Na Carta Capital – Aquela fria manhã insistia para que eu ficasse na cama. Aos poucos, porém, despertei para o dever que me aguardava. Eu, juíza de direito recém empossada no Tribunal de Justiça do Paraná, visitaria uma prisão pela primeira vez não apenas como cidadã, mas na função de corregedora e fiscal de tudo o que se passava no interior do estabelecimento.
Um vento gelado e úmido batia em meu rosto enquanto caminhava pela rua da delegacia de polícia. A neblina que pairava sobre o horizonte escondia os contornos de uma solitária árvore, quase nua, com suas folhas secas e amareladas caídas ao chão. Segui admirando a paisagem, ao mesmo tempo em que apressava o passo para o compromisso daquela manhã.
Uma construção cinza, então, passou a fazer parte do cenário. Pintura descascada, grades enferrujadas, grama sem corte há meses. Na porta, um policial me aguardava com uma caneca de café em uma das mãos. Cumprimentando-me com a outra, falou:
– Bom dia, doutora. Acabei de passar o café. Está servida?
Aceitei a gentileza e seguimos conversando.
O diálogo trivial que mantínhamos, porém, pareceu se esgotar na medida que avançávamos no interior do local. Cada passo me fazia mais próxima do espaço reservado à detenção de pessoas acusadas da prática de crimes ou por eles já condenadas. A iluminação diminuía gradualmente e o ar se tornava rarefeito. O cheiro do café das nossas xícaras deu lugar ao odor úmido típico dos locais fechados. Aos poucos, mesmo esse forte cheiro de mofo que parecia ter se instalado definitivamente transformou-se no cheiro da cadeia – quem trabalha com presos sabe do que falo. Toda cadeia cheira igual.
Uma porta pesada de ferro foi aberta. Atrás da porta, grades. Atrás das grades, gente. Muita gente. Gente nova, gente velha, gente doente e com tosse aguda, gente sem dentes na boca. Olhos assustados dos dois lados. Eu, paralisada, tentava entender aqueles homens enjaulados em um cubículo. Eles, amontoados, me fitavam com desconfiança.
A prisão despersonifica.
Os muros das cadeias escondem corpos com as mesmas características. Apesar da maioria deles ser da cor negra, naquela visita pude notar que todos apresentavam um aspecto amarelado, resultado, segundo o que me disseram, da ausência de sol. O mesmo corte de cabelo, o chinelo e meia nos pés, o modo de falar e expor as reivindicações. Crimes graves, crimes leves, reincidentes e primários, inocentes e culpados. Faccionados, desesperados, revoltados e arrependidos. Era difícil individualizar um a um.
A prisão despersonifica. E não só o preso.
Os muros das cadeias escondem mães, companheiras, filhos, crianças e idosos. Ocultam pessoas que, apesar de não terem cometido nenhum crime, por ele pagam com sua dignidade, submetendo-se a uma rotina de humilhações para não abandonarem aqueles que por nós, enquanto sociedade, já foram descartados e desacreditados.
A prisão despersonifica. E não só o preso e sua família.
Os muros das cadeias escondem autoridades que, por meio de um jogo de empurra, lavam as mãos diariamente diante do caos carcerário. Apartam-se de sua responsabilidade institucional disseminando o mesmo discurso padrão “mocinhos x bandidos” dentro da bolha do comodismo e do punitivismo cego. Dão de ombros ao genocídio instituído como política de segurança pública por um Estado apático e omisso na educação e na saúde, mas extremamente eficiente em sua tarefa punitiva. Afinal, o importante é prender e esquecer. Pouco importa a solução quando vingança é a palavra de ordem.
A prisão despersonifica. E não só o preso, sua família e as autoridades competentes.
Escondi-me por muito tempo atrás dos muros das cadeias. Escondi-me porque não conseguia encarar a questão carcerária como, antes de tudo, um problema humanitário. Escondi-me por medo, por insegurança, por vergonha. Pelo comodismo de simplesmente tirar do alcance da visão do “cidadão de bem” aquele que por ele é concebido como uma aberração.
Mas há um tempo para o esconder-se e outro para o despertar.
E a saída ao meu medo foi o cumprimento da Constituição Federal.
Enquanto juíza de direito, dei-me conta de que, na dúvida, a decisão deverá pender à proteção irrestrita da dignidade da pessoa humana. Seja essa pessoa acusada de um crime, seja ela vítima, seja ela parente de ambos.
Muitos me questionam se não me revolto diante dos crimes postos sob meu julgamento, com tantas vidas perdidas para a violência, com as famílias destroçadas pela partida de um ente querido. Como cidadã, respondo, eu me comovo. Como juíza de direito, não só não posso, como não devo. Do contrário, ferido estaria um dos princípios máximos da missão do Poder Judiciário: a imparcialidade. Cabe a mim, como magistrada, cumprir a Constituição Federal e garantir direitos ao acusado e à vítima, ao pobre e ao rico, ao letrado e ao analfabeto, ao preto e ao branco. Jamais extravasar nas sentenças e decisões meus sentimentos e crenças pessoais, tampouco alçar-me à condição de “vingadora” da sociedade.
Comovo-me em excesso, todavia, enquanto cidadã e juíza de direito, com a rotineira violação dos direitos humanos de milhões de brasileiros e brasileiras. Comovo-me um menino de 14 anos sem dentes na boca que, durante uma audiência, disse que não sabia ler porque trabalhou desde muito cedo para ajudar a família. Comovo-me com o preso desesperado ao saber que ganharia sua liberdade, suplicando para que eu o deixasse na cadeia, único local onde pôde comer e dormir sob um teto. Comovo-me com a usuária de crack que, presa como traficante, implorou, soluçando, para permanecer com a guarda da filha que ainda mamava em seu seio. Comovo-me com o trabalhador rural que cortou cana durante a vida inteira para, ao final dela, bater à porta do Judiciário esperando ter garantido seu direito à aposentadoria no valor de um salário mínimo. Comovo-me com o pai de família suspeito e morto a tiros de fuzil pela simples condição de morar na favela. Comovo-me com o esgoto a céu aberto e com os 13 milhões de brasileiros que passam fome.
Comovo-me com as vidas e talentos perdidos em razão do abandono estatal frente aos seus cidadãos, encarados como fracassados pelo discurso meritocrático cruel, mesquinho e alienado vociferado pelos privilegiados.
O antídoto a tal comoção tem sido, repito, o cumprimento da Constituição Federal em meu dia-a-dia profissional, garantindo sua máxima efetividade, conforme aprendi sobre os direitos fundamentais nos bancos da faculdade de Direito. A marcha é longa e penosa, mas a conscientização do papel constitucional do Judiciário enquanto Poder transformador da realidade social e também responsável pela construção de uma sociedade mais justa e solidária é o que me move e motiva.
Como cidadã, o remédio tem sido outro. Uma dose diária de empatia e compreensão deveria ser obrigatória a todos nós, seres sujeitos a inúmeros erros e acertos ao longo de nossa existência terrena. Descalçar nossos sapatos, às vezes tão confortáveis, para sentir o chão onde pisam descalços os que não têm vez na sociedade egoísta que integramos é um desafio e um exercício àqueles que realmente desejam viver num mundo menos cruel.
Esse é o convite de reflexão que trago a essa coluna que, com muita alegria, assumo a partir de hoje na Carta Capital. Muito prazer!
Fernanda Orsomarzo é Juíza de Direito no Estado do Paraná. Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC-PR. Membra da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Rede Justiça Pelos Direitos Humanos no Paraná (REJUDH-PR).
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil