No The Intercept – NUMA DAS TARDES mais quentes do ano, em uma cafeteria da Asa Norte, em Brasília, Dom Werneck pediu a segunda dose de vodka com muito gelo. Ele é um dos líderes do movimento intervencionista, que quer a volta da ditadura militar no Brasil. Em quase três horas de conversa, ele explicou os motivos que fizeram com que boa parte dos militaristas decidisse apoiar um candidato – Jair Bolsonaro – e depois passasse a conspirar abertamente contra ele.
Foi também a partir desse ano que os intervencionistas passaram a ver em Bolsonaro a solução para os seus anseios, uma vez que um golpe militar nos moldes tradicionais, como o de 1964, estava longe de acontecer. A saída seria alçar alguém pelas vias democráticas, e o ex-capitão parecia se encaixar perfeitamente no papel. Ele tinha carisma, boa lábia e nenhum pudor em defender o regime militar.
O agora presidente, inclusive, falava abertamente sobre “acionar o artigo 142″ quando chegasse ao poder. O artigo em questão é sempre evocado por intervencionistas como a prerrogativa constitucional para um golpe militar, ao apontar que caberia às Forças Armadas a garantia da “lei e da ordem” no país.
Werneck tinha isso em mente quando, a partir de 2013, se aproximou do ex-capitão. Ele reivindica a autoria de atos que ajudaram a tornar Bolsonaro conhecido pelo grande público e alega ter sido o autor da ideia de levar militantes para recepcionar o ex-deputado federal no aeroporto de Brasília semanalmente e publicar vídeos de Bolsonaro nos braços do povo – o que se tornou uma das marcas da sua caminhada até o Planalto. Também criou o grupo “Bolsonarianistas” no WhatsApp, que teve mais de 80 subgrupos pelo país – um embrião do que viria a ocorrer na campanha eleitoral.
Como uma espécie de “assessor informal”, Werneck seguia Bolsonaro pela Câmara dos Deputados, fazendo entrevistas “exclusivas” e transmitindo os discursos do parlamentar em lives em suas páginas – hoje ele tem duas no YouTube, uma com 76 mil assinantes e, a outra, 47 mil; além de 55 mil fãs no Facebook. Em setembro de 2016, ele teria avisado o então deputado sobre uma comissão com Maria do Rosário, pouco após o incidente em que ele disse que “não a estupraria porque ela não merece”. Bolsonaro foi ao local, bateu boca com meio mundo e virou notícia. Werneck registrou ao vivo.
A estratégia com as ações era dar visibilidade para o ex-deputado. Até então o ex-capitão reformado era um parlamentar apagado, que nunca relatou projetos relevantes, presidiu comissões ou liderou bancadas, e que somente ganhava a luz dos holofotes por causa das polêmicas em que se envolvia.
Werneck se apresenta em vídeoscomo um dos organizadores das greves de caminhoneiros, categoria que se aproxima cada vez mais dos intervencionistas. Nos atos, principalmente na paralisação de 2018, não foi raro ver caminhões com faixas pedindo socorro das Forças Armadas e manifestando apoio a Bolsonaro – que chegou a apoiar a greve e depois recuou – como de praxe.
Relação esfria
Mesmo agindo como cabo eleitoral, Werneck diz que sempre teve um pé atrás com Bolsonaro. “Todo mundo sabia que ele era um mau militar, e isso pega mal no meio”, afirma. Ele diz que dava “apoio crítico” ao deputado apenas para alçar ao poder uma pessoa minimamente ligada ao militarismo.
Os intervencionistas também se incomodavam com a receptividade de Bolsonaro à ideologia liberal, com a aproximação com o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, e a frequente subserviência a outros países, principalmente Estados Unidos e Israel. Essas características, segundo Werneck, demonstravam uma aproximação com o “establishment” e conflitavam com o nacionalismo pregado pelo meio militar. Aos poucos, ficou difícil não enxergar o ex-deputado como um “traidor da causa”.
“Na época, Bolsonaro tinha um discurso mais nacionalista e reconhecia que no atual modelo republicano seria impossível colocar o Brasil nos trilhos. Depois, ele foi para o lado liberal. Isso me irritou profundamente. Eu e muitos intervencionistas rompemos com ele e voltamos nossos esforços para uma insurgência militar”, afirma Ricardo Dex, intervencionista que fez parte de um dos grupos que costumava recepcionar o ex-deputado no aeroporto de São Paulo. Apesar de concordar com Werneck nos motivos que levaram à descrença com Bolsonaro, Dex acredita que a situação não será resolvida com Mourão na presidência, ja que o vice seguiria a mesma linha do presidente. Para ele, a saída seria haver, de fato, um golpe militar.
A falta de coerência no discurso de Bolsonaro é o ponto mais criticado. Nessa lógica, até uma das inimigas do ex-deputado teria mais valor que ele. “A gente não concorda com nada do que a Maria do Rosário prega, mas pelo menos ela é fiel à sua ideologia, e isso a gente respeita”, alfinetou Priscila Azevedo, esposa de Werneck, também youtuber da causa militar.
O fim
Ainda durante a campanha eleitoral, diz Werneck, a estratégia mudou: se distanciar de Bolsonaro e transformar seu vice, general Hamilton Mourão, em candidato a presidente. O general acabou se tornando vice na chapa bolsonarista e tudo foi por água abaixo.
Os militaristas se dividiram. Werneck e Azevedo passaram a fazer campanha pelo boicote às eleições e para pressionar a Mourão a dar um golpe. Outros grupos continuaram apoiando Bolsonaro, contando que a presença de Mourão na chapa era decisiva.
Como as eleições aconteceram, a esperança se tornou a de que “algo” eventualmente impedisse o cabeça de chapa de se manter na Presidência, de modo que o vice assumisse. Na visão deles, Bolsonaro estaria sendo usado pelo grupo militar apenas para vencer a eleição, por ter bons resultados nas pesquisas eleitorais. O grupo militar que encabeça o governo, formado pela maior presença de militares no primeiro escalãodesde a redemocratização, é quem estaria dando as cartas de verdade.
“Pode ver todas as vezes que o Bolsonaro teve que recuar em tão poucos dias de governo [a nossa conversa ocorre no dia 15 de janeiro]. Ele fala uma coisa e, se o grupo militar não gostar, é obrigado a voltar atrás”, comentou Priscila. Um dos exemplos foi a permissão para os Estados Unidos abrirem uma base militar no país, que foi defendida por Bolsonaro, sofreu grave resistência dos militares do alto escalão e em seguida foi descartada.
“Não vai ter golpe interno. Não precisa. O próprio Bolsonaro vai se destruir”, comentou Werneck. “Ele [Bolsonaro] sabe que as pessoas da Presidência estão usando ele protocolarmente, institucionalmente, para ser o presidente. Ele era o cara que deu arranque, pegou popularidade. Não tinha como colocar outra pessoa pra disputar. Os militares usaram o que tinham. Usaram ele”, disse.
Os intervencionistas
Apesar de se apresentar como Dom Werneck na internet, seu nome verdadeiro é Reginaldo Florêncio Verneque. Ele é autor de transmissões ao vivo pelo Facebook e YouTube com centenas de milhares de visualizações, em que defende qualquer coisa relacionada às Forças Armadas. Tem barba comprida e usa camisa jeans, “como um comunista”, segundo o próprio. “Gosto de quebrar estereótipos”, disse. Sua esposa, Priscila, nos acompanhava no café. Vestia camiseta verde-oliva com adereços que imitavam insígnias militares.
Werneck admite que, há até pouco tempo, os intervencionistas eram tratados como um balaio de malucos, em que alguns poucos gatos pingados protestavam nas ruas e basicamente ninguém dava bola. O movimento cresceu nos últimos anos, amparado pelos escândalos de corrupção e o sentimento de ódio à política tradicional. O ponto alto veio em 2015, durante os atos pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em que até 48% das pessoas disseram apoiar um novo golpe militar, segundo pesquisa da Universidade de Vanderbilt, dos Estados Unidos, em parceria com a Universidade de Brasília e apoio da Capes.
O casal coleciona milhares de seguidores e haters pela causa que defende. Apesar de serem os intervencionistas mais conhecidos, e talvez os mais influentes, também são alvos de acusações de se apropriarem do dinheiro de viúvas de militares que sonham com a intervenção. Werneck era dono de restaurantes, Azevedo trabalhava em um banco privado. Os dois deixaram os empregos há cerca de seis anos. Hoje, pagam as contas com a venda de produtos militaristas e doações dos seguidores.
Agora o “grupo de malucos” intervencionistas tem trânsito na Esplanada. E tem como maior representante o vice-presidente, general Hamilton Mourão.
Mourão já defendeu a intervenção militar para “salvar o país” da corrupção – ele perdeu um cargo no Exército e se aposentou por causa dessas declarações. Durante a campanha eleitoral, no ano passado, despertou comichões prazerosos nos militaristas quando falou da possibilidade de um “autogolpe” do presidente, junto às Forças Armadas, na hipótese de anarquia. Hoje, seu discurso é bem mais moderado. Ainda assim, é visto como herói por militares e simpatizantes. Intervencionistas juram de pé junto que são próximos a ele. Werneck foi o único civil convidado para a cerimônia interna que homenageou o general quando passou à reserva.
Apesar de o movimento ser heterogêneo, as opiniões do casal parecem ter respaldo no universo militarista. Em vídeos de outros intervencionistas, é flagrante o incômodo com relação ao possível escândalo de corrupção que envolve o senador Flávio Bolsonaro, filho de Jair, e o motorista Fabrício Queiroz.
“Essa história do Queiroz está me cheirando cabide de emprego (…) Eu não boto a minha mão no fogo”, disse Plaucio Pucci, um militarista que poucas semanas antes pedia voto para Bolsonaro. “Meu filho, passa logo um antivirus nessa máquina. Caso contrário ela apagará rapidamente”, ameaçou outro, Alexandre Bellei. “Qual é a diferença de um corrupto de R$ 90 milhões e um de R$ 90 mil? (…) Agora fica esse nhenhenhé. Não tem nhenhenhé, é corrupto igual”, afirmou mais um youtuber, José Márcio.
Mourão entra em cena
Quando Mourão apareceu no noticiário nacional, em setembro de 2017, após dizer em uma palestra que poderia haver intervenção militar no caso de o Judiciário “não solucionar o problema político”, Werneck viu a notícia e foi para uma gráfica do Gama, cidade do Distrito Federal onde mora, mandar fazer um banner com 10 metros de altura com uma foto de Mourão e a frase “Obrigado militares por nos salvar. Obrigado General Mourão”. Levou o banner para a frente do Congresso e o içou.
Passou a acompanhar de perto o general e por isso foi chamado para a despedida dele, que registrou em um vídeo de 25 minutos em seu canal. Por causa dessa proximidade, Werneck foi procurado no começo do ano passado por Levy Fidélix, que queria levar o general para a política, filiando-o ao PRTB.
O intervencionista gravou dois vídeos com Fidélix. Em um deles, o presidente do PRTB aparece comicamente vestido com roupas militares em uma loja de produtos militares dizendo que está “pronto para a guerra” e que é “intervencionista de coração”.
Werneck e Priscila são amigos do general Paulo Assis, que foi comandante de Mourão nas Forças Armadas e já contou ao Intercept como o aconselhou a entrar no mundo da política. O casal estava presente no dia em que o general assinou sua filiação ao partido. Os dois também se filiaram. Depois, tomaram um chope gigante para comemorar.
Werneck reclama que Fidélix usou Mourão como ferramenta para garantir ao seu partido a continuidade no mundo político, já que não elegeu nenhum parlamentar este ano – nem ele próprio, que concorreu à Câmara – e, por isso, seria impactado pelas limitações da cláusula de barreira, que impede que partidos sem representantes no Congresso tenham acesso a recursos do fundo partidário e tempo de televisão.
Uma frase que Werneck disse me chamou a atenção. Era que Bolsonaro não sabia lidar com a oposição dos intervencionistas, já que eles não podem ser considerados comunistas ou esquerdistas, como costuma atacar seus inimigos políticos. “Somos de direita, somos conservadores. Somos até mais radicais do que os próprios militares, porque nós queremos que se feche Congresso e Supremo e tenha uma junta militar governando o país”, disse.
“É a tal da mão amiga e braço forte. Nós somos a mão amiga. Eles são o braço forte”.