P. Na Europa ainda não é tão habitual que os Governos empreguem a inteligência artificial para tomar decisões. Que impacto isso está tendo nos Estados Unidos?
R. A imprensa noticiou em março como a Administração está usando um algoritmo para decidir em quais casos uma pessoa deve receber assistência domiciliar. De repente foram cortadas muitas dessas ajudas, e idosos que vinham recebendo cuidados em casa durante anos ficaram sem eles. O que tinha mudado? O algoritmo não levava o contexto em conta e tomava más decisões. Ninguém tinha avaliado o sistema para ver quanta gente ficou de fora. Foi um escândalo nos Estados Unidos. É um exemplo de um sistema aplicado sem a pesquisa suficiente. As pessoas com menos recursos econômicos e menos nível educacional são as que estão sofrendo primeiro.
P. Os Governos deveriam tornar públicos esses algoritmos?
R. Em um dos relatórios que publicamos no ano passado no AI Now Research Institute, lançamos uma recomendação crucial: que os Governos deixem de usar sistemas algorítmicos fechados. Teriam que permitir a especialistas independentes auditar essas fórmulas para detectar onde estão as fraquezas, os vieses. Essa parte é muito importante para assegurar a igualdade de oportunidades. Percebemos que até esse momento ninguém tinha publicado nenhuma pesquisa sobre esse tema, não havia nenhum guia. Montamos uma equipe de especialistas em direito, engenharia, ciências da computação e sociologia e elaboramos um mecanismo para ajudar os Governos a desenvolverem um sistema transparente que permita aos cidadãos conhecer os detalhes, se seus dados foram processados de forma correta. Se não, nunca saberão como foi tomada uma decisão que afeta diretamente a sua vida, o seu dia a dia.
P. Vocês já provaram seu método contra os vieses com alguma administração?
R. Estamos testando com a prefeitura de Nova York, é a primeira cidade a implementar isso nos Estados Unidos. Estamos medindo como os algoritmos afetam os cidadãos. Também apresentamos o projeto na Comissão Europeia e na Espanha, onde em um mês sairá o primeiro relatório sobre as consequências da IA, encomendado pelo Ministério a um comitê de especialistas. A Europa chegou tarde ao jogo, e por isso tem que aprender com os erros dos Estados Unidos e da China, países onde a aplicação da IA na tomada de decisões pública está mais avançada.
P. E as empresas como o Facebook, deveriam ser obrigadas a torná-los públicos?
R. Olhar os algoritmos do Facebook ou do Google não nos ajudaria. São sistemas gigantescos e complexos, com centenas de milhares de algoritmos operando ao mesmo tempo, e estão protegidas pelo segredo industrial. Os Governos não vão usar esses algoritmos, vão criar sistemas públicos, e por isso devem ser abertos e transparentes. Talvez não para o público em geral, mas para comissões de especialistas independentes.
P. A inteligência artificial está cada vez mais presente nos processos de seleção das empresas. A que tipo de perfis essa tecnologia prejudica?
R. Nos Estados Unidos há uma nova empresa, a Hirevue, que recruta novos perfis para companhias como Goldman Sachs e Unilever usando inteligência artificial. Durante a entrevista, você é gravado e tem 250.000 pontos do seu rosto monitorados, para que depois analisem suas expressões. Com esses dados determinam se você será um bom líder ou se será ou não honesto. Também estudam o tom de sua voz e definem padrões de comportamento. Não podemos assumir que sabemos como é alguém por suas expressões, não existe uma base científica. No século XIX popularizou-se a frenologia, que se baseava em decifrar aspectos da personalidade a partir de uma análise do rosto. Outro ponto perigoso é que as empresas procuram pessoas que se pareçam com seus atuais funcionários, e o impacto disso na diversidade é tremendo. Estão criando monoculturas.
P. Acha que chegou a hora de desmitificar algumas crenças sobre a inteligência artificial, como que as máquinas poderão ter consciência? Quanto mal alguns gurus estão causando?
R. É uma terrível distração dos verdadeiros problemas que a IA gera atualmente. Habitualmente, são os homens mais ricos e poderosos do Vale do Silício os que mais temem a Singularidade, a hipotética rebelião das máquinas, porque não têm outra coisa com que se preocuparem, da qual sentirem medo. Para o resto de nós, os temores são como vou conseguir um emprego, como vou chegar no final de mês e pagar meu aluguel, ou como pagar meu plano de saúde. Pensar que as máquinas vão ter sentimentos é um mal-entendido, é não ter ideia de como funciona a consciência humana, que é impossível que uma máquina replique. Temos corpo, conexões muito complexas, que não são só impulsos cerebrais. Somos corpos em um espaço, vivendo em comunidade e em uma cultura. As pessoas veem a palavra inteligência artificial e acham que estamos criando inteligência humana, quando o que estamos fazendo é desenhar padrões de reconhecimento e automatização. Se chamássemos de automatização artificial, o debate mudaria totalmente.