Um chiste que o presidente Jair Messias Bolsonaro (PSL) parece apreciar diz que um capitão vai agora mandar em general. Outro, mais revelador, diria que ele também se aplica em desonrar um marechal.
Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) já foi mais reverenciado pelos militares do Brasil. Ao emascular a Fundação Nacional do Índio (Funai), Bolsonaro demonstra descaso –se não ignorância– pela memória do responsável pela adoção de uma política indigenista de matriz não genocida no país (ao menos oficialmente).
Em um de seus primeiros atos no Planalto, o capitão reformado retirou da Funai a função de demarcar terras indígenas (TIs). A prerrogativa cabe agora a uma secretaria do Ministério da Agricultura dirigida pelo pecuarista da pesada Luiz Antonio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista (UDR).
Não há sutileza na forma escolhida pelo presidente para cumprir o prometido: nem um centímetro a mais de TIs demarcadas. Coisa que reiterou num tuíte após a posse:
“Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros.”
Bolsonaro fez mais. Transferiu a Funai do Ministério da Justiça para o da Mulher, Família e Direitos Humanos. A pasta tem por ministra Damares Alves, pastora evangélica que já militou na ONG Atini Voz pela Vida, acusada pelo Ministério Público de incitar ódio contra indígenas ao fazer campanha contra alegados infanticídios.
“Integrar” não seria o verbo de preferência de Rondon, que entendia de selva muito mais que Bolsonaro. “Resguardar” estaria mais ao gosto do criador do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), entidade precursora da Funai.
Não que Rondon mereça elogio ingênuo. Sua aplicação da filosofia positivista vinha coalhada de um paternalismo de causar enjoo, que concebia os índios num estágio inferior de desenvolvimento do espírito, imersos num fetichismo a anos-luz do zênite alcançado com o positivismo científico.
Havia ali, entretanto, um núcleo progressista. Para começar, os positivistas faziam pouco da noção de raça, pois acreditavam que a humanidade era uma só –ainda que separada em grupos com funções cerebrais privilegiadas: atividade entre asiáticos, inteligência entre europeus e sentimento entre africanos.
Deixados por conta própria, tenderiam a seguir a evolução natural do mais primitivo para o mais abstrato. Em matéria de crenças, progrediriam por si sós do fetichismo para o positivismo, de preferência saltando a etapa metafísica.
Nada se afasta mais da perspectiva positivista do que o missionarismo evangélico professado pela ministra Damares, por exemplo. Não só os indígenas deveriam ser respeitados em seu próprio curso de desenvolvimento como se tornava imperativo, para Rondon, que pudessem seguir com sua cultura pelo tempo que fosse necessário.
Essa é a origem da ideia de que precisam de áreas em que possam viver como bem entenderem. As leis inexoráveis do processo evolutivo teriam de ser respeitadas, e qualquer intervenção –como o acesso a educação e saúde– precisaria ser gradual, atos de bondade e amor, não de integração forçada.
Apesar de cultuar a memória de Rondon, a ditadura militar na prática empregou o paternalismo autoritário e violento contra os índios. Esse era o cerne de sua política de “integrar para não entregar” a Amazônia.
A vertente benevolente e generosa, já um tanto expurgada de paternalismo, reviveu com o reconhecimento constitucional, em 1988, de que os povos indígenas têm um direito originário a suas terras. Precisamente o que Bolsonaro agora se propõe reverter.
Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência – Use com Cuidado”.