No El País – Há exatamente dois anos, logo após as eleições municipais de 2016, eu afirmei em entrevista para este jornal que a eleição presidencial de 2018 seria ganha por um outsider da política ou por uma figura anti-establishment.
Desde então, eu reafirmei o mesmo prognóstico em entrevistas para outros veículos e também em diversos textos que escrevi para este jornal. Muitas vezes, fui questionado pelos meus clientes do mercado financeiro e por tradicionais players do mundo da política por conta desta afirmação – questionamentos esses que eram mais fruto de um desejo que tal prognóstico não se concretizasse do que consequência de uma análise racional a respeito do comportamento do eleitorado brasileiro.
Ao final do primeiro turno das eleições, veio a comprovação: as duas candidaturas mais rejeitadas pelo establishment (popularmente conhecido como O Sistema) estavam no segundo turno.
Hoje, eleitores de cada um dos dois lados, me criticam por não considerar o candidato do campo oposto como parte do establishment. Essa é uma discussão apaixonada, mas ela se torna irrelevante quando trazida para o campo da objetividade. Para isso, basta olharmos as matérias e as linhas editoriais que dominaram a grande mídia do país até dez ou quinze dias antes do primeiro turno – quando o Sistema ainda sonhava com uma vitória de Geraldo Alckmin. Ao fazer esse exercício, fica fácil perceber que o pior pesadelo para o establishment era exatamente um segundo turno entre o candidato do PT e Jair Bolsonaro.
De fato, para o punhado de plutocratas que comanda o Sistema, a candidatura do PT trazia diversos riscos que poderiam ameaçar sua contínua acumulação de riqueza e poder: 1) a adoção de políticas fiscais expansionistas; 2) o combate ao rentismo; 3) a desvalorização do câmbio; 4) a proposição de uma reforma tributária ousadamente progressista; 5) a revogação da reforma trabalhista; 6) o repúdio à reforma da previdência nos termos desejados pelo mercado; 7) a luta por uma reforma política capaz de tornar o Congresso Nacional mais partidário, mais ideológico e consequentemente, menos pulverizado e menos “fluido e manobrável”; 8) o fim da concentração do mercado de comunicação na mão de pouquíssimos grupos familiares; 9) o enfrentamento ao poder que o judiciário, a polícia federal e o ministério público acumularam ao longo da última década; e por último, 10) a soltura do ex-presidente Lula.
O deputado Jair Bolsonaro, por outro lado, aos olhos desse mesmo punhado de plutocratas, representa(va) outros riscos: 1) o enfrentamento à agenda de costumes defendida por eles (relacionada à descriminalização do aborto, ao desarmamento dos cidadãos, ao aprofundamento dos direitos dos grupos LGBTs, à descriminalização do consumo de drogas e à defesa do meio-ambiente e de políticas afirmativas); 2) a promoção de um autogolpe durante o mandato; ou 3) a volta dos militares ao poder – menos “fluidos e maleáveis” que os políticos tradicionais. Além desses três riscos, a eleição dele também pode(ria) ameaçar o poder da grande mídia, do Congresso Nacional (historicamente comandado pelo “centrão” – um importante aliado do establishment) e do Supremo Tribunal Federal.
Logo, por mais que ao longo do segundo turno, tenhamos visto esses plutocratas aderindo ao candidato do PSL (para eles, o bolso é sempre mais importante que os ideais…), não dá para falar que o parlamentar do Rio de Janeiro era o candidato dos sonhos desse pequeno grupo que comanda o Sistema. Da mesma forma, só alguém com a cabeça muito contaminada nessa era da pós-verdade, poderia afirmar que esses titãs do capitalismo tupiniquim desejavam a eleição do candidato do PT – por mais que na década passada, eles tenham enriquecido enormemente durante o governo pelo ex-presidente Lula.
Enfim, o grande derrotado do primeiro turno das eleições presidenciais foi o establishment. Não poderia ser diferente num país em que a soma dos eleitores que diziam não confiar nada ou confiar pouco no Congresso Nacional em meados de abril, chegava a uma taxa impressionante de 89%. Similarmente, não poderia ser diferente num país em que cerca de 80% dos eleitores diziam – em questionamentos separados – confiar pouco ou não confiar nada na grande mídia, nos grandes bancos, nas grandes empresas e na justiça brasileira – apesar da avaliação bastante positiva acerca da Operação Lava Jato.
No segundo turno, essa narrativa anti-establishment também sagrou-se vencedora. Curiosamente, apesar do mercado financeiro e desse punhado de plutocratas brasileiros terem aderido ao deputado Jair Bolsonaro no segundo turno, ele venceu a eleição exatamente por ter encarnado a narrativa antissistema melhor que Fernando Haddad.
Os valores, as ideias e a base eleitoral do presidente eleito
Mas, não pretendo me prolongar nesse texto sobre as razões que fizeram Bolsonaro vencer Haddad. Meu objetivo aqui é traçar um possível prognóstico a respeito do futuro Governo.
Nesse sentido, a teoria dos jogos nos ensina que quando conhecemos os valores pessoais, as relações de poder e os objetivos dos jogadores, fica fácil prever as ações dos mesmos e consequentemente, o resultado final do jogo. O presidente eleito defende valores morais bastante conservadores – outro fator fundamental que explica sua vitória sobre Fernando Haddad.
Ele é contra a descriminalização do aborto, contra a descriminalização do consumo de drogas e contra o aprofundamento das agendas LGBT, feminista e pró-minorias. Por outro lado, é a favor do direito das pessoas portarem armas de fogo para defenderem suas posses e a sua integridade física.
Politicamente, o deputado e ex-capitão do Exército tem uma retórica ultranacionalista e é um grande admirador da linha dura do regime militar brasileiro (que reagiu à abertura política iniciada no governo Geisel), do Coronel Brilhante Ustra e do General Augusto Pinochet. Ele enxerga os partidos, intelectuais, políticos, movimentos e organizações de esquerda como os maiores inimigos da nação e dele próprio – em seu discurso, ele também os classifica como os maiores inimigos do povo. Dentre suas referências mais atuais, destacam-se o ensaísta Olavo de Carvalho, o Juiz Sérgio Moro e o Presidente Donald Trump.
Na economia, apesar de ter defendido durante toda sua carreira parlamentar o modelo nacional-desenvolvimentista implantado pelo regime militar brasileiro, o presidente eleito foi recém-convertido ao liberalismo econômico.
Com essa conversão, que fez aumentar ainda mais sua admiração pelo regime militar chileno, o deputado Jair Bolsonaro passou a declarar-se um defensor da reforma trabalhista, da reforma da previdência, das privatizações e da redução do tamanho do estado. No campo internacional, o presidente eleito defende uma relação umbilical (para alguns analistas, vassalar) com os Estados Unidos e, por isso, se mostra reativo ao multilateralismo e aos laços que o Brasil construiu ao longo das últimas décadas com a China, a Rússia, o Mercosul e alguns países africanos, árabes e até mesmo europeus de tradição social-democrata.
Por último, na questão do meio-ambiente, assim como o atual presidente norte-americano, o parlamentar do Rio de Janeiro também entende que há exageros na agenda do aquecimento global e acredita que, atualmente, ela é prejudicial ao progresso do país e do mundo.
Passemos agora, para o entendimento de sua base eleitoral – originalmente construída a partir da defesa dos interesses dos integrantes das forças armadas e das polícias. Além das questões salariais e de carreira que afetam essas corporações, o presidente eleito destacou-se nos últimos anos, pela sua proposta de mudança da legislação do excludente de ilicitude. Na prática, ele pretende dar mais garantias legais para policiais que são acusados de homicídio ou de abuso de autoridade por parte do Ministério Público – com as propostas de afrouxamento das exigências para a comercialização de armas de fogo e de ampliação do excludente de ilicitude, é natural que grupos parapoliciais e milicianos tenham sido fortes defensores de sua candidatura conforme já foi retratado por este jornal em algumas matérias.
A partir das eleições de 2014, essa base eleitoral original foi bastante ampliada.
Uma classe média com valores conservadores, que não foi favorecida pelas políticas sociais dos governos do PT, que sofre com o aumento da violência nas ruas, e que foi convencida pela grande mídia que a corrupção política é a grande responsável pela crise econômica, pelo desemprego e pela perda do seu poder aquisitivo, passou a se sentir representada pelo parlamentar do Rio de Janeiro – são pessoas que entre 1994 e 2014, “tapavam o nariz” para votar no PSDB nas eleições presidenciais apenas porque este tinha o PT como adversário.
Essa classe média é filha e neta da mesma classe média que apoiou a queda de João Goulart em 64 e que ainda carrega em suas entranhas a bipolarização do pós-guerra, isto é, a visão de um mundo em que patriotas defensores da família, da propriedade privada e do cristianismo devem lutar continuamente contra a expansão do comunismo ateu.
Depois dessa classe média conservadora, a base se ampliou com o rebanho evangélico neopentecostal. Uma massa que cresce pari passu com a carestia, o desemprego e a miséria nos grandes centros urbanos. O forte posicionamento do presidente eleito a favor de algumas causas ligadas à defesa da família tradicional e contra as pautas comportamentais e de identidade que passaram a dominar a militância de esquerda na última década, foi fundamental para que ele conquistasse o eleitorado evangélico – inclusive um grande número de eleitores de baixa renda que se beneficiaram imensamente pelas políticas públicas dos governos do PT e que costumavam votar em candidatos apoiados pelo ex-presidente Lula.
Simultaneamente, veio o voto “sertanejo” – tradicionalmente mais conservador que o voto nas áreas urbanas. As propostas de 1) promover um relaxamento da legislação e da fiscalização ambiental e trabalhista nas áreas rurais; 2) de permitir que os proprietários de terra possam se armar mais fortemente para proteger suas posses; e 3) de combater duramente (ou até mesmo, de criminalizar) o MST, ganharam o coração das lideranças políticas e econômicas do Brasil Rural. Como essas lideranças ainda detém forte influência sobre o voto popular em seus domínios, o deputado Bolsonaro obteve larga vantagem sobre o candidato do PT no interior do país.
De fato, a retórica nacionalista, messiânica, de resgate de valores morais tradicionais e de criminalização da esquerda, foi fundamental para a vitória do parlamentar do Rio de Janeiro. Por outro lado, essa mesma retórica também faz com que o presidente eleito acabe sendo percebido pela imprensa internacional como mais um representante do neopopulismo de extrema direita que vem conquistando eleitores no mundo todo.
A combinação dessa mesma retórica com a admiração declarada pela linha dura do regime militar (e por figuras como o Coronel Ustra), somada ao apoio recebido por militares, policiais e parapoliciais, faz com que outros analistas políticos desconfiem das declarações de respeito à democracia e à Constituição feitas pelo deputado Bolsonaro depois de eleito – são analistas que vão além e que afirmam que seu futuro Governo representa uma ameaça fascista para o Brasil.
Um prognóstico para o futuro governo do Presidente Bolsonaro
Todavia, no atual contexto de pós-verdade, todas essas expressões precisam ser relativizadas. Afinal o que seria esse neopopulismo de extrema direita? O que significa uma ameaça fascista? Será que ao longo dos últimos anos, as instituições da nossa República têm de fato respeitado a Constituição e a democracia?
As palavras têm poder, mas às vezes, pouco importam. Para a maior parte dos brasileiros, o importante agora é entender o que presidente eleito vai fazer a partir de primeiro de janeiro.
Se ele for tão sagaz quanto tem se mostrado desde o início da campanha eleitoral em agosto, ele vai conseguir implantar grande parte da sua agenda. Com algumas ações heterodoxas e tendo o Juiz Sérgio Moro como seu ministro da Justiça, não será difícil para o presidente Jair Bolsonaro conseguir criminalizar e, eventualmente, banir a esquerda da cena política nacional.
Com a criação de alguns fatos, a instalação de novos inquéritos, o apoio da Procuradoria Geral da República (o presidente eleito já sinalizou que assim como fez o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não vai se comprometer a seguir a lista tríplice proposta pelo Ministério Público para a escolha do próximo Procurador Geral da República) e a complacência do Congresso Nacional, da grande mídia e do Judiciário, não será difícil incriminar, encarcerar e calar as principais lideranças de esquerda do país – tudo feito sob o manto do combate à corrupção e dentro da legalidade.
Com a escolha do próximo chanceler, também não haverá nenhuma dificuldade para o presidente Jair Bolsonaro implantar uma política externa umbilicalmente associada à política externa norte-americana – afinal, tal movimento não afeta em nada os interesses daquele punhado de plutocratas a que me referi anteriormente.
Por exemplo, é muito provável que a embaixada brasileira em Israel seja mesmo transferida para Jerusalém. Além do desejo de alinhamento com os Estados Unidos, há também a pressão das igrejas evangélicas neopentecostais brasileiras que apoiaram o presidente eleito – elas, assim como suas coirmãs norte-americanas, associam o retorno de Jesus ao reconhecimento de Jerusalém como a única capital do estado judeu. Dessa forma, é improvável que o lobby do agronegócio (que gostaria de evitar uma eventual retaliação dos países árabes por causa dessa transferência) seja capaz de reverter o anúncio que foi feito logo após o fim das eleições.
Adicionalmente, o endurecimento das relações comerciais com a China e com a Rússia também deve acontecer apesar dos potenciais prejuízos para o agronegócio e para o setor de mineração do país. A agenda comportamental conservadora (relacionada a temas como aborto, drogas, maioridade penal, porte de armas de fogo e excludente de ilicitude) e o afrouxamento da legislação ambiental também devem ser implantadas com sucesso. Para isso, basta atrelar a condução de tais medidas no Congresso Nacional à aprovação da reforma da previdência (a grande obsessão do establishment e do mercado financeiro) e ao programa de privatizações que será proposto pelo futuro Ministro da Economia.
Na verdade, o economista Paulo Guedes será muito útil ao Sistema enquanto estiver na linha de frente da reforma da previdência, do programa de privatizações, da redução do tamanho do Estado, da independência do Banco Central e do aprofundamento da reforma trabalhista recentemente aprovada. “A porca só vai torcer o rabo” quando ele resolver acelerar sua agenda liberal na tentativa de fazer o país crescer de forma significativa.
O futuro ministro da economia encontrará um muro intransponível quando quiser: 1) reduzir os juros reais e tornar o Real mais competitivo para favorecer a exportação e com isso, gerar demanda para o setor produtivo brasileiro; 2) combater privilégios fiscais e os juros subsidiados oferecidos pelos bancos estatais; e 3) enfrentar os poderosos cartéis e monopólios privados do país para aumentar a produtividade da nossa economia por meio de políticas antitruste, da redução de tarifas de importação e da atração de investimento estrangeiro direto para aumentar a competição nesses setores.
Quando entrar nesse “capítulo”, o futuro ministro deixará de ser visto como herói pela grande mídia e passará a ser alvo dos plutocratas e de seus aliados no Congresso Nacional, no Ministério Público e no Judiciário.
O presidente Bolsonaro terá então três alternativas: 1) bancar a agenda liberal do seu “Posto Ipiranga”; 2) dar um “cavalo de pau” na economia e adotar políticas de expansionismo fiscal e/ou de distribuição de renda para tentar gerar crescimento econômico; e por último, 3) ceder à pressão do establishment e manter o velho capitalismo de compadrio brasileiro – o mesmo que que favorece o rentismo, a concentração de renda e que é responsável pela estagnação econômica do país nos últimos 30 anos.
As duas primeiras alternativas farão com que o presidente eleito também se torne alvo do Congresso, do Ministério Público e do poder judiciário. Nesses casos, assim como aconteceu com Jânio Quadros e Fernando Collor, que também foram eleitos com um discurso “apolítico”, anticorrupção e liberal na economia, é possível que o mandato de Jair Bolsonaro fique ameaçado – tendo o General Mourão como seu substituto direto, é pouco provável que as Forças Armadas se arrisquem a defender o presidente eleito num eventual embate contra o Congresso e o Judiciário.
A terceira alternativa vai lhe garantir a permanência no cargo até o final do mandato, mas não será capaz de gerar o crescimento econômico necessário para melhorar seus níveis de aprovação nos dois últimos anos de governo. Dessa forma, para sua própria sobrevivência política, lhe restará “caçar e queimar novas bruxas” – no que tiver sobrado na esquerda, em outro campo político, ou quem sabe até fora do país. Seria o uso da velha tática do “se você não pode dar pão ao povo, dê a ele o sangue de um inimigo” – imaginário ou não. O mundo já viu muitos exemplos trágicos dessa tática ao longo da história. No curto prazo, ela pode até dar algum resultado, mas no final, nunca acaba bem.
Marcello Faulhaber é consultor e estrategista político. É mestre (MSc.) em Economia Política pela London School of Economics.