Ao redor do mundo, uma onda de remunicipalização tem devolvido às mãos públicas os serviços de água – na grande maioria das vezes, após décadas de má gestão privada.
No Le Monde Diplomatique, por David Boys – A despeito disso, a ONU e muitos governos ainda parecem convencidos de que precisamos de Parcerias Público-Privadas (PPPs) e de financiamento privado para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs). Mesmo com evidências de que a crise da privatização esteja aumentando, eles continuam enganados pelas falsas promessas das PPPs.
Basta olharmos para o colapso de muitas privatizações no Reino Unido. Até mesmo o seu secretário do Meio Ambiente, o conservador Michael Gove, tem atacado o comportamento dos serviços de água privatizados. Recentemente, Gove destacou como o altíssimo preço das tarifas, as manipulações financeiras e a evasão fiscal são endêmicas; os dividendos dos acionistas engolem a maioria dos lucros; e os CEOs pagam a si mesmos salários exorbitantes. E isso vindo do partido de Margaret Thatcher.
Um relatório recente publicado pela Internacional dos Serviços Públicos (ISP) e pelo Instituto Transnacional (disponível em inglês e espanhol) mostra que, desde 2000, houve pelo menos 235 casos de remunicipalização da água em 37 países, afetando mais de 100 milhões de pessoas.
No Brasil, há o caso de Itu, no interior do Estado de São Paulo, onde ocorreu a remunicipalização do serviço de água e saneamento após oito anos de gestão privada (2007-2015), que causou o maior racionamento e um levante popular sem precedentes na história da cidade.
Apesar desse exemplo, o Brasil caminha na contramão do resto do mundo. A privatização do serviço de água, sob o formato de concessão ou PPP, e a autorização de captação desse bem em larga escala por grandes empresas, têm sido comuns em todo o país. Em muitos lugares, tais práticas têm causado revoltas populares, como em Correntina, no oeste da Bahia.
Talvez não à toa acontece neste momento em Brasília o Fórum Mundial da Água, organizado pelo governo federal e pelo Conselho Mundial da Água, organização vinculada a grandes empresas privadas de todo o mundo. O próprio Fórum é patrocinado por corporações como Coca-Cola, Nestlé e Ambev.
Como contraponto ao “Fórum das Corporações”, acontece paralelamente, também em Brasília, o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), promovido por organizações sociais, ambientalistas e sindicais de todo o mundo e que defende o acesso à água como um direito humano. Nesse sentido, a retomada do controle público sobre esse bem é fundamental.
Mas, o que está levando a essa tendência mundial de remunicipalização?
As motivações para acabar com a privatização no setor de água incluem economia de custos, melhor qualidade do serviço, transparência financeira e a recuperação tanto da capacidade operacional quanto do controle social. Os objetivos ambientais, como o aceleramento do desenvolvimento renovável ou a redução do desperdício, são outros fatores principais. E, é claro, o fornecimento de tarifas sociais para famílias de baixa renda (já que muitas não podem pagar as altas contas de água e luz) é outra razão-chave.
Além disso, há evidências empíricas crescentes de que a remunicipalização em todo o setor público faz sentido econômico. O término das PPPs no transporte em Londres resultou em uma redução de custos de 1 bilhão de libras, principalmente por meio da eliminação de dividendos e honorários advocatícios. No Canadá, depois que o governo decidiu construir quatro novas escolas por meio de provisão pública – e não através de PPPs –, as economias com isso foram suficientes para construir mais uma nova quinta escola.
No entanto, a infeliz realidade é que mais de 1 bilhão de pessoas permanecem sem acesso à água potável. Em 2015, a ONU endossou o acesso universal à água até 2030 como um dos seus Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Como podemos garantir que nossos operadores públicos de água possam atingir essa meta?
Precisamos exigir um sistema fiscal global mais justo, para que possamos investir em infraestrutura essencial, como as modernas empresas de serviços de água. O fracasso em fazê-lo pode levar a consequências devastadoras, como no caso de Flint, em Michigan, em que o corte de custos aliado a um forte corte nos impostos das empresas levou ao envenenamento de milhares de pessoas (principalmente pobres). Outro passo fundamental é remover os serviços públicos dos acordos comerciais, que muitas vezes penalizam os governos por atuarem em nome do interesse público. Finalmente, as Parcerias Público-Públicas entre os serviços públicos de água podem ajudar a compartilhar as melhores práticas e recursos.
A mudança da maré no debate sobre a privatização é uma notícia mais do que bem-vinda para os trabalhadores do serviço público, para os sindicatos e para o público em geral. Precisamos, agora, convencer os nossos líderes globais a seguir a onda.
*David Boys é secretário-geral adjunto da Internacional de Serviços Públicos (ISP), federação mundial de sindicatos que representa 20 milhões de trabalhadoras e trabalhadores que prestam serviços públicos essenciais em 163 países.