POR LUIS FELIPE MIGUEL, professor de ciência política da UnB – Pensando bem, eu acho que posso sobreviver a uma era bolsonariana.
Eu sou homem. Sou hetero. Sou aquilo que no Brasil é chamado de branco.
Se eu não vestir minha camiseta vermelha, ninguém vai me agredir na rua.
Paro de falar de Brasil e volto a trabalhar só com teoria política. Talvez tenha que usar um ou outro eufemismo, mas, no geral, eles não vão mesmo entender o que estou dizendo.
Certamente vão cortar minhas verbas de pesquisa. Posso olhar pelo lado bom: é menos trabalho. Também vão cortar minha bolsa de pesquisador, mas isso eu compenso com o imposto que pagarei a menos depois da reforma tributária do Paulo Guedes.
Vou ver minhas turmas de estudantes minguando, conforme as políticas de inclusão forem desmontadas e as mensalidades passarem a ser cobradas. Também é trabalho a menos. A universidade vai ficar mais cinza, mais silenciosa, mais morta, mas eu sempre posso me refugiar na minha casa.
Minha casa que também ficará mais silenciosa e mais cinza. Alguns dos meus amigos não terão a mesma sorte que eu e sumirão: eles têm a cor errada, eles dirigem seus afetos para as pessoas erradas, eles falam as palavras erradas. Talvez seja até melhor. Nos tempos que virão, a amizade pode ser uma coisa perigosa.
Se os artistas forem silenciados, tanto melhor: há tanto dos clássicos que ainda preciso conhecer!
Não sei atirar, mas tenho dinheiro para comprar uma bela pistola, um coldre vistoso, e ostentar pela rua minha condição de cidadão de bem.
Sim, eu posso sobreviver. Ao contrário do que ocorre com muitos outros, não está em risco minha integridade física, minha vida ou minha sobrevivência material. Basta eu ficar no meu canto. Basta eu me tornar insensível ao sofrimento à minha volta. Basta eu trair as pessoas de quem gosto. Basta eu abrir mão da minha dignidade, da minha humanidade, da possibilidade de me encarar no espelho. Basta eu me tornar um monstro.