Ódio em sala de aula: qual a responsabilidade das universidades?

Ódio em sala de aula: qual a responsabilidade das universidades?

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“Aquela vagabunda, entendeu? Defensora de aborto, de gênero. Vagabunda. E ai dela, que mande me processar, que eu provo que ela é”. Há quase dois anos, uma aula de Direito das Sucessões se iniciava assim na Universidade Federal de Rondônia. Quem falava era o professor da disciplina, Samuel Milet. A referência era a uma pesquisadora e advogada, que na semana anterior havia sido recebida pela instituição para uma palestra, Sinara Gumieri.

Em vez de um livre debate de ideias ou de exposição da matéria do dia, as estudantes foram submetidas a quinze minutos de intolerância e discriminação. “Bostinha, cocô” e “sapatona muito doida” foram outras das ofensas usadas para humilhar a colega de profissão. Tudo foi gravado em áudio por orientação do professor. Não havia constrangimento, mas seu revés: desejo de que a ousadia das ofensas fosse registrada e pudesse ser replicada. De fato o dito extrapolou as dependências da faculdade, foi às redes sociais, às redes de televisão, e agora chega pela primeira vez ao juizado federal especial do Distrito Federal.

Nos próximos dias, o juizado terá oportunidade de dizer que o ódio não tem lugar em sala de aula. A peça de ação indenizatória por danos morais, com pedido de retratação, é movida por Gumieri e suas advogadas contra Milet e a Fundação Universidade de Rondônia. A tese é simples: não há dúvidas de que houve ofensa de bases discriminatórias, por razão de gênero (ao chamá-la vagabunda), de orientação sexual (ao supor sua identificação e referir-se a ela de maneira pejorativa, “sapatona doida”) e de vinculação política (novamente, ao supor filiação partidária e atacá-la por isso, “odeio petista”).

As agressões verbais têm por objetivo intimidar uma mulher na defesa das suas ideias e exposição pública de suas pesquisas. Em nada se confundem com liberdade de expressão, já que não se justificam pela defesa de um argumento contrário, mas se resumem a desqualificar e ferir publicamente a imagem de quem, para o professor, não é bem-vinda no espaço que ocupou.

Mas não é só. O local onde as agressões ocorreram não é indiferente à gravidade da ofensa, por pelo menos duas razões. A primeira é que, se o objeto do discurso odioso era Sinara Gumieri, a audiência imediata era uma turma de jovens estudantes de graduação, submetidos à autoridade do professor que os obrigava a ouvir as palavras virulentas. A aluna que grava é confrontada com hostilidade. Em pelo menos dois momentos, outros estudantes pedem para que o professor pare e são ignorados. Não há como seguir o argumento apresentado pela defesa de Milet, que tenta sustentar a postura do cliente como manifestação “pessoal” e não investida de sua posição de professor.

Milet era o representante do Estado naquela sala de aula, com responsabilidade pedagógica pelo poder que ostenta. Não há dúvidas do que seu discurso implica: que qualquer um, e especialmente qualquer uma que exibisse ideias e performance diferente de seus ideais podia ter a mesma expectativa de violência. É o exato oposto do que se deve esperar em relações de ensino e aprendizagem.

A segunda razão é decorrência da primeira. Também para a vítima direta das ofensas, o local do discurso importa. As faculdades de direito e os eventos acadêmicos são os espaços onde exerce seu trabalho. O ódio não permite que deles participe em condição de igualdade e livre de perseguição, e os autos do processo mostram o efeito que o episódio teve em sua saúde. Essas duas razões juntas compõem a sensibilidade com que o caso precisa ser encarado. Os efeitos do dito se estendem no tempo e no espaço: o ódio em sala de aula tem potencial multiplicador na carreira de quem foi ofendida, mas também dificulta que outras Sinaras Gumieris se formem.

É por isso que ação proposta ao juizado especial acerta em também demandar a responsabilização da Fundação Universidade de Rondônia para a reparação do dano. Há responsabilidade objetiva, nos termos simples da lei, pelo dano causado por um agente público em exercício de suas funções.

Para além desse entendimento, que já seria suficiente, há um sentido denso de responsabilidade pedagógica da Universidade em garantir medidas efetivas de retratação e não-repetição. Essa é da lição mais valiosas que esperamos aprender nesse caso, que de outro lado já deixou tanto rastro de anti-pedagogia: que as universidades assumam o dever de construir espaços de crítica e pensamento, diversidade e não-discriminação. Livres do ódio, muito se ensina e tudo se aprende.

GABRIELA RONDON – Pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

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