Resistir ao preconceito e à violência faz parte do cotidiano de mulheres que lutam para ser respeitadas pelo que são
Lu Sudré
Brasil de Fato |
“Sou a primeira mulher trans na Marinha do Brasil e talvez a primeira mulher trans das Forças Armadas”, diz, orgulhosa, Bruna Benevides, de 39 anos. Segundo-Sargento da Marinha, Bruna brigou na Justiça pelo direito de trabalhar na carreira na qual escolheu e ingressou há 21 anos, e, principalmente, por ser identificada e respeitada pelo que é: uma mulher.
“Ser militar é um grande desafio porque o espaço ainda é dominado por homens. Faz 38 anos que as mulheres entraram nas Forças Armadas, a primeira foi a Marinha, e somente há dois anos tive o direito de permanecer trabalhando”, conta ela, também secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Por um tempo, Bruna não pode exercer suas funções por ser “diagnosticada” com “transexualismo”, nomenclatura que classifica a transexualidade como doença. E, por mais difícil que seja acreditar, apenas em junho do ano passado a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID).
Para a militar, ser mulher trans é uma condição de resistência ininterrupta. “Antes de mais nada, é lutar diariamente para ter minha identidade de gênero reconhecida. Ou seja, é ter que lutar diariamente em qualquer espaço que eu esteja para ser tratada enquanto uma mulher, para ser respeitada enquanto cidadã e para ter os meus direitos garantidos”.
Benevides também é secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)
Bruna, atualmente com 39 anos, enfrentou o ambiente masculinizado da Marinha e, fora do trabalho, enfrenta cotidianamente o preconceito e a discriminação no país que mais mata pessoas transexuais no mundo.
Entre 2017 e 2018, segundo a ONG Transgender Europe (TGEU), que monitorou a ocorrência dos homicídios em 72 países, 167 transexuais foram assassinadas no Brasil. As mulheres trans são as principais vítimas de crimes bárbaros e possuem expectativa de vida de apenas 35 anos. A média nacional, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de 75,5 anos.
A violência física também é estrutural. Está presente nas pequenas coisas. Nos olhares preconceituosos, quando impedem que mulheres trans usem o banheiro feminino, quando não respeitam o nome social e as chamam por um nome masculino.
“É o não reconhecimento de nossa identidade de gênero mas também o processo de desumanização que acontece. A perpetuação dos estigmas contra nossa população. Portanto, nossos desafios são, antes de mais nada, vencer o preconceito e a transfobia. Mostrar que somos pessoas capazes, que podemos viver em sociedade e ajudar a construir uma coletividade mais digna”, afirma Benevides.
Gabriela Augusto, 25 anos, que atua em defesa do direito das mulheres trans, relata como é o cotidiano de violência verbal e emocional ao qual é submetida. “É muito frequente, pra mim, chegar em algum lugar e as pessoas darem risadinhas. Chegarem perto de mim e falarem: ‘nossa, é homem’ e voltam para contar para os amigos. Isso me chateia bastante e também chateia as pessoas que estão ao meu redor”, desabafa.
Informalidade
Advogada, Gabriela detalha que sempre passou por situações transfóbicas no mercado de trabalho. Segundo ela, muitas empresas não sabem lidar com a diversidade no atendimento ou durante entrevistas de emprego.
Para enfrentar essa realidade hostil, a diretora da Transcendemos criou a campanha “Empresa de respeito” que incentiva a diversidade no mercado de trabalho. “A ideia é conscientizar empresas e organizações de que a diversidade, incluindo pessoas trans, LGBTs, mulheres e pessoas negras, é algo que deve ser celebrado e valorizado. É preparar as empresas para receberem bem qualquer pessoa, para que principalmente nós, trans, consigamos ocupar todos esses espaços”, destaca Gabriela.
A campanha disponibiliza formação para os demais colaboradores da empresa, a partir de palestras, rodas de conversa e também por meio de um manual com orientações para a vivência coletiva e o desenvolvimento de um ambiente respeitoso e inclusivo no trabalho.
Gabriela Augusto, criadora da Transcendemos e idealizadora da campanha “Empresa de Respeito”
As etapas fazem parte de um processo de certificação das empresas, já que a campanha reconhece, por meio de um selo, aquelas organizações que estão comprometidas a combater o preconceito, o assédio e a intolerância. Cerca de 40 empresas de pequeno e médio porte já foram certificadas com o selo da campanha, que pode ser físico (em formato de placa e totem) ou digital (para uso no site e rede social da organização).
Não há custo para que a empresa que quiser participar. O site descreve ainda quais tipos de ação a empresa certificada desenvolveu, como por exemplo, a presença de banheiros inclusivos, trabalhadores formados, um departamento de comunicação que desenvolve campanhas, entre outras ações.
A inserção no mercado de trabalho e o desenvolvimento profissional é uma das principais dificuldades das mulheres trans. De acordo com a ONG Transgender Europe, 90% dessa população está na prostituição, em condições de extrema vulnerabilidade.
Lutar contra essa realidade é também o que incentiva Gabriela Augusto. “As pessoas trans, geralmente, ainda ocupam cargos bem precarizados, quando ocupam cargos no mercado de trabalho formal, então é na área da limpeza, na segurança fazendo bicos. Dificilmente estão em um cargo de gestão ou liderança. Ou a pessoa trans está na prostituição ou em um cargo muito precarizado, em uma terceirizada que mal paga, não oferece direitos e benefícios, em um serviço árduo e tendo pouco reconhecimento”, lamenta.
A advogada acredita que a inclusão das pessoas trans é um caminho contra essa violenta realidade. “A partir do momento que as pessoas veem pessoas trans em cargos de liderança ou como grandes artistas, quebramos o estigma da prostituição que ainda vivemos hoje. Fazendo com que pessoas trans ocupem postos de trabalho de grande importância. Esse é um dos caminhos para desconstruir estigmas e lutar para uma qualidade de vida melhor, um mundo melhor para todos nós”.
Conservadorismo
Durante o último pleito eleitoral, que ocorreu em outubro do ano passado, três transexuais foram assassinadas a facadas por eleitores e apoiadores de Jair Bolsonaro. A eleição do político do PSL gerou uma grande preocupação na comunidade LGBT, já que o atual presidente é conhecido por comentários LGBTfóbicos e machistas.
“Me assustou bastante. Me lembro que por várias vezes deixei de sair, por medo. Medo de sair sozinha, deixei de sair com amigos”, confessa Gabriela.
Para Bruna Benevides, o discurso de ódio na sociedade, impulsionado por figuras como Bolsonaro, diminui a visibilidade positiva para as pessoas trans.
“A diversidade de gênero vem sendo criminalizada pela agenda conservadora, fundamentalista, que demonizou as discussões de gênero. Isso faz com que pessoas como eu, que fazem parte dessa diversidade de gênero, sejam vistas como menos humanas ou pessoas que querem acabar com a família, portanto, nos transformando em inimigas do Estado. Inimigas da sociedade”, critica a representante da Antra.
8 de março
Os atos e manifestações do Dia Internacional de Luta das Mulheres demonstram que há uma resposta coletiva contra a transfobia. Bruna Benevides comemora a inclusão das mulheres trans nesses espaços.
“Estarmos juntas é reconhecer nossa identidade de gênero, mas também reconhecer a luta que nos une. Temos muitas coisas que não são em comum, mas precisamos de movimentos que se pautem a partir daquilo que nós todas passamos, queremos e desejamos, para uma transformação social”, defende Bruna.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira