Um caixão de pinho está barato.
Por Mauro Santayana – Custa pouco mais de 500 reais, embora o Campo da Esperança – nunca um nome foi tão apropriado – informe que houve reajuste na tabela e o preço do jazigo de uma gaveta tenha saltado de R$ 638,50 para R$ 668,89 e que a locação de uma capela para velório padrão 1 – o que quer que queira dizer isso – passará a custar R$ 253,34 e não mais R$ 241,83.
Considerando-se a condição física e de saúde da falecida, podem também servir, à moda nordestina e graciliana, apenas alguns sacos – que poderão ser costurados por quem a isso se habilite – desses que se encontram, todas as manhãs, nas caçambas de lixo, desde que não tenham sido furados pelos ratos e pelos pombos que ali comparecem para tomar a sua primeira refeição ao amanhecer.
Ou se pode, quem sabe, fazer uma vaquinha, se alguém se habilitar a comparecer e enfiar a mão no bolso.
Ou lançar na internet uma campanha de financiamento coletivo, dessas de modestíssimo orçamento e prazo mais curto ainda, limitado pela premência do objetivo e das circunstâncias, de não mais de meia hora, por favor.
O importante, da parte de quem com ela conviveu; de quem um dia a defendeu; de quem a ajudou na sua volta; depois da prisão e do exílio, ao Brasil; de quem vibrou a cada passo que ela dava, enquanto crescia, mais uma vez, no coração do povo, depois de pisoteada e conspurcada nos anos de chumbo; de quem tentou avisar, pregando no deserto, que ela iria novamente para o saco, devido à irresponsabilidade golpista e às hesitações, equívocos e à inação estratégica da esquerda, principalmente na internet e no campo da comunicação; é que ela não fique sem enterro, ou jogada em uma vala comum, como indigente, embora, usando certa licença poética, fosse, digamos, mais democrático ou mais justo com tantos que morrem anonimamente, neste país, que seu cadáver fosse apenas desovado, na calada da noite, no meio do mato, nos muitos cemitérios clandestinos que cercam as metrópoles brasileiras.
Usando o Whats App, que é mais barato, é preciso que se comunique ao mundo, e à família, incluídos aqueles primos distantes que por canalhice ou covardia não irão aparecer no enterro, que a Democracia morreu ontem, pouco depois da meia noite, depois de vários atentados e longa perseguição e sabotagem que durou mais de 10 anos, no plenário do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Não foi por falta de aviso.
O julgamento do mensalão, com a importação e adaptação calhorda da Teoria do Domínio do Fato, para dar vida a uma denúncia feita por ladrões apanhados roubando nos Correios, para implementar a transmutação mentirosa de um esquema até então legal de financiamento de campanha no “maior escândalo da História do Brasil” foi o primeiro deles.
As famigeradas Jornadas de Junho, ao estilo Primavera Árabe, imediatamente infiltradas por golpistas e defensores dos assassinatos e torturas da ditadura, e de uma intervenção militar, foram o segundo.
Houve também o Golpe no Paraguai, contra Lugo.
A primeira votação do impeachment de Dilma e a segunda.
O primeiro julgamento de Lula e o segundo.
E agora o terceiro, promovido por um esquema jurídico que aceitou distorcer, de fato, a interpretação de suas leis e a essência da Constituição, para impedir a qualquer custo a candidatura de um cidadão que está em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de voto e a sobrevivência política de sua agremiação partidária.
O republicanismo pueril e a adoção, por um governo de esquerda, de novas leis fascistas, depois de cair no conto do vigário do combate à corrupção, também deveriam ter servido de alerta de que estávamos encampando a arbitrariedade e a hipocrisia e nos encaminhando para um regime cada vez mais nefasto, perigoso e infame.
Na ânsia de acalmar a cadela de Brecht – o monstro insaciável do fascismo – fomos levando, qual Abraão para o holocausto, filho por filho, cedendo, como a Chapeuzinho Vermelho indo para a anunciada e inexorável cena na casa da Vovó, a cada vez que era abordada pelo lobo no caminho.
Sempre acreditando, com uma ingenuidade – ou arrogância, o que não deixa de ser a mesma coisa – dignas de piedade, que o caçador e a salvação iriam aparecer depois da próxima curva.
Now Ines is dead.
A partir do Lulaço de ontem – como deverá ficar conhecido na história brasileira – fica decretado e totalmente estabelecido e sancionado pela maioria dos Ministros da Suprema Corte que qualquer cidadão pode ser condenado sem provas a mais de 12 anos de prisão em regime fechado, com base na mera delação de desafetos ou de investigados presos prévia e “provisoriamente” por semanas ou meses.
Pelo testemunho, sem provas tangíveis, de quem a isso foi obrigado pela pressão dos acusadores e a imperiosa motivação de recuperar – ainda que de tornozeleira – sua liberdade.
Que não poderá um cidadão – ou melhor, sua mulher – desistir, no meio do caminho, da compra de um apartamento, que apesar disso ele será considerado – apesar de não ter nenhuma escritura em seu nome – seu proprietário.
Mesmo que esse bem tenha sido publicamente usado e indicado como garantia em negócios, dívidas e contratos, pela construtora que ergueu o empreendimento.
Que bastará, sem fundamento, a confirmação automática de uma injustiça em segunda instância, para que, no lugar de ser corrigida, ela seja reiterada e o cidadão vá para a prisão, inapelavelmente.
Em um país em que há cem milhões de processos em andamento e 40% dos cidadãos que se encontram atrás das grades são presos provisórios, na maioria das vezes sem acesso a qualquer tipo de assistência jurídica.
Fica, ainda, complementar e paralalemente estabelecida, a prevalência de uma tal de “jurisprudência democrática”, a Lei Pilatos, o iudex vulgus.
Bastando para a prisão do cidadão, ainda sem trânsito em julgado, que a turba se junte nas ruas para escolher entre Barrabás ou Cristo.
Fazendo “justiça” na base do coro irracional dos latidos babosos cheios de perdigotos de ódio e hipocrisia.
Para, como nos mais reles linchamentos no início do século passado no sul dos Estados Unidos, prelibar o ruído da quebra do pescoço do “bandido”, procurando, com um pedaço de corda na mão e um brilho sádico e concupiscente nos olhos, a árvore ou o poste em que se dará a execução.
Como certas flores do deserto, que só merecem florescer por curtos períodos, de décadas em décadas, a democracia brasileira está, mais uma vez, morta.
É preciso que algum amigo comunique o fato ao Instituto Médico Legal, para que seu corpo seja recolhido da frente do prédio da Suprema Corte e não comece, com o avanço das horas e da putrefação, a incomodar seus augustos ministros e os ilustres vizinhos do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional.
Aqueles que amam a Pátria e a Liberdade precisam enterrar, sem mais delongas, ilusões e falsas esperanças o seu cadáver.
E tomar vergonha na cara e organizar, rapidamente, em sua memória, com equilíbrio e lucidez, uma frente ampla e democrática, para combater nas urnas os demônios do fascismo, que já começam a sobrevoar, em círculos, como abutres, a Praça dos Três Poderes, atraídos pelo odor da carcaça em decomposição.