Neste nosso momento, com este nosso presidente eleito, há uma significativa parcela da população que saliva por sangue. Gente que, em outros tempos, embarcaria com convicção nas cruzadas contra os mouros (ou, covardemente, apoiaria os templários da santa paz de suas casas).
Essa gente, que é parte do mesmo povo brasileiro do qual faço parte, tomou ódio dos “direitos humanos”.
Suponho que essa gente esteja acompanhando as notícias do dia de hoje com a mesma disposição de quem acompanha um capítulo de novela, cheio de revira-voltas. Afinal, hoje a justiça brasileira teve de decidir se Lula poderia acompanhar o enterro do irmão. Gostem de spoilers ou não, o fato é que Lula conseguiu a autorização já tarde demais, quando seu irmão já havia sido sepultado. Como se sentiu essa gente com esse desfecho?
Posso imaginar o júbilo de grande parte dessa gente. Mas tenho fé de que muitos antipetistas, e mesmo probolsonaristas, vacilaram hoje. Há algo de profundo nos eventos desta quarta-feira, 30 de janeiro de 2018. Algo que diz respeito aos direitos humanos e que é capaz, como em toda dramaturgia clássica, transmitir ensinamentos preciosos. Diante disso, afirmo: o dia de hoje, às custas da dor de um cocidadão, generosamente explica o humano no direito.
Sepultar um irmão é um direito tão, mas tão antigo, que o dramaturgo Sófocles escreveu, no século V antes de Cristo, uma tragédia, intitulada “Antígona”, inteira sobre esse tema. No caso, a personagem Antígona contraria as ordens do rei e sepulta seu irmão, condenado a jazer insepulto. Um corpo insepulto é a maior das desonras. Não por acaso as famílias de desaparecidos clamam pelos seus mortos. Somos humanos porque temos humanidade. E se há, nas culturas comparadas, alguns pontos convergentes, esse é um deles: mesmo os indignos têm direito à sepultura. E seus parentes têm o direito (e o dever) de enterrá-los. Por isso que nossas leis garantem aos presidiários, os criminosos condenados popularmente chamados de “bandidos”, o direito de sepultarem seus familiares mais próximos. Um irmão, por exemplo. Esse direito foi negado ao Lula.
Antipetistas e probolsonaristas podem vibrar com a justiça brasileira ter julgado, condenado e preso um ex-presidente (certamente não compartilham da minha visão de que Lula é um preso político). Podem, inclusive, perder a compostura e rejeitar o tratamento honrado que cabe a ex-presidentes. Porém, diante dos fatos ocorridos hoje, tenho certeza de que somente os mais inumanos e crueis dos homens não empatizem com Lula. Tenho certeza de que a justiça dos homens falhou aqui e que o povo compreende isso. Porque lá dentro, em nós, há um humano compassivo que sabe que esse nosso direito soberano e universal de enterrar nossos mortos vale pra todos. Um direito que, se nos fosse negado por um Moro-Creonte, nos levaria à desobediência civil. Afinal, somos todas Antígona. Se eu fosse Lula e pudesse fugir para enterrar meu irmão, eu o faria.
*Por Raquel Valadares, documentarista, especial para os Jornalistas Livres.