mala de dinheiro de seu principal assessor, Rocha Loures. Uma montanha de 51 milhões de reais no apartamento de seu ex-ministro Geddel Vieira Lima… Corrupção do senador Aécio Neves, que questionava a idoneidade das contas de campanha de Dilma Rousseff.
Todo mundo viu esse mesmo filme, e as manobras bem sucedidas para evitar que a Justiça se aproximasse dessa nova cúpula no poder. Viu também o Supremo negar a Lula a vaga de ministro, mas endossar a posse de Moreira Franco e, quiçá, a da nova ministra do Trabalho, Cristina Brasil, que tem pendências com a Justiça.
Mudaram os personagens, mas não as práticas. O que gerou um desconforto real diante do julgamento do ex-presidente Lula, que pode ser impedido de concorrer à eleição deste ano. É inocente? Não há unanimidade para essa linha de defesa. Mas, no mínimo, sabe-se que está sozinho pagando o preço de toda a Lava Jato, enquanto outros políticos no poder encontraram seus artifícios para fugir das garras da lei. Talvez por isso contavam-se em dezenas ou centenas, e não por milhares ou milhões, os manifestantes que celebravam o julgamento de Lula nesta terça, 23. Nem as panelas, símbolo do fim do Governo Dilma, soaram. Multidão mesmo só em Porto Alegre, na Esquina Democrática, com milhares vestidos de vermelho para defender o ex-presidente neste momento.
Muitos que apoiaram a queda de Dilma no passado recente já não escondem ressentimento. Há uma angústia visível diante do julgamento do TRF-4 sobre o suposto crime de Lula de ter sido beneficiado pela OAS com um tríplex no Guarujá. “Tirar o Lula da eleição é um golpe”, diz Luis, de São Paulo, que apoiou o impeachment. “É uma total palhaçada”, diz Lucia, de Natal, que votou em Aécio em 2014. A sensação é que a bola já está cantada e o resultado já é sabido antes do juízo. O mesmo que o teatro do impeachment na Câmara, a votação das denúncias contra Temer, o julgamento no Tribunal Superior Eleitoral, que também salvou o presidente…
Uma amostra de que esse incômodo era crescente ficou patente na queda da popularidade do juiz Sergio Moro, retratada em pesquisas de opinião do instituto Ipsos. A percepção de injustiça passou por ele, que condenou Lula a 9 anos e meio de prisão em julho do ano passado. Desde então, seu ibope vem caindo. Em dezembro, por primeira vez, o número de pessoas que desaprovam Moro – 53% – superou os que o aprovam.
Pois Lula candidato também se beneficiou desse incômodo generalizado, ao ver os índices de rejeição caírem e seu apoio para que volte à presidência crescer. A despeito de quem viu provas circunstanciais muito fortes para confirmar a condenação de Lula, como a ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon, o Brasil atual passou recibo de um quadro deformado e cheio de sombras às vésperas da eleição. Talvez Lula já fizesse esse cálculo e por isso viu na candidatura seu caminho para salvar sua reputação.
Ironicamente, a classe política que apoiou e sentenciou sua queda à espera de herdar seus votos vive um revés que já havia sido previsto pelo cientista político Rudá Ricci em artigo para este jornal no dia 30 de agosto de 2016. “A direita que hoje celebra a queda de Rousseff será rechaçada outra vez. O Brasil é um país rico onde a maioria da população é pobre. Não há política liberal que sustente essa matemática. Desta forma, a esquerda, que hoje se vê acossada, voltará em 2018”, sentenciava Ricci.
No Brasil do absurdo e de uma justiça que não parece para todos, Lula deve sair como vítima. Beneficia-se também da percepção de que os nós da democracia não estão sendo desatados. Muito pelo contrário, ganha mais um indigesto fantasma neste dia 24. Estende-se o ressentimento sobre a vulgaridade que dominou o país e mostra qua há um caminho muito mais longo do que se esperava para alcançar uma sociedade mais sadia.