Mais uma mulher foi brutalmente espancada até morrer. Um nome forte, conhecido e reconhecido pela sociedade que, amanhã ou depois, será somente um número encrostado a dados estatísticos
POR VINICIUS CANOVA, EM VISÃO PERIFÉRICA
Porto Velho, RO – Joselita Félix da Silva, você tinha apenas 47 anos quando brutalmente executada no último domingo (17) pelo seu ex-marido.
E se foi sem saber que, embora tenha um nome a ser lembrado enquanto as manchetes são alimentadas com seu caso, amanhã, daqui a pouquinho, as credenciais que a definiram em vida serão reduzidas a um mísero número ignorado encrostado a dados estatísticos relacionados à violência contra a mulher.
Nas palestras sobre feminicídio proferidas daqui em diante os seus restos mortais serão conservados em um arquivo .PPT de PowerPoint.
E quando o projetor lançar nas lousas as suas cinzas binárias, agora misturadas às de outras tantas num contexto virtual panteístico, cruzes e epitáfios serão substituídos por porcentagens e referências bibliográficas.
No fim, querida professora, sua memória será preservada, digamos assim, em letras minúsculas e praticamente inelegíveis nas notas de rodapé: um prato burocrático cheíssimo servido a políticos que já estão de boca cheia, completamente empapuçados de discursos vazios.
Só que nada disso importa, mulher! Você não sente mais nada, afinal…
Por outro lado, o maníaco que a levou à morte enchendo-a de pauladas, já atrás das grades, está com sede; de fato, o sangue resseca conforme cria coágulos. E a virulência conseguiu preencher uma residência inteira com a seiva vital de sua linhagem, já que nem o seu pai, idoso e tão vulnerável quanto você, foi poupado do arroubo psicótico. Ele sobreviveu, feliz ou infelizmente, para sofrer com a dupla penitência até o fim de seus dias.
Moça, as mãos do seu assassino doem.
Quantas lesões os metacarpos podem sofrer enquanto um ser humano elimina outro empunhando um pedaço de pau? As algemas apertadas cortam o fluxo sanguíneo, pressionam as juntas, forçam os inchaços.
Deve doer, tenho certeza. Será que dá pra afrouxar?
“Acabei com a minha vida” – diz o seu algoz despido de remorso, incorporando aquele velho tom egocêntrico próprio de um narcisista que, mesmo após a barbárie, só consegue balbuciar lamúrias sobre si mesmo.
Um dia antes de morrer você pediu socorro às autoridades. Queria proteção, não é isso? Pediu demais. Sua vida custou uma fiança de R$ 4 mil.
Perdão, vítima de feminicídio nº x de 2019, mas já esqueci o seu nome. Deve ser algo relacionado ao aumento de y% nos casos de 2018 pra cá.
De qualquer maneira, tanto faz.
Alguém já deu água e afrouxou as algemas do criminoso?