Na BBC, por Joao Fellet – A última erupção do conflito em Gaza, com a morte de dezenas de palestinos que protestavam contra a transferência da embaixada americana para Jerusalém, sinaliza a recusa das autoridades dos dois lados em resolver um impasse que se arrasta há décadas, diz à BBC Brasil o rabino Nilton Bonder, da Congregação Judaica do Brasil.
Conforme a solução é postergada, Bonder afirma que crescem as chances de que a criação de um Estado palestino se torne inviável e de que palestinos passem a viver num regime de apartheid dentro de Israel – o que colocaria em xeque a existência do Estado judeu.
“A paz é importante para a sobrevivência de Israel a longo prazo”, diz o rabino, famoso por sua posição mais progressista.
Formado em Engenharia e Literatura Hebraica pela Universidade Columbia, nos EUA, Bonder ordenou-se rabino em Nova York, em 1986. Desde então, tornou-se um dos líderes religiosos brasileiros com maior projeção internacional, autor de 21 livros traduzidos para várias línguas.
Seu bestseller A Alma Imoral foi adaptado pela dramaturga Clarice Niskier para o teatro e inspirou um documentário que Bonder está produzindo com o cineasta Silvio Tendler. Outra obra, Exercícios d’Alma, rendeu-lhe em 2000 o prêmio Jabuti na categoria religião.
Nascido em Porto Alegre há 60 anos e radicado no Rio de Janeiro desde os seis, Bonder também ganhou visibilidade no meio religioso por suas posições progressistas em temas morais. Favorável à descriminalização do aborto e ao casamento gay, tornou-se alvo de críticas e ressalvas entre grupos de judeus mais conservadores, com quem diz ter uma relação por vezes tensa.
Como no judaísmo rabinos não estão subordinados a um órgão hierárquico central como o Vaticano e têm relativa autonomia, diz se sentir à vontade para continuar difundindo suas ideias, desde que siga legitimado por sua comunidade.
Bonder recebeu a BBC Brasil na tarde de terça-feira no Midrash, centro cultural que dirige no Leblon, bairro nobre do Rio. Confira os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil – Conversamos enquanto palestinos enterram mais de 50 pessoas que foram mortas nos últimos dias por forças israelenses ao protestar em Gaza. Qual sua visão dos eventos?
Nilton Bonder – Acho uma tragédia e um horror pelo número de mortos. É um evento cíclico. Já houve dois levantes suicidas de Gaza. Este é o terceiro. Por um lado, é uma tentativa de invasão de um país. Não é uma caminhada pacífica, independentemente de ser meritória ou não.
E tem obviamente uma resposta muito violenta. A pergunta é: como não fazer isso? O Exército de Israel tentou conter a invasão de outras formas. Mas, não tendo resultado, fizeram algo para evitar algo que talvez fosse até maior. Se os palestinos invadissem, que tipo de confronto haveria? Para mim, o mais grave é que a solução do conflito israelense-palestino continua sendo postergada.
BBC Brasil – Críticos dizem que Israel agiu com força desproporcional.
Bonder – A Palestina está nas mãos de Israel, que é uma nação muito mais poderosa. Mas a condição de Israel não é tão simples. Nenhum país abre mão de sua segurança. Veja a situação na Síria. Aquele país foi pulverizado. Não há como tirar isso da cabeça de quem mora em Israel. O Líbano, basta um sopro e ele desmonta. A Jordânia, idem.
BBC Brasil – Não há exagero em comparar a situação na Síria com a de Israel, uma potência nuclear apoiada pelos EUA?
Bonder – O problema de Israel não é o desaparecimento, a fragmentação total, mas ficar nesse lugar de ser posto na parede. É um país cercado por hegemonias. Turquia e Irã são duas potências regionais reais. Poucas décadas atrás, havia discursos e tentativas de tornar Israel um inimigo comum. Isso não é uma fantasia.
BBC Brasil – O senhor escreveu que a paz se alcança com o equilíbrio entre compaixão e severidade. Tem faltado compaixão e sobrado severidade a Israel?
Bonder – Minha preferência é que houvesse mais determinação por compaixão. Manter sob controle uma população (palestina) é sempre uma violação de direitos humanos. Mas as ações dentro de Israel não são excessivamente brutas com o intuito de dominar. Elas são uma percepção muito clara de que, se você não falar alto numa região onde a cultura é machista, você dança. É um mundo que não é a Europa.
BBC Brasil – Como avalia a decisão dos EUA de mudar sua Embaixada para Jerusalém?
Bonder – Entendo que entre muitos países haja um desejo de que o status de Jerusalém não fique totalmente determinado e esteja resguardado para uma negociação de paz entre dois Estados. Por outro lado, do ponto de vista israelense, Jerusalém foi o ponto focal do sonho judaico. A capital não ser Jerusalém seria quase um absurdo, um atendimento a um olhar externo que nenhum país soberano faz.
Essa questão tem legitimidade e deveria avançar por algum processo próprio, sem que, ao reconhecê-la como capital, os países estivessem forçosamente definindo um status definitivo para a cidade. A mudança da Embaixada americana para Jerusalém não inviabiliza conceitualmente que também possa existir uma Jerusalém capital palestina, no lado oriental, e uma futura embaixada americana lá. O grande problema é que Trump dá esse passo de maneira quase provocativa, com uma retórica muito assertiva. É uma estratégia muito comum na direita: criar fatos muito claros para possibilitar negociações.
BBC Brasil – Alguns veículos jornalísticos nos EUA levantaram a hipótese de que, ao transferir a Embaixada, Trump estivesse na verdade atendendo a demanda de um judeu americano que fez uma grande doação à sua campanha.
Bonder – Acho uma visão um pouco folclórica. Está muito mais em jogo o interesse político do Trump em se reeleger. Tenho que reconhecer que, apesar de fazer tudo politicamente errado, ele tem se mostrado genial no que tem feito. Porque, por métodos que considero totalmente equivocados e colocando em risco conquistas internas e externas da sociedade americana, ele tem se mostrado bastante eficiente.