O Ministério da Saúde divulgou uma nota técnica quarta-feira (6/2) propondo novas diretrizes de políticas nacionais de saúde mental e de drogas. As mudanças provocaram alvoroço em especialistas na área e, especialmente, em que trabalha na ponta, com o usuário desse tipo de serviço. O texto de 32 páginas ataca diretamente demandas da luta antimanicomial, que existe no Brasil há mais de 30 anos, e que começou para combater as violações de direitos humanos nos hospitais psiquiátricos denunciadas após os anos 1970.
Além disso, adota um discurso que reforça a guerra às drogas e, consequentemente, a criminalização do usuário de drogas, bastante amparada pelo racismo estrutural.
Em linhas gerais, a nota abre diversos precedentes para o retorno de terapêuticas usadas amplamente no passado como a convulsoterapia [o uso terapêutico de choques em casos extremos, onde o paciente não atende a comandos de maneira consciente] – com um verniz de modernidade – bem como aponta a abstinência como melhor tratamento do que a redução de danos para o caso de dependentes químicos. Além disso, estimula a relação dos chamados CAPS (Centros de Atenção Psicossocial, que recebe pessoas em situação de vulnerabilidade para atendimento médico e psicológico, o inclui usuários de drogas, moradores de rua, etc), que trabalham com a lógica da redução de danos, com hospitais psiquiátricos e o fortalecimento das comunidades terapêuticas. A redução de danos trabalha com a lógica de dar possibilidade de o dependente químico retomar a dignidade e poder controlar o uso da droga.
Para a psicóloga Rita Almeida, que trabalha na rede de saúde mental do SUS (Sistema Único de Saúde) desde 1995 e é conselheira do CRP-MG (Conselho Regional de Psicologia) em Juiz de Fora, a suposta relação harmônica entre essas lógicas é uma falácia. “O que ficou óbvio na nota é o que a gente chama de mudança de lógica. E ela é um gatilho desencadeador de tudo aquilo que a gente vem tentando desconstruir ao longo dos anos. Quando a nota diz que é possível que o hospital psiquiátrico, os CAPS, a comunidade terapêutica convivam harmonicamente, ela diz o seguinte: a lógica manicomial vai voltar. Porque a gente sabe que na queda de braço de uma lógica que exclui, que prende, que é centrada na abstinência, para outra que trabalha com a redução de danos, que lida com as diferenças de forma mais democrática, quem vai ganhar? Ainda mais no Brasil de hoje, nesse atual momento. Qual o modo de eu lidar com aquilo que me incomoda? Eu prendo. É a mesma logica do cárcere. Eu isolo, eu faço aquilo ficar do jeito que eu quero, eu formato, essa é a lógica prevalente”, explica.
O filme “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky, de 2001, mostra com exatidão o risco dos hospitais psiquiátricos e o uso como terapia antidrogas. No filme, o personagem Neto, vivido pelo ator Rodrigo Santoro, é flagrado com um cigarro de maconha e mandado pelos pais para um manicômio, onde passa por uma série de violações: toma choques elétricos, medicações fortíssimas e é obrigada a conviver como em uma prisão com outras pessoas que têm doenças mentais das mais diversas. O final do filme, sem querer dar spoiler (contar o que será visto), é com um jovem com a condição psicológica devastada e que, aí sim, adquire doenças psiquiátricas.
Rita demonstra especial preocupação com o conceito amplamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) desde a campanha e depois, durante o discurso de posse, de acabar com as ideologias. “O novo governo trabalha com essa ideia que a gente precisa desideologizar a politica, ou seja, que a politica ideológica seria nociva. E a luta antimanicomial é uma das apontadas como sendo ideológica. Só que não existe nenhuma política que não seja ideológica. A questão é a quem ela serve: se é uma ideologia que serve a quem está no poder, no caso os ditos normais, quando se discute a luta antimanicomial, ou se ela é uma ideologia que serve à diferença, à loucura, às minorias, aos oprimido, aos massacrados. Aos que estão oprimidos naquela mesma política dos ditos. E essa política antimanicomial, obviamente, se sustenta a partir da perspectiva do louco, da loucura, da diferença, daqueles que viveram aprisionados e que passaram toda uma vida torturados. A gente sabe bem o que foi a história do manicômio no Brasil”, explica a psicóloga, que é cuidadosa ao dizer que são suposições, já que não é possível mensurar o real impacto.
No livro “O holocausto brasileiro”, Daniela Arbex retrata um pouco dos horrores sofridos pelos passageiros do “trem de doido” que eram mandados para Barbacena, em Minas Gerais, e, em muitos casos, nunca mais voltavam para o convívio social: ou porque terminavam de enlouquecer ou porque eram exterminados após sessões de tortura.
A outra questão bastante sensível contida na nota é um possível estímulo ao crescimento das comunidades terapêuticas como principal forma de tratamento contra a adicção. Em junho do ano passado, o Conselho Federal de Psicologia divulgou um relatório sobre as violações encontradas em inspeções nessas comunidades, em sua maioria ligadas a instituições religiosas. Vinte e oito estabelecimentos das cinco regiões do Brasil foram vistoriados em outubro de 2017 em ação conjunta do MPF (Ministério Público Federal), do Conselho Federal de Psicologia e do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) e entre as violações identificadas estão: privação de liberdade, trabalhos forçados e internação de adolescentes e castigos físicos.
Segundo Rita Almeida, é justamente essa construção da lógica hospitalar, centrada na figura do médico e na medicalização, além dos pactos do governo Bolsonaro com grupos religiosos, principalmente neopentecostais, que criam um terreno bastante favorável para que a internação e a lógica da abstinência passem a ser justificativas para uma cura. “Sem medo de errar, cerca de 90% ou mais das comunidades terapêuticas estão vinculadas a entidades religiosas e estão centradas na abstinência e salvação. Nada mais ideológico que isso: imaginar que Jesus será o grande salvador. Todo esse processo abre precedente isolamento, castigo físico, cerceamento de liberdade”.
Sobre o uso da palavra “convulsoterapia” na nota, Rita prefere, mais uma vez, focar na discussão central, que, para ela, é o conceito de tudo isso. “Não é a terapêutica em si [uso de choques, anestesia], mas quando eu abro o precedente para que aquilo faça parte de uma lógica de política publica, eu abro a possibilidade para que seja usado de novo e como era usado antigamente. Quando se dava choque nos anos 1970, a lógica que se usava era a terapêutica. Ninguém dava choque para torturar, dizia que era terapia. Mas a gente sabe que diante de uma lógica de aprisionamento, de exclusão, o choque pode passar a ser usado como medida punitiva”, analisa a psicóloga com ampla experiência no trabalho de redução de danos.
Para Nathalia Oliveira, integrante da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas, coordenadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política de Drogas e preside o COMUDA -SP (Conselho Municipal de Política de Álcool e Drogas de São Paulo), o texto técnico se baseia em uma nota do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) do ano passado, que apontava na direção da abstinência.
“Esse objetivo da abstinência não é possível porque não existe uma sociedade que não faça uso de drogas. Até porque, às vezes, o uso abusivo de drogas está relacionado a outros transtornos de fundo. É tipo enxugar gelo, porque você gasta dinheiro para deixar pessoas abstinentes, só que esquece que outras pessoas vão fazer uso. É preciso admitir que existe um comportamento na sociedade. As pessoas vão fazer uso de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Qual é a abstinência que estamos falando? Um mundo sem álcool, por exemplo?”, afirma.
Outro ponto bastante problemático é a questão da guerra às drogas. “Eles se colocam contrários à legalização das drogas, o que é uma corrente de contramão ao que o mundo está fazendo. Vários países estão legalizando a cannabis para uso da indústria, medicinal ou recreativo. Então, de novo, de que droga estamos falando? Tem drogas totalmente liberadas no país”, explica Nathália, que reforça a necessidade de trabalhar na redução de danos.
“[A forma colocada na nota] Realmente bane uma lógica de redução de danos, porque você esta colocando uma exigência ao usuário que é muito difícil que é a abstinência. É um tratamento de alta exigência para pessoas que estão com problemas complexos relacionado a droga. Além do mais, a abstinência não garante que ela não vá ter outros transtornos de ordem mental”, afirma.
Para Nathália Oliveira, é preciso entender o que está além da nota técnica, que é uma visão de mundo a partir do novo governo. “O pacote anticrimes do Moro, por exemplo, é uma lógica que está errada. Ele fala em combate ao crime organizado focando no criminoso. E aí quando se fala em droga, você quer combater o usuário, o pequeno criminoso e pequeno usuário, que se confundem na cena de uso. Isso tudo só segue a lógica da segregação no Brasil, da pobreza e do racismo institucional”, finaliza.
Por Maria Teresa Cruz