Opinião: O crescimento do fascismo no Brasil e os desafios da resistência

Opinião: O crescimento do fascismo no Brasil e os desafios da resistência

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O crescimento do fascismo no Brasil atual não é equivalente ao fascismo de Estado consolidado, tal como na Itália de Mussolini, apesar das semelhanças. Não obstante, a mentalidade fascista está presente, de forma cada vez mais explícita, tanto nos discursos e práticas de políticos e celebridades, quanto nos cidadãos comuns. Por isso, o fascismo de Estado torna-se uma ameaça concreta.

Por Vitor Cei

O que é fascismo? Grosso modo, fascista seria todo regime político autoritário, antidemocrático, nacionalista (“Brasil acima de tudo”), baseado na força, na censura e na supressão violenta da oposição (“vamos fuzilar a petralhada”). As características principais são as seguintes: culto ao líder (o mito); uniformização do vestuário (camisa da CBF ou do mito); existência de um inimigo ao qual atribuem todos os males do país (o PT); defesa da violência e do militarismo (“o erro da Ditadura foi torturar e não matar”); anti-intelectualismo (“Há uma certa tara por parte da garotada em ter um diploma”); pauta política única (segurança pública), ignorando as múltiplas necessidades da população; visão distorcida da tradição e defesa de um conceito único para ideias abrangentes como pátria e família; desprezo pelos Direitos Humanos; simplificação da linguagem (reduzida a frases feitas, gritos de guerra ou hashtags).

Nos livros Brasil em crise (Praia Editora, 2015) e O que resta das jornadas de junho (Editora Fi, 2017), nós mostramos o crescimento do fascismo no Brasil desde as jornadas de junho de 2013. Aquele movimento, apesar de difuso, se consolidou em algumas agendas com pautas que apontam para a crise do espaço público e o acirramento das lutas de classes, onde se produzem e se enfrentam posições heterogêneas e antagônicas. Constatamos que a ascensão do fascismo que vivemos hoje no país é resultado do niilismo político que deixou um vazio preenchido pelos agitadores da turba.

Você deve se lembrar da hashtag “#contra-tudo-isso-que-está-aí”, muito popular em 2013. Ela foi utilizada pelos niilistas: aqueles que não acreditavam em nenhuma proposta política, criticavam a tudo e a todos e adotavam o discurso de que ninguém poderia dar solução à sociedade brasileira atual. Essas pessoas estavam insatisfeitas com tudo, negavam tudo, queriam mudar tudo, mas sem saber bem como; negavam a esquerda, negavam a direita, negavam o governo, queriam mudança, mas não sabiam para onde. Os niilistas creem que todos os políticos são iguais – igualmente corruptos – e por isso não haveria saída para a crise.

Entre 2013 e 2016, víamos insatisfações de todo tipo nas ruas e redes sociais. Como se uma bolha tivesse estourado, os brasileiros tivessem finalmente olhado para a barbárie em volta e, aterrorizados, concluído que não estavam satisfeitos com o estado de coisas que aí está. Diante de tanta insatisfação, os niilistas apontavam o dedo para todos os políticos e todos os partidos. “Direita? Esquerda? Eu quero é ir pra frente!”, gritavam os coxinhas niilistas, especialmente nas manifestações de 2013.

Exemplar é o discurso do coletivo Anonymous Brasil, formado por pessoas que, segundo as palavras deles mesmos, no post disponível hoje como publicação fixada: “Não estamos aqui para defender posições consideradas de esquerda, direita, militarista, comunista ou socialista. Nós estamos aqui para promover a conscientização, e, a partir dela, a criação conjunta de um novo modelo organizacional mais justo com todos”. O detalhe é que eles não definem o que seria o modelo justo. Também merece menção a Página do Partido Militar Brasileiro no Facebook. Em 2014 podíamos ler comentários como o seguinte: “Manterei a minha cara de palhaço no perfil do Facebook até que o Brasil volte a ter o mínimo de decência que este vigente Regime Comunista nos subtraiu”. O detalhe é que nunca existiu Regime Comunista no Brasil. Hoje eles fazem campanha para um candidato que é militar.

Parafraseando Nietzsche, eu defino o niilismo político como o cansaço do povo brasileiro com a situação política do país. A visão da política agora cansa – o que é hoje o niilismo, se não isto? Nesse sentido, o discurso niilista pode ser considerado uma indignação sem direção, um grande desabafo inoperante, que gera a indiferenciação axiológica do “tudo é igual e nada faz sentido”. Nesse sentido, o niilismo é oposto à utopia. A utopia nega valores instituídos a fim de defender outras perspectivas. O niilismo apenas nega e não defende nada. De acordo com Luís Eustáquio Soares, no artigo Cinismo, niilismo e utopia, não é circunstancial que os niilistas desacreditem, diminuam e neguem precisamente a perspectiva utópica de povos e movimentos sociais, acusando-a de inútil quimera idealista de ignorantes.

As eleições de 2014 foram marcadas por essa visão niilista. Os coxinhas niilistas, que manifestavam a indiferença do niilismo, crendo que tudo é igual e nada faz sentido, tornaram-se eleitores cansados da política e dos políticos. Sem uma concepção ética subjacente, as mesmas pessoas que durante os protestos de 2013 ofereciam apenas frases de efeito e gritos de guerra esvaziados de sentido, se juntaram a diversos brasileiros que passaram a adotar o princípio do mal menor. Muitos eleitores insatisfeitos escolheram seu candidato a partir desse princípio: dos males o menor. E a história se repete agora nas eleições de 2018.

Quem soube se aproveitar da situação e conseguiu preencher esse vazio foi a extrema direita. Surgiram uma série de “incitadores da turba”, categoria usada pelo filósofo Theodor Adorno no ensaio Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista para expressar a atmosfera de agressividade emocional promovida com o intuito de provocar na multidão a ação violenta sem qualquer objetivo político sensato. Assim como os fascistas norte-americanos descritos pelo filósofo de Frankfurt, os agitadores brasileiros preocupam-se pouco com questões políticas concretas e tangíveis. A maioria esmagadora de suas declarações são fake news moralistas, como o kit gay que nunca existiu.

Para dar nomes aos bois: os agitadores da turba podem ser jornalistas como Rachel Sheherazade e Reinaldo Azevedo, que parecem ter se arrependido do papel; oportunistas como Kim Kataguiri, fundador do MBL e eleito Deputado Federal de São Paulo; artistas em fim de carreira como Lobão, Roger Moreira e Alexandre Frota, este último eleito Deputado Federal de São Paulo, em defesa da família tradicional; o deputado que ameaçou fechar o STF; e o presidenciável que defende tortura e ameaça assassinar os opositores. Além das celebridades, existem os pequenos disseminadores provincianos de ódio – os cidadãos que compartilham notícias falsas, reproduzem o discurso de ódio e ainda se fantasiam de caixa 2.

Uma outra vertente de agitadores, eu diria que a mais perigosa, é a do “cristofascismo”, expressão cunhada pela teóloga alemã Dorothee Sölle em 1970 para descrever segmentos das igrejas cristãs que ela caracterizou como totalitários. No Brasil nós temos a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, que trava uma “batalha espiritual” contra os Direitos Humanos e o Multiculturalismo. A sua Teologia da Batalha Espiritual, que inclui discursos de ódio e práticas de intolerância religiosa, tem ganhado força nos últimos anos, com fortes poderes eclesiástico, econômico, midiático e político.

A bancada evangélica é um bloco suprapartidário que desempenha uma função policial, pois se articula apenas quando há convergência em temas institucionais e morais, especialmente em duas situações: garantir privilégios para algumas igrejas evangélicas (tais como concessões de rádio e televisão e isenção de impostos) e impedir que todos os cidadãos brasileiros tenham acesso a direitos liberais básicos que contrariam o moralismo dos deputados da bancada. Assim, eles se opõem a temas como Direitos Humanos, educação sexual, igualdade racial e de gênero, direito ao aborto, eutanásia, descriminalização do uso de drogas, casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e criminalização da homofobia. E vale deixar claro que nem todos os evangélicos e nem todas as igrejas concordam com as práticas e doutrinas fundamentalistas da Frente Parlamentar Evangélica.

Os agitadores da turba podem ser jornalistas, líderes de igrejas, partidos políticos ou organizações não-governamentais. Não importa. A semelhança entre todos os agitadores é tão grande e os próprios discursos são tão monótonos que, assim que se fica familiarizado com o número muito limitado de dispositivos em estoque, o que se encontra são intermináveis repetições de memes e notícias falsas. Como observou o David Borges no livro Brasil em crise, os incitadores da turba fomentam um “medo vermelho” contra qualquer discurso ou comportamento que se pudesse ser enquadrado como sendo “de esquerda”. E tudo o que é de esquerda passa a ser taxado de comunista.

A situação é tão bizarra e surreal que temos cristãos defendendo ódio e violência; ator pornô em defesa da família tradicional; deputado com vários mandatos no Congresso Nacional se apresentando como renovação e novidade; notícias verdadeiras acusadas de serem falsas e notícias falsas apresentadas como verdadeiras. O cenário é digno de uma ficção de realismo mágico ou de uma ficção distópica. “Vivemos uma distopia”, disse o David Borges no livro O que resta das jornadas de junho.

Desde junho de 2013, grupos como MBL, políticos profissionais e igrejas estimulam seus seguidores a se organizarem como um exército pronto para a guerra. Os Gladiadores do Altar da Igreja Universal do Reino de Deus não me deixam mentir. Daí a tendência para o uso de símbolos comuns, como o nariz de palhaço e a máscara de Guy Fawkes (aquela do filme V de Vingança), que caíram em desuso, a camisa da seleção brasileira de futebol, que continua sendo usada, ainda que com menos frequência, apesar de todas as denúncias de corrupção contra a CBF, e agora a camisa com o rosto do candidato fascista.

Esses grupos anseiam por uma autoridade absoluta, um líder que se afirme como possuidor de valores supremos e ufanistas. Vale lembrar que “Deutschland über alles, Über alles in der Welt” (“Alemanha acima de tudo, acima de tudo no mundo”), era o slogan da Alemanha nazista.

A narrativa desses agitadores fascistas tem o suposto objetivo de salvar o povo brasileiro dos diversos males supostamente causados pelo suposto comunismo – a corrupção, o marxismo cultural, o feminismo, a “ditadura gay” e o bolivarianismo. O remédio oferecido é a restauração dos valores morais e religiosos sustentadores da sociedade brasileira em tempos pregressos, além das instituições às quais estes mesmos valores estiveram vinculados. Eles querem um Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás.
Para ser bem breve: as investigações mostram que a corrupção está presente em quase todos os partidos e aquele é acusado de ser o mais corrupto, na verdade não é; o feminismo garantiu inúmeros direitos às mulheres, dentre os quais o direito ao voto (por isso, mulher que é contra o feminismo não deveria sair de casa para votar); não existe nada parecido com uma ditadura gay – os gays só reivindicam o direito de poder existir e viver normalmente, sem sofrer homofobia; com o fim da guerra fria, o comunismo deixou de ser uma ameaça potencial – nos últimos governos o Brasil se tornou um país cada vez mais capitalista. Não obstante, as pessoas preferem acreditar em memes e notícias falsas. Como observou Theodor Adorno em Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista, o material de propaganda fascista preocupa-se pouco com questões políticas concretas. As declarações dos agitadores são obviamente mais baseadas em cálculos psicológicos do que na intenção de conseguir seguidores por meio da expressão racional de objetivos racionais.

Os atuais agitadores da turba brasileiros assemelham-se àqueles falsos profetas estudados pelos pesquisadores da Escola de Frankfurt. Parece que, ontem como hoje, os agitadores da turba usam técnicas manipuladoras e se aproveitavam do descontentamento, dos medos e dos ressentimentos de parcelas da população, criando inimigos que corporificam a “força do mal” que deve ser erradicada pelo movimento. No caso dos nazistas, o alvo eram os judeus. No caso brasileiro atual, vocês sabem qual é o alvo. Em ambos os casos, os agitadores da turba são financiados por um público cativo, que inclui Igrejas, grandes e pequenas empresas, jornais, rádios e canais de televisão. Como resistir a isso?

Os desafios da resistência democrática

Mesmo com ou justamente devido à ascensão do que há de pior no país, destaca-se a certeza de que é preciso resistir. Resistir ao fascismo, resistir à crescente opressão das minorias que ousam elevar suas vozes, à repressão e à tentativa de censura mais, ou menos velada, a manifestações intelectuais e artísticas que primam pela liberdade de expressão.
Precisamos encontrar um modo de curar o delírio coletivo e fazer as pessoas entenderem que o governo anterior não ofereceu mamadeiras em formato de pênis para as crianças. Isso é uma mentira. E muitas pessoas têm acreditado em qualquer mentira. Desmascarar as mentiras seria fácil, se as pessoas recuperassem o bom senso. O difícil é curar o delírio coletivo e convencer as pessoas a raciocinarem. Como fazer isso? Não sei. Não sou psicólogo e não tenho fórmula mágica.

Eu só sei que precisamos aprender a usar as novas mídias como ferramentas de expressão, criação e ativismo democrático em favor do bem comum. Uma cidadania genuína exige que a comunidade tenha conhecimentos sobre a produção da mídia e a elaboração de produtos divulgáveis. Nesse sentido, precisamos deslindar um método crítico capaz de auxiliar na decodificação das notícias falsas veiculadas diariamente e na discriminação de seu complexo espectro de efeitos, identificando os vários códigos ideológicos presentes na cultura da mídia, criando e propondo alternativas contra-hegemônicas e antifascistas.

Também precisamos de uma política da memória. Por exemplo, na Alemanha e na Polônia, os campos de concentração nazistas foram transformados em museus. Na Alemanha, os inúmeros museus e memoriais dedicados à segunda guerra mundial e ao nazismo têm entrada gratuita. Em 2013 eu visitei, junto com uma amiga polonesa judia, os campos de Sachsenhausen e Auschwitz-Birkenau. Num determinado pavilhão, atravessei uma sala forrada com os sapatos, brinquedos e cabelos de homens, mulheres e crianças mortos nos campos. Até hoje eu ainda fico arrepiado e com lágrimas nos olhos. A visita ao campo é uma experiência pedagógica. O Brasil precisa de museus e memoriais da escravidão, da ditadura e da tortura. Quantos museus e memoriais da escravidão e da ditadura militar existem no Brasil? Que eu saiba, nenhum. Existem algumas iniciativas importantes, como o Museu do Negro no Rio de Janeiro, o Museu Afro Brasil e o Memorial da Resistência, em São Paulo. Também estão construindo um Museu da Escravidão e da Liberdade no Rio de Janeiro. Mas é muito pouco. E em contrapartida, em cidades brasileiras como Ouro Preto-MG, as senzalas viraram bares e restaurantes. Isso é um absurdo que revela descaso com o nosso passado de violência.

Em suma, se a política não tem sentido a priori, depende de cada cidadão conferir-lhe sentidos na medida em que afirmem seus valores. Que mudanças esperamos? Que sociedade queremos? O que caracteriza um país melhor? Que política desejamos? Sobre essa nossa decisão política e existencial se fundamenta a possibilidade de resistência ao niilismo e ao fascismo.

Referências

ADORNO, Theodor W. Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda. In: ARATO, Andrew; GEBHARDT, Eike (org.). The Essential Frankfurt school reader. New York: The Continuum Publishing Company, 1982, pp. 118-137.

BORGES, David G. “1984” e o Brasil de 2016. In: CEI, Vitor; DANNER, Leno; OLIVEIRA, Marcus Vinicius Xavier de; BORGES, David G. (orgs). O que resta das jornadas de junho. Porto Alegre: Editora Fi, 2017, pp. 163-178.
BORGES, David G. O “red scare” no Brasil. In: CEI, Vitor; BORGES, David G. (orgs.). Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Vila Velha, ES: Praia Editora, 2015, pp. 171-179.

CEI, Vitor. Cultura e política, 2013-2016: os incitadores da turba. In: CEI, Vitor; DANNER, Leno; OLIVEIRA, Marcus Vinicius Xavier de; BORGES, David G. (orgs). O que resta das jornadas de junho. Porto Alegre: Editora Fi, 2017, pp. 205-224.

CEI, Vitor. Contra-isso-que-está-aí: o niilismo nas jornadas de junho. In: CEI, Vitor; BORGES, David G. (orgs.). Brasil em crise: o legado das jornadas de junho. Vila Velha, ES: Praia Editora, 2015, pp. 137-164.

SOARES, Luis Eustáquio. Cinismo, niilismo, utopia. Observatório da Imprensa. São Paulo, n. 678, 24 de janeiro, 2012.

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