A imigração venezuelana para o Brasil e o desafio do combate à xenofobia

A imigração venezuelana para o Brasil e o desafio do combate à xenofobia

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No DCM, publicado originalmente no Consultor Jurídico (ConJur – O artigo é de 9 de abril de 2018, mas é republicado agora depois que 1200 venezuelanos deixaram Roraima com ataques de brasileiros. A violência ocorre depois de um suposto assalto na região

Como é de conhecimento nacional, com o agravamento da situação política e econômica da Venezuela, milhares de pessoas estão migrando para o Brasil, através da fronteira terrestre da cidade de Pacaraima (RR), no extremo norte do país.

Consequentemente, o estado de Roraima passa por uma crise inesperada e inigualável e se vê num drama humano sem precedentes: como receber milhares de estrangeiros, oferecer a eles serviços de educação e saúde pública, acomodação, alimentação, higiene e, quiçá, um emprego sem impactos significativos na vida dos roraimenses?

Um exemplo é o caso dos serviços de saúde pública: o número de atendimentos médicos a imigrantes em Roraima, no período de três anos, aumentou 1.880%, passando de 760 em 2015 para mais de 15 mil em 2017. Até mesmo venezuelanos que não pretendem migrar chegam a viajar 12 mil km para atendimento médico no Brasil, tendo em vista a precariedade desse serviço e a falta de medicamentos naquele país[1].

Os abrigos de Boa Vista não são suficientes, e imigrantes acampam ou dormem ao relento em praças e calçadas. Há muitos venezuelanos nos semáforos locais com cartazes pedindo dinheiro e emprego; não raro, famílias inteiras. Igrejas, organizações não governamentais, empresários e inúmeros roraimenses se desdobram num esforço hercúleo para oferecer algum alimento, mas a demanda é crescente, e o desafio se avoluma.

Partindo-se dessa contextualização, focos específicos com forte sentimento de hostilidade surgiram em redes sociais e grupos de aplicativos de mensagens com teor xenofóbico e racista. Muitos passaram a culpar os imigrantes pela insuficiência de recursos na educação, saúde e segurança.

Essa onda virtual ganhou repercussão local e chegou a marcar uma manifestação em frente a uma praça de grande aglomeração de venezuelanos para protestar contra eles. O Ministério Público de Roraima requisitou a instauração de inquérito policial e iniciou uma campanha de conscientização, buscando esclarecer à população sobre o discurso de ódio contra imigrantes e suas consequências jurídicas. Posteriormente, houve um expressivo arrefecimento e muita gente passou a postar mensagens contra o racismo.

A temática do combate ao discurso de ódio (hate speech) é internacional, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seu artigo 2º assegura o direito de não ser discriminado por motivo, dentre outros, de origem nacional.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos, no artigo 10.2, deixa claro que a liberdade de expressão implica deveres e responsabilidades e é passível de restrições, não sendo, portanto, um direito absoluto, como, aliás, nenhum outro direito o é.

O Conselho da Europa (Concil of Europe) descreve o hate speech como sendo “um termo usado para descrever amplamente discursos negativos que constituam uma ameaça à paz social”[2]. Diz ainda que “o discurso de ódio abrange toda forma de expressão que dissemine, incite, promova ou justifique ódio racial, xenofobia, antissemitismo ou outras formas de ódio baseado na intolerância”[3]. Destaca também o Concil of Europe que, com o desenvolvimento de novas formas de mídias, tem surgido o hate speech em espaços on-line, o que requer reflexões mais profundas e ações para regulamentação e combate[4].

Por fim, a Recomendação (97) 20[5] do mesmo Conselho da Europa admoesta os Estado-membros a combaterem o discurso de ódio e revisarem suas legislações nesse sentido.

Na América Latina, apesar da multiculturalidade de seus países, os exemplos de combate ao discurso de ódio são tímidos, como no caso do Chile, cuja Lei Sobre as Liberdades de Opinião e Informação e o Exercício do Jornalismo, em seu artigo 31, sujeita a multa quem fizer publicações e transmissões “destinadas a promover o ódio ou hostilidade a respeito de pessoas ou coletividades em razão de raça, sexo, religião ou nacionalidade”[6].

No Brasil, dispositivo constitucional previsto no artigo 5º, inciso XLII prevê que o racismo é crime inafiançável e imprescritível, e a Lei 7.716/89 prevê os crimes resultantes de discriminação ou preconceito por motivo de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Destaca-se o artigo 20 dessa lei que tipifica a conduta de praticar, incitar ou induzir o racismo, qualificada se for por meio de comunicação social ou publicação (pena de 2 a 5 anos e multa). Há ainda o artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal, que criminaliza a injúria por elementos discriminatórios.

O Supremo Tribunal Federal brasileiro também já enfrentou a questão no julgamento do Habeas Corpus 82.424, publicado em 19/3/2004, no qual o ministro Celso de Melo, em seu voto, expressou que “aquele que ofende a dignidade de qualquer ser humano, especialmente quando movido por razões de cunho racista, ofende a dignidade de todos e de cada um”[7].

Com a universalização da internet, redes sociais e aplicativos de comunicação em massa, o desafio atual envolve a educação e repressão aos crimes decorrentes do discurso de ódio. O exemplo do episódio de racismo on-line contra os venezuelanos demonstra que mesmo um povo acolhedor, como o brasileiro, e um estado de tradicional recepção calorosa aos que chegam, como Roraima (formado majoritariamente por migrantes), podem sofrer focos de xenofobia, mormente quando alguns não entendem que o imigrante está a sofrer duas vezes, por abandonar seu país e sobreviver numa terra que lhe é estranha.

Portanto, não podemos fechar os olhos à ameaça do racismo e da xenofobia, e as novas tecnologias constituem um desafio para os operadores do Direito; há que se educar para prevenir e há que se reprimir para evitar a impunidade. Compete a cada um de nós levar adiante esta mensagem; cabe-nos fugir aos clichês do senso comum daqueles que dizem que aqui o racismo não existe, pois essa ameaça é real e nos espreita como uma doença perniciosa que, ao descuido, se dissemina, a corroer a beleza da convivência plural e da inclusividade como fator de enriquecimento cultural e humano.

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