Aretha Franklin teve uma fase extraordinária, mas depois seus dotes foram desperdiçados
No El País, por DIEGO A. MANRIQUE
Esta história da Aretha Franklin ocorre num hotel de luxo nova-iorquino. A cantora entra no saguão, com suas joias e seu casaco de vison; saiu para fazer compras e segura contra o peito uma sacola grande de papelão. De repente, a sacola arrebenta e seu conteúdo se esparrama pelo piso encerado. Funcionários e clientes ficam horrorizados. São miúdos de animais: tripas, focinhos, orelhas, pés de porco. Como se não fosse com ela, Aretha continua andando até o elevador e, sem olhar para trás, sobe para sua suíte.
Nesse relato intuímos a verdadeira Aretha. Uma estrela capaz de se dedicar a cozinhar a saborosa comida do sul dos EUA, a chamada soul food, em um hotel de Manhattan. E também a diva altiva, preparada para ignorar os desastres causados por seus modos imperiais. O apreço pelo autêntico revela a profundidade de suas raízes, esse poço de gospel ancestral – sem esquecer o blues – que ela utilizava para exorcizar suas dores íntimas.
E havia também a superestrela. Ela usava suas exigências como lembretes da sua natureza sobre-humana. Inimiga do ar condicionado, fazia sofrerem os privilegiados que haviam pagado quantidades absurdas para vê-la ao vivo. Sua fobia de avião era a desculpa perfeita para frustrar os empresários europeus, que alegavam inutilmente que também era possível cruzar o Atlântico de navio.
A Europa sempre foi uma solução para artistas afro-americanos em momentos delicados da sua carreira. Mas Aretha não procurava a respeitabilidade dos palcos britânicos e franceses. Ela jogava em outro time, o do show business norte-americano, em tempos nos quais eram poucas as mulheres que aspiravam à Primeira Divisão. A rivalidade se estabelecia em cifras de vendas, condições dos contratos, honras oficiais, inclusive em aspectos intangíveis que só elas podiam avaliar.
Entretanto, não se discutiam os méritos musicais. E é possível que nisso também Aretha levasse vantagem. Conforme reconheceu Jerry Wexler, um dos hipsters da Atlantic que pilotaram seu grande lançamento em 1967, ela era perfeitamente capaz de produzir-se a si mesma, e de fato o fez em muitas de suas gravações. Só que Wexler e companhia não lhe davam crédito, supostamente para que não lhe subisse à cabeça.
Uma desculpa péssima, que oculta a luta por royalties de produção e o desejo inconfessável de se aproveitar das inseguranças de Aretha. Como qualquer outra cantora, ela necessitava de desafios e de competidores musicais à sua altura, como evidenciou em Sparkle, o LP de 1976 no qual colaborou com Curtis Mayfielfd.
A partir de 1980, depois de sua contratação pela Arista, Aretha se habituou ao automatismo de trabalhar com produtores acomodados, como Narada Michael Walden, Luther Vandross e Michael Powell – que dizia ter o segredo do sucesso: bastava que ela entrasse com sua voz monumental. Era o início da era dos duetos, que caíam nas graças dos programadores das rádios e geravam sucessos meia-boca. Pode-se sonhar que algum dia montarão um tribunal de Nuremberg para julgar os responsáveis por juntá-la com Puff Daddy e Kenny G.